Que banda desenhada ensinar nas escolas?

Que banda desenhada ensinar nas escolas?

Um dos artigos mais lidos do extinto portal dedicado à nona arte que eu administrava, o BDesenhada.com, era um artigo de Clara Botelho, no qual a professora de Educação Visual (antes de se acrescentar a componente “e Tecnológica” à disciplina), então com 30 anos de experiência no ensino, abordava as competências a desenvolver nos alunos nos primeiro, segundo e terceiro ciclos do ensino básico (1.º a 9.º ano) no que à BD se refere.

Para os que desejam consultar as competências essenciais do atual Currículo Nacional do Ensino Básico no que diz respeito à Educação Visual, poderá aceder às mesmas aqui.

No entanto, não é esse o âmbito deste artigo. Gostava que nos concentrássemos no ensino secundário. Refira-se, para os mais desatentos, que a designação de “ensino secundário” se refere atualmente ao 10.º a 12.º ano.

A análise dos programas e orientações curriculares das diferentes disciplinas é mais demorada do que  a do ciclo básico, devido à existência dos diferentes cursos, mas é exequível traçar um percurso onde a BD pode ou não ser abordada.

Mas, nestas breves linhas, desejo apenas partilhar convosco os conteúdos de uma disciplina dedicada à BD numa high-school norte-americana (o equivalente aos nossos estabelecimento de ensino secundário, apesar de incluir o 9.º ano), com todas as desvantagens que eventualmente terá um exemplo retirado de um país com um sistema de ensino distinto do nosso.

O professor Barry W. Barrows é docente na Centaurus High School, no Colorado, onde leciona as disciplinas Advanced Placement English Literature and Composition, Senior International Baccalaureate EnglishInternational Baccalaureate Theory of Knowledge, Film Literature, Language ArtsComics & Graphic Novel Literature.

Gostaria de propor uma reflexão conjunta sobre as obras abordadas na disciplina opcional Comics & Graphic Novel Literature. A designação da disciplina deixa-nos antever que o seu conteúdo está certamente mais relacionado com a leitura e interpretação narrativa de obras de banda desenhada e a descrição das metodologias da BD utilizadas nas mesmas, ao invés da aplicação prática dos conhecimentos para a conceção de BD.

UnderstandingComicsCover

O livro escolar adotado pela disciplina é Understand Comics: The Invisible Art de Scott McLoud (1993). Esta obra de não-ficção, construída sob a forma de BD para abordar a própria BD, tornou o trabalho de McCloud acessível a muitos bedéfilos não necessariamente interessados nos trabalhos académicos referentes à nona arte. No seu livro, McCloud aborda os conceitos e a história da BD, bem como expõe teorias da BD enquanto forma de arte e meio de comunicação. Entre os tópicos do livro, incluem-se os efeitos das iconografia visual, a participação dos leitores entre as vinhetas, a dinâmica texto-imagem, o tempo e o movimento, a psicologia dos estilos de traço e cor e o processo artístico.

Da lista de obras estudadas na disciplina semestral, constam 7 livros, a que nos referiremos neste artigo. No entanto, existem outras referências ao longo do curso. Por exemplo, o fascículo #51 da série norte-americana do Quarteto Fantástico (junho de 1966; Marvel Comics), com a história This Man… This Monster! da autoria de Stan Lee e Jack Kirby, é utilizado para questionar a dialética herói/vilão e como os dois conceitos se interligam; as tiras dos Peanuts são abordadas como exemplos quanto ao estilo e ao ritmo; a sátira é estudada com recurso a cartoons políticos…

dropsie

Uma das 7 obras analisadas na disciplina é Dropsie Avenue de Will Esiner (1995), um livro acerca da evolução da vida na vizinhança ao longo de 100 anos, tendo lugar no Bronx, um dos condados do estado norte-americano de Nova Iorque. As migrações étnicas, os estereótipos raciais e a repetição de ciclos de preconceitos e conflitos externos são alguns dos temas abordados. Como nota, refira-se que foi no Bronx, nos anos 70, que surgiu o movimento hip hop, no qual se incluem o breakdancing, rap, grafitti e disc jockeys.

ABC

American Born Chinese de Gene Luen Yang (2006) é outra das obras eleitas. Neste livro, um jovem muda-se da Chinatown de São Francisco para uns subúrbios maioritariamente habitados por caucasianos. Apesar de ser abordado novamente o preconceito racial, nesta obra o conflito é mais interno, devido ao autoconceito do protagonista ter sido fortemente moldado pelo exterior a que é exposto.

maus

O terceiro livro é Maus de Art Spiegelman, obra de banda desenhada na qual o autor vai entrevistando o seu pai enquanto judeu polaco e sobrevivente do Holocausto num campo de concentração nazi. A extinta editora Difel publicou a obra em Portugal, dividida em dois tomos.

barefootgen

Seguem-se os primeiros dois volumes do manga shōnen Barefoot Gen  (no original, はだしのゲン / Hadashi no Gen) de Keiji Nakazawa (1973-1985). Trata-se de uma obra com componentes autobiográficos de um menino de 6 anos que sobrevive ao ataque nuclear de Hiroshima, a qual descreve detalhadamente o  que aconteceu antes, durante e após o bombardeamento.

persepolis

Por sua vez, Persépolis da iraniana Marjane Satrapi (2000-2003) é uma BD autobiográfica que, no seu início, acompanha as adaptações da autora, enquanto criança, à Guerra Irão-Iraque e à constituição de uma república islâmica. Recentemente, a chancela Contraponto da editora Bertrand publicou a obra integral num único volume no nosso país. Neste bildunsroman, tal como nos dois livros anteriormente citados, está presente a procura da individualidade em sociedades onde se encontra instalado o autoritarismo. Na disciplina, discute-se ainda a seriedade destas temáticas por oposição ao traço pouco realista do desenho.

marvels

Os últimos dois livros têm um estilo mais realista. Um deles é Marvels de Kurt Basiek e Alex Ross (1994), na qual o aparecimento dos super-heróis (da editora Marvel) é observado pelo homem comum entre um misto de espanto, adoração e receio, numa obra que levanta várias questões sociais, enquanto tenta responder à questão “o que aconteceria se os super-heróis fossem reais?”. Em Portugal, foi distribuída nas bancas em 1995, devido à importação da minissérie brasileira da Editora Abril, composta por 4 revistas.

vvendetta

A obra final também se apropria de um contexto fantástico para o transformar num cenário realista. V for Vendetta de Alan Moore e David Lloyd (1982-1989) – popularizado pela versão cinematográfica V de Vingança com realização de James McTeigue e guião dos irmãos Wachowski – apresenta uma resposta de um homem a um governo autoritário; decidido a derrubar o governo, existirão consequências para o seu ato. Este é o mote para comparar a arte realista da fantasia dos duas últimas obras com a arte pouco realista das autobiografias do curso.

É notório que, ao longo do curso, a dualidade indivíduo/sociedade e como os mesmos se interrelacionam são uma constante, numa faixa etária em que se está em pleno processo formativo do eu. O que coloco à discussão aos leitores deste artigo é se:
– seria pertinente uma disciplina nestes moldes no nosso país (sem ter em conta a exequibilidade, nesta fase, de uma disciplina opcional semestral dedicada à literatura da banda desenhada)?
– que livro didático utilizariam (Understanding Comics de McCLoud ou outro)?
– que 7 obras de banda desenhada escolheriam para serem abordadas na disciplina?

Espero que aceitem o meu desafio e muito enriqueçam este artigo com os vossos comentários!

6 comentários em “Que banda desenhada ensinar nas escolas?

  1. Excelente ideia esta, já agora vem mesmo a calhar porque ando a reflectir sobre que livros de BD devem constar de uma bibioteca escolar, mas relativamente à primária. Por isso se tiveres ainda esse material pedia-te para mo enviares. Aliás podes enviar até ao 9º ano 🙂

    Quanto ao secundário. Não sei se seria pertinente existir uma disciplina destas, mas acho que a BD podia/devia desempenhar um papel maior. Claro que isto também depende do professor, sei que há professores de educação visual que focam mais isto do que outros, como em tudo. Eu teria adorado uma disciplina destas, terminei o secundário e a escrita para BD era algo praticamente desconhecido, ao contrário da prosa, poesia e texto dramático.

    Ainda não li nenhum livro didáctido de BD. Apenas alguns artigos. Por isso aqui não seria grande ajuda.

    Quanto às 7 obras, depende do país em que seriam leccionadas. Imaginando que seria cá vou dar sugestões, mas caso tivesse de escolher a sério envolveria uma pesquisa mais aprofundanda claro.

    – O MAUS é daqueles que me parece obrigatório por várias razões.
    – O Asteryos Polyp é um tratado de como fazer BD e as suas potencialidades enquanto arte.
    – O V for Vendetta é o 1984 da BD, por isso sim de manter.
    – Salazar agora na hora da sua morte. Por ser BD nacional e por ser uma biografia dessa figura que faz parte da História de Portugal e é preciso conhecer.
    – Watchmen é para mim a melhor obra sobre a desconstrução do super-herói. (Marshal Law tb, mas não começava por essa).
    – Lone Wolf and Cub, aproveitar para dar a conhecer o mangá e falar do Japão feudal 😀
    – Valeria a pena colocar Moebius. Pela importância no desenho e porque aproveitava para colocar algo de ficção científica. O Incal poderia ser uma ideia, ou então outras obras, se quisessemos ter mais conteúdo de super heróis o seu Silver Surfer para mostrar uma espécie de “europa meets america” (ainda me falta conhecer muito dele).

    Mas é complicado, deixei de fora Charlie’s War de Pat Mills sobre a 1º grande guerra, muitas vezes esquecida em prol da segunda, seria mto interessante acho. O Fun Home tb seria de valor (o Persepolis tb claro). O Tintin no tibete pela abordagem à amizade, mas esse poderia vir mais cedo.

    1. Caro Gabriel:
      Muito obrigado por teres inaugurado a secção de comentários deste artigo com um comentário tão válido 🙂 O fio condutor é realmente esse ou não teria sido este o formato escolhido para solicitar sugestões / reflexões sobre o assunto. Os comentários a uma entrada não pressupõem pesquisas elaboradas, facilitando um ambiente semelhante a um brainstorm ao invés das diferentes metodologias que podem ser aplicadas a um painel de peritos.

      Quanto à tua questão relativa à biblioteca escolar, apesar de estar na posse do texto publicado no BDesenhada.com, o mesmo não dá sugestões de obras. O seu foco são as competências a desenvolver nos alunos em cada um dos ciclos de ensino básico, no que à BD diz respeito.

      É curioso teres citado Asterios Polyp, uma vez que também lhe fizeram referência nas sugestões que colocaram no facebook. Aliás, parece-me oportuno, transcrevê-las para aqui, por ordem meramente cronológica de participação, de modo a se ir agregando neste local a informação, e quiça alimentando a discussão:

      – Habibi (sugestão de JC Melon)

      – Watchmen (sugestão de Joshua Waldrop)

      – Maus, Kingdom Come, Weapon X (sugestão de Glen ArchAngel Cvitan)

      – Black Hole (rhythm), Box Office Poison (characters), Scalped (plot), 100 bullets (page layout) (sugestão de Frank Plein)

      – Maus. Bone. The Sandman. Batman: The Long Halloween. Promethea. The League of Extraordinary Gentlemen. Herobear and the Kid. Fade from Blue. Wolverine: Old Man Logan. Kingdom Come. You got to remember, its got to be a little of all the different types. Not just the “old staples” that by todays standards do not hold up. And classic superhero is hard as spider-man / x-men / batman /superman / wonder woman / JLA have good runs, but hard to define specific arcs and they must be in trade format. Morrisons JLA is incredible, Pak’s Planet Hulk was awesome, X-men Age of Apocalypse was great, but hard to use in a class because of what comes before and after. finite series are the best for a class. (contributo de Tony Carboni)

      – Asterios Polyp (every single thing, espacially the graphic representation), Maus (clever way of representing characters, making very hard story drawn in simple way, so it wouldn’t be so hard), The arrival (that’s just fantastic work…) (sugestão de Wanda Onyszkiewicz-Gnap)

      – How do you differentiate something like Maus from, say, Bleach or Xmen? When you say, “for a literature class” — what is the constraint? I feel like the natural inclination is to choose something that would ordinarily be found in a modern Movie or a dark history/story. Would Garfield and Peanuts not be applicable? Just curious. If they are, then why not Inuyasha? Political cartoons? What are the lines? Again just curious. (contributo de Vince Field)

      – Warriors, 300, Watchmen, Maus, Kingdom Come, Swampthing, 100 bullets, Sin city, and Sabrina the Teenage Witch , for some diversity, and the long lasting of the character, and you got to throw in some roots like the Phantom, and the shadow and all those great “pulp” characters. You could teach a whole class on really one graphic novel, look at Watchmen (sugestão de Camp Enbush)

      – Pas celui-là! Enseigner, c’est aborder une pratique par des exercices dans lesquels on cache de la théorie. (comentário de Pierre Tasso)

      – De muito longe mesmo, calvin & hobbes! (sugestão de Fernando Rodrigues)

      – watchmen, maus, crónicas de jerusalem, e mais um ou outro… esses livros elevam a arte (sugestão de Maria João Careto)

      – os classicos da literatura universal em HQ e adaptacoes de eventos historicos (sugestão de Renato Frigo)

      – El archivista! (sugestão de Carlos Enrique Pedreros)

      – Adventures of Luther Arkwright, Blankets, Pictures that Tick. My problem is if you’re teaching alot of these classic become “write off/easy a” courses for students who read comics and have already covered the silibus on their own. Do do it you can just dig a bit further back and get a great course based on what came before it. (contributo de Donald Campbell)

      – This one is a hell if a start. Watchmen, frank millers batman. And the comic sweet tooth (sugestões de Ren Bertrand)

      – Kingdom Come, Transmetropolitan, and Nemesis (sugestões de Jay Herez)

      – Nothing ‘mainstream’ after 1991 (contributo de R. W. Hatkins)

      Abraço,
      Nuno

      1. Obrigado pela respota. Eu acho este tipo de exercícios muito bom, por isso acho que é de valor fazer esse brainstorming.

        Por acaso deixei as tiras de fora, porque disseste que usam os Peanuts em adição às 7 obras escolhidas. Fiz o mesmo e aí tanto Calvin & Hobbes, como a Mafalda seriam excelentes escolhas também. Tudo muito actual, são daquelas tiras imortais.

        Gosto de todos os livros que mencionei claro, mas tive em atenção não os escolher só por serem os predilectos. Debitar uma série de livros que gostamos é fácil. Tentei escolher algo diversificado em género, estilo. O poder da escrita e do desenho. E componentes históricas/políticas, etc.

        O Asterios é um livro que demonstra uma série de potencialidades na BD, daí achar uma escolha importante. Porque cada arte tem a sua linguagem, e o Asterios sabe jogar com isso. Todas as personagens têm um lettering na fala diferente por exemplo. E tudo relacionado com a personalidade de cada um. Os livros não têm, nem devem ser todos assim, mas este é sem dúvida um que dificilmente tiraria da lista.

        Das sugestões dadas, posso já dizer que me encontro no grupo de apaixonados por Sandman. Mas é daquelas obras que a ler é para ler toda e 10 volumes numa disciplina é complicado 😛

        Não iria era tanto pela via das adaptações dos clássico da literatura para BD numa fase como a do 10º-12º. A BD tem clássicos originais eu preveligiaria esses e deixava os da literatura para a disciplina de português 😛
        Mas até podia ser algo engraçado ter um desses e comparar a sua linguagem com a do original, focar essas diferenças. Mas leio pouco dessas adaptações, normalmente vou para o livro original e por isso é que, assim de repente, não me ocorre nenhuma que achasse merecedora.

        1. Gabriel:
          Estamos em consonância quanto à diversidade. E agradeço mais uma vez estares disposto a colaborar neste cenário hipotético, que propositadamente foi desprovido de uma eventual contextualização da disciplina imaginária no ensino nacional, seja na sua essência, seja na interrelação com as demais disciplinas.
          Percebo perfeitamente a tua reserva quanto às adaptações de clássicos da literatura. Não acredito que a sugestão tivesse sido dada como uma alternativa aos originais. Provavelmente, a ideia central era partir de uma base, conhecida dos alunos das disciplinas de Português ou História – texto literário ou evento histórico – e comparar diferenças e semelhanças, em diferentes níveis. mas a verdade é que estou a interpretar a sugestão…
          Abraço,
          Nuno

  2. Olás.
    De facto, este tema é muito interessante, mas se me permites entrar a matar, o problema está em captar uma experiência determinada dos Estados Unidos e querer encontrar uma comparação directa – ou sequer as mesmas condições – em Portugal, quando há toda uma série de entraves, começando com a primeira que é a falta de uma oferta mais diversificada de textos primários (quanto mais de secundários).
    No entanto, gostaria de participar da discussão respondendo sumariamente às tuas perguntas, baseando-me na minha própria experiência de ensino. Para que conste: apesar de ter sido professor de secundário, e de língua portuguesa, a banda desenhada não fazia parte do programa (e estamos muitas vezes “presos” ao programa, se bem que houve sempre hipóteses de fugir dele), estou a falar da experiência de ensinar em escolas superiores ou similares (ESAD-Guimarães, CETs na ESAD das Caldas da Rainha, Instituto Politécnico de Beja, Ar.co, etc.), abordando as dimensões históricas, críticas, estruturais e de escrita da própria banda desenhada, e menos enquanto professor de conteúdos determinados (história, literatura, biologia) usando a bd enquanto veículo, que é o fito desse ensino secundário.
    Nesse sentido, houve muitos aspectos de privilégio. Mas vejamos.
    1. Penso que quer enquanto extensão das disciplinas de artes visuais, nas possibilidades interdisciplinares com outras disciplinas (história, inglês, português, etc.), seria extremamente pertinente introduzir a banda desenhada como mais um meio de estudo. Não sei até que ponto seria pertinente transformá-la numa disciplina, dadas as dificuldades que isso acarretaria, já para não dizer que é utópico. Mas a introdução da bd como “mais uma arte”, “mais um texto” faz todo o sentido. Já no que diz respeito ao ensino superior, sobretudo em cursos de artes visuais, design, etc., é muitas vezes obrigatório. Eu pertenço ao Centro de Estudos Comparatistas, cujos objectos de estudo envolvem muitos dos factores sociais, estéticos, políticos e elementos estruturais que são centrais na bd (ex.: a relação texto-imagem, a materialidade da literatura, a multimodalidade das imagens, etc.), mas a banda desenhada não faz parte desses mesmos objectos. A razão é simples: há um largo desconhecimento dos trabalhos mais sérios, adultos e pertinentes desta área pela academia (e, por favor, não será a “Turma da Mônica” que vai conquistar esse espaço, é antes a Satrapi, a Bechdel, o Cotrim e o Miguel Rocha, muito bem recordado pelo Loot, etc.). No entanto, é preciso dizer que há cada vez mais professores universitários – sei de uns quantos casos – que têm a banda desenhada nos seus programas, mesmo não sendo apenas sobre bd (e essa é uma vitória maior, bem vistas das coisas, do que existirem plataformas “exclusivas”, para “nerds” ou “conversos”).
    2. O(s) livro(s) do McCloud(s) são excelentes instrumentos de introdução, mas seria um erro pensar que são a) únicos, e b) os melhores. No entanto, também depende muito do que se está à procura. Se é um manual de “como fazer”, então os dois volumes do Matt Madden e da Jéssica Abel são inultrapassáveis. No entanto, para compreender subtilezas da estrutura, semiótica/semiologia, e outros aspectos formais da bd, há toda uma bibliografia a conhecer: Thierry Groensteen, Benoît Peeters, Renaud Chavanne, Pierre Fresnault-Deruelle, Jan Baetens, Pascal Lefèvre, etc. Já no que diz respeito à história ou tópicos, o mesmo: apenas arrisco a dizer David Kunzle, António Dias de Deus, Leonardo De Sá, João Paiva Bóleo, Thierry Smolderen, Ann Miller, Trina Robbins. Mas existiriam muitos nomes a citar e isso dependeria do que se pretende estudar ou ler, ou qual a dimensão a tratar: sobre banda desenhada russa? Check. Sobre abordagens literárias, narratológicas, sobre adaptações da literatura ou para literatura, da banda desenhada. Check. Sobre os desenvolvimentos do cartoon político na China, contra e a favor do regime? Check. Sobre os autores filipinos a trabalhar no mainstream norte-americano. Check. Com a existência de publicações académicas tão diversas quanto o International Journal of Comics Art, o Journal of Comic Studies, European Comic Art, e outros, há muito por onde escolher, já para não falar das revistas e blogs de crítica “musculada”. Problema: o que é dessas fontes internacionais está traduzido para português? Nada, ou quase nada (bom, para breve haverá algo a anunciar), e muitos destes materiais foram traduzidos e “reduzidos” por mim para as aulas que tive oportunidade de dar…
    3. Ha! O exercício preferido de qualquer bedéfilo que se preze. Numa mailing list a que pertenço de investigadores internacionais, são este tipo de listas as que têm mais actividade. “Representações da infância na bd”, “Super-heroínas com origens científicas” e “suicídio na bd”, foram alguns dos últimos pedidos…
    A primeira resposta seria: olhar para a oferta disponível em Portugal, que apenas há muito pouco tempo começou a disponibilizar livros verdadeiramente maduros, providenciando a uma variedade mais alargada do que há uma década atrás (por favor, dizer que Manara é “adulto” é tolo, só porque tem maminhas e pilinhas, não o é, não no sentido em que “Fun Home” nos obriga a ser). Mesmo que quiséssemos incluir “Watchmen” ou o excelente “American Born Chinese”, onde é que o vamos desencantar em português? Existem edições brasileiras, mas seria proibitivo fazer encomendas… Estou apenas a falar do ensino destes textos em português, claro. Se o podemos fazer em inglês, ou francês, espanhol, etc., é outra questão. Mais uma vez, dependeria de qual o foco do ensino, mas em termos gerais, penso que uma escolha genérica, que não estivesse limitada por um tema qualquer, deveria procurar algum equilíbrio entre material clássico, infanto-juvenil, mainstream, alternativo, experimental, ser atento à máxima diversidade geográfica, cronológica, de géneros e formatos possível (tira, comic book, álbum franco-belga, “graphic novel”, webcomic, etc.). E procurar um espaço para os autores portugueses verdadeiramente digno. Mas quando as pessoas têm memória de galinha, e preferem o último hit a recordarem-se de autores que produziram bons livros nos últimos, fiquemo-nos por aí, dez anos, o esforço é por vezes inglório. Insistiria, porém, na atenção para com o autores portugueses, sejam eles produtores de trabalhos mais convencionais (por hipótese, Eduardo Teixeira Coelho, Rui Lacas) a outros mais contemporâneos (Marco Mendes), do humor (Álvaro) ao histórico (“Salazar”, de facto), do mais “leve” (“Mosca” do Richard Câmara) ao mais “literário” (“Beterraba”, de Miguel Rocha)… A escolha pode ser muito, muito variada.
    Até breve,
    Pedro

    1. Caro Pedro:
      Obrigado pela tua disponibilidade em participares neste desafio e pela tua valiosa contribuição.
      Colocas diversas questões quanto à contextualização da proposta. A sua pertinência é mandatória, uma vez que, dependendo do ângulo, se poderão seguir caminhos completamente divergentes. Dada a impossível transição direta – e provavelmente, “indireta” também – do modelo para a realidade portuguesa, optei por criar este desafio com uma abertura quase total, apesar das 3 orientações (questões) fornecidas. Idealmente, caberia a cada participante imaginar o seu cenário, sem dúvida alicerçado mais na nuvem que no chão, para participar no exercício proposto.
      Os textos académicos e a faixa etária do desafio não são necessariamente incompatíveis, dependendo provavelmente mais do trabalho a montante do professor na sua seleção e eventual adaptação. Mas facilmente se compreende a diferente sedução que exercerá o livro de McCloud nos alunos da Centaurus High School em detrimento de um livro de texto.
      O teu comentário é demasiado rico para o esgotar nesta resposta. Fica a promessa de a ele regressar numa fase mais avançada (sejamos otimistas) da discussão!
      Abraço,
      Nuno

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