Tal como as restantes obras que necessitam de uma produção em massa para serem consumidas pelo público, a banda desenhada tem andado de mãos dadas com a tecnologia. E, inclusivamente, quando se libertou da obrigatoriedade da distribuição física, tal só foi possível graças à tecnologia.
Estão familiarizados com o dito “A máquina tem sempre razão?”. A plataforma onde construo este espaço ontem surpreendeu-me desagradavelmente quando uma entrada com o título idêntico a este surgiu não só neste local mas nas feeds do mesmo. No seu conteúdo, constava apenas a capa, não acompanhada por nenhum texto. Era um post inacabado, incompleto – erradamente programado para ser publicado no momento em se tornou público.
Inacabada foi também a minha ação corretora. Se a entrada foi adiada para o dia de hoje, nada poderia ser feito quanto ao feed. Quem procurou a sua origem após o seu adiamento, não o encontrou. Lamento, foi um engano. Não era suposto o post ter sido ontem publicado e, muito menos, de só conter a capa do livro.
Apesar da minha desagradável sensação da correção ter sido imperfeita, não tenho dúvidas que se trata de uma questão menor, de pouca – para não escrever nenhuma – importância.
Mas, nem todos nós lidamos da mesma forma com assuntos que nos parecem inacabados, com o aquilo que foi cortado a meio, com o que ficou por dizer, Façamos uma analogia com as séries televisivas. Sabendo de antemão que uma determinada série foi cancelada antes de chegar ao seu final, seja a meio de uma temporada, seja no final daquela que não estava programada como sendo a derradeira, e sabendo que muitas questões ficam por responder, há quem decida ver os todos os episódios existentes e quem a risque imediatamente da sua lista de intenções de visualização. O mesmo acontece com as séries de banda desenhada publicadas no nosso país. Tanto numa situação como noutra, haverá uma percentagem num e noutro grupo a quem importará saber mais informações antes de decidir.
Mas Portugal não é exemplo único de que tal acontece a nível da BD. Nos EUA, as revistas mainstream de BD, apesar do seu sistema de produção, ocasionalmente também sofrem atrasos por parte dos autores, que podem resultar no cancelamento da série. Sabendo deste facto à posteriori, leriam os números disponíveis?
Para os que responderam algo semelhante a “talvez, mas estamos a falar de que série?” – mas os que responderam “não” permaneçam comigo nesta reflexão – eu acrescento mais um dado. Seriam reunidos num livro brochado (trade paperback) todos os números publicados, exceto um, como no TPB original. Para os mais distraídos com a evolução histórica da publicação das revistas de BD em Portugal, sublinho que não há nenhuma intenção de publicar o 9.º número a solo. Em suma, temos uma série cancelada antes do tempo, com questões por resolver, com 9 números publicados nos EUA; e alguns anos depois, realiza-se o lançamento dos primeiros 8 sob o formato de TPB em Portugal. Comprariam?
Desconheço se algum dos leitores que se situava no grupo dos indecisos caminhou em direção dos que não estão minimamente interessados em ler histórias pela metade. Mas a verdade é que a banda desenhada não se faz apenas de texto. E, para alguns, terá muita importância o nome do artista ser o australiano Ben Templesmith. Outros, devido à natureza de episódios autocontidos, associada ao nome do britânico Warren Ellis, não se importarão também de não ver resolvidas as questões transversais a todo o volume. Haverá ainda outros que associarão o termo qualidade ao facto da série ter sido nomeada para dois Eisner Awards, o de melhor nova série (atribuído, nesse ano, a All Star Superman de Grant Morrison e Frank Quitely) e o de melhor série em continuação (atribuído a Astonishing X-Men de Joss Whedon e John Cassaday). Presumo que foi a pensar em todos estes leitores que a editora dinamarquesa G-Floy Studio, publicou em Portugal Fell: Cidade Selvagem, originalmente editada pela norte-americana Image.
Para todos os que nunca adquiriram um livro desta editora, com receio das publicações lusas de editoras não-lusas, bastará certamente uma leitura da ficha técnica para nos campos destinados ao editor, tradutor, design e legendagem reconhecerem profissionais da Devir, pelo que não detetarão erros gramaticais e outros que tais na língua portuguesa. E a impressão ter ocorrido na Polónia não altera este facto.
Quanto à série, a verdade é que não foi oficialmente cancelada. Mas há mais de 5 anos e meio que não sai nenhum número. Os 3 primeiros números cumpriram com a mensalidade anunciada, entre setembro e novembro de 2005. Após um hiato de 4 meses, surgiu o 4.º número, em março de 2006. Dois meses depois, foi publicado o 5.º número. Após 3 meses, foi publicado o 6.º número, o último que seria publicado no ano de 2006. Seis meses depois, em fevereiro de 2007, surgiu o 7.º e em abril foi publicado o 8.º número, mês em que a Image publicou também o seu primeiro TPB, semelhante à edição nacional. O 9.º e último número, posterior ao TPB, foi publicado 9 meses depois, em janeiro de 2008.
Rezam as lendas que o computador de Ellis – a tal tecnologia com que iniciei este artigo – ficou inutilizado e que ele perdeu muitos dos argumentos da série, razão porque a mesma nunca foi retomada. Mais tarde, Ellis informou os seus fãs de que Templesmith estava na posse do 10.º argumento e que quando tivesse disponibilidade iria prosseguir a história, estando Eliis à espera de tal para (re)escrever o 11.º número. Entretanto, a editora já fez saber que até estar na posse da maioria dos números que faltam para encerrar a série – segundo algumas fontes, o total da série corresponderia a 16 números – não continuará a publicá-los de forma aperiódica. O resultado, até ao momento, tem sido nulo.
Nesse sentido, a edição tardia da compilação em Portugal (2011) foi uma oportunidade perdida de publicar o que os pessimistas considerariam ser o Fell integral, com a inclusão do 9.º número. Deste modo, também no nosso país ficou o trabalho inacabado.
Mas abordemos a obra de que dispomos em Portugal. Eis a sinopse:
Enviado para uma cidade em processo acelerado de colapso chamada SNOWTOWN, o Detetive Richard Fell tem que recomeçar a sua vida do zero. Mas numa cidade em que nada parece fazer sentido, Fell sabe que se pode agarrar a uma certeza, a única que ele sempre soube ser verdade… TODA A GENTE ESCONDE QUALQUER COISA. ATÉ ELE…
Os autores apresentam-nos através da visão de Fell – cuja queda em desgraça na cidade do outro lado da ponte e subsequente transferência para a esquadra de Snowtown nunca chega a ser explicada – uma cidade decadente, perversa e violenta, onde os seus habitantes se tentam proteger magicamente da desgraça através de grafittis que representam uma insígnia da cidade.
Fell ora encontra-se com bárbaros assassinos, habitantes ferozes, cruéis, terríveis e desumanos, ora com doentes psiquiátricos desequilibrados que colocam em perigo quem os rodeia. Fell ora faz uso das suas capacidades de dedução ora recorre aos seus instintos mais básicos no modo como lida com os suspeitos e criminosos. Tem ainda algum tempo para iniciar uma relação de intimidade com Mayko, embora a mesma não seja muito saudável no 1.º capítulo.
As questões que no final permanecem além dos 8 episódios individuais, referem-se ao próprio Fell e a uma personagem secundária, uma freira com uma máscara de Nixon, cujo propósito na narrativa é ainda ignorado.
Quanto à arte, Templesmith utiliza de modo quase ubíquo as pranchas dispostas em 3 x 3 vinhetas, imprimindo à narrativa um ritmo rápido. Desse modo, quando utiliza outra estrutura, a mesma ganha um maior impacto, como, por exemplo, na alucinação visual constante do capítulo 7. Por outro lado, o espaço intervinhetal (termo utilizado por Pedro Moura para designar a brasileira calha ou a norte-americana gutter, tão importante nas propostas de Scott McCloud), em vez do puro branco, tem um aspeto erraticamente sujo. As cores são outro ponto fundamental na obra, frequentemente utilizadas como um factor coadjuvante da tensão narrativa. Apesar de as cores serem contidas, o seu espectro é largo e certamente não deixarão o leitor indiferente.
É um facto de que alguns dos efeitos visuais são possíveis graças à tecnologia digital – regressamos ao ponto de partida -, mas a importância da sua presença é residual. Seja no exterior seja em espaços interiores, o ilustrador revela-se em plena forma, seduzindo o leitor em cada detalhe com recurso à sugestão ou representação. O duo de autores atinge uma cumplicidade extrema quando consegue manter em pleno clímax um confronto entre Fell e um suspeito ao longo da quase totalidade do capítulo 5, enclausurados numa sala de interrogatórios da esquadra de polícia.
Por todas estas pontos, Fell revelou-se um bom regresso à Image, editora pouco publicada em Portugal e da qual há algum tempo que não lia nenhuma obra.

Fundador e administrador do site, com formação em banda desenhada. Consultor editorial freelance e autor de livros e artigos em diferentes publicações.
Já ando para comprar isso a muito tempo mas aparece sempre algo.
Caro Optimus:
Aparentemente, este foi mais um lembrete para que não te esqueças dessa intenção 🙂
Abraço,
Nuno