O mundo pula e avança. Em muitos casos, os avanços são rápidos. Apenas temos de nos recordar do quão celeramente tem evoluído a nossa relação com os telemóveis ou os computadores. Ou, dito de outra forma, como tem evoluído a nossa comunicação.
Outros assuntos são mais lentos e não universalmente aceites. Alguns dos meus amigos homossexuais colocam frequentemente mensagens nas redes sociais para relembrar que, em várias questões, não têm direitos semelhantes aos dos heterossexuais. Apesar de existirem há décadas personagens homossexuais na banda desenhada, ainda hoje têm direito a destaque fora dos meios de comunicação social especializados em BD sempre que algo de novo acontece neste âmbito na BD mais mainstream dos EUA. Ainda o ano passado, o casamento de Estrela Polar e Kyle Jinadu, foi extremamente badalado.
Curiosamente, se o casamento tivesse ocorrido décadas antes e uma das personagens fosse do sexo oposto, continuaria ser alvo de grande atenção, pois o Kyle é negro. Muitos saberão que o primeiro beijo interracial na televisão norte-americano foi o de Kirk e Uhura no 10.º episódio da 3.ª temporada de Star Trek – O Caminho das Estrelas (Plato’s Stepchildren, 22 de novembro de 1968).
Na BD norte-americana mainstream a cores, ocorreu 7 anos mais tarde, em julho de 1975, na revista Amazing Adventures #31 da Marvel, numa história de Killraven, entre M’Shulla Scott e Carmilla Frost. A história teve como autores Don McGregor e P. Craig Russell.

McGregor também tinha sido parcialmente responsável pelo primeiro beijo interracial numa BD a preto-e-branco na revista Creepy #32 da Warren Publishing (janeiro de 1972). No entanto, tinha-se tratado de um erro de comunicação entre o argumentista e o desenhador Luis Garcia, não resolvido em tempo útil.


Aliás, 20 meses antes, Dick Giordano tinha recebido muitas cartas revoltadas e uma ou outra ameaça de morte quando foi lançado o n.º 26 da revista Teen Titans da DC (abril de 1970). Nessa estória, Mal Duncan e Lilith Clay abraçavam-se (e adivinha-se também um beijo de Mal na face de Lilith), tendo inclusivamente sido aplicada uma cor azul às personagens (curiosamente, numa das vinhetas com um tom mais escuro e mais claro, consoante a personagem em causa) para a editora não eliminar a cena. Os autores foram Robert Kanigher e Nick Cardy.



E isso traz-nos a Franklin. A razão porque eu não disponho de nenhuma tira com o Franklin nos 6 livros que possuo da obra completa dos Peanuts (1950-1962) é que ele só surgiu em 31 de julho de 1968. A sua criação deve-se em parte à troca de correspondência de Charles M. Schulz com uma professora que, após o assassinato de Martin Luther King lhe sugeriu que criasse uma personagem afroamericana tão rica do ponto de vista psíquico como as restantes personagens. Após alguns receios de Schulz (e o assassinato de Robert F. Kennedy), surgiu então o Franklin.
São 3 tiras, passadas na praia, durante as férias, o cenário ideal para a personagem não mais aparecer na série se necessário. Na 2.ª tira, rapidamente se afirma que o seu pai, ao contrário do de Charlie Brown, está a lutar pelos EUA no Vietname, numa tentativa de validar a família de Franklin aos olhos da opinião pública (e numa altura em que menos de 40% da população concordava com o envolvimento dos EUA na guerra).
Se o Franklin está numa vinheta, a Sally não surge na mesma, como se os limites dos quadradinhos fossem as barreiras morais que não permitissem o convívio entre um menino negro e uma menina branca. Na verdade, apesar de na época já ser ilegal a segregação nas praias públicas norte-americanas, ela ainda ocorria na prática.
Para surpresa de alguns, numas férias que realizei no Egito há uma década, nas praias públicas que ladeavam as praias privadas dos hóteis, banhavam-se mulheres totalmente vestidas dos pés à cabeça, sem nenhum homem por perto, um pequeno sinal de que a universalidade dos valores é extremamente complexa.
Quanto ao Franklin, meses depois seria reintroduzido na série, desta feita no ambiente habitual dos Peanuts. O seu grande papel foi o de reagir às bizarrias do grupo, em especial às da Peppermint Patty, trabalho que viria a ser posteriormente assumido pela Marcy. Alguns críticos consideram que é uma das poucas personagens da série sem grandes defeitos, temendo que tal seja fruto do politicamente correto.
Percebo perfeitamente ao que se estão a referir. Nas histórias que escrevi nas quais entravam crianças de descendência africana e asiática, apercebi-me de que tinha um especial cuidado com as situações em que os colocava e aquilo que diziam, com algum receio de más interpretações. Isso torna-as um pouco mais “perfeitas” que as outras. E afinal, isso sim, é um preconceito… Como diria um saudoso amigo, “E esta, hein?“

Leituras recomendadas:
Cronin, B. (2009). Comic book legends revealed #229-230. Comic book resources. North Hollywood.
Heintjes, T. (2012). When Peanuts broke the color barrier. Hogan’s Alley #18. Bull Mouse Publishing. Atlanta.
Shatner, W. e Kreski, C. (1993). Star Trek memories. HarperCollins. Nova Iorque.

Fundador e administrador do site, com formação em banda desenhada. Consultor editorial freelance e autor de livros e artigos em diferentes publicações.