Uma Ave Rara: Entrevista com o contador de histórias André Oliveira

Uma Ave Rara: Entrevista com o contador de histórias André Oliveira

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Por Rui Ferreira

Living Will poderia muito bem servir como a expressão que caracteriza André Oliveira. A sua vontade de viver as emoções, de as transpor para histórias e de tentar constantemente melhorar. O seu avô teve um papel preponderante na sua formação e na sua interpretação da vida, foi provavelmente a sua principal inspiração para se tornar no contador de histórias que é hoje. A honestidade e a simplicidade são também outros dos seus pilares, quer na parte pessoal, quer no trabalho, apesar de para ele, esta fronteira entre pessoal e trabalho quase não existir, tudo faz parte da vida e da mesma experiência.

Não importa o formato, não interessa o porquê, desde que André Oliveira sinta que há algo para contar, não hesita. Seja como copywriter em publicidade, como argumentista de BD, ou até outras áreas da escrita, onde também tem 2 livros publicados: Chili, Habanero Bang Bang (Associação Tentáculo) em co-autoria e A Hora do Saguim (El Pep) onde compila histórias humorísticas que foi publicando no blogue do mesmo nome.

André Oliveira é ainda um acérrimo defensor da cultura em geral e da BD em particular, contrariando sempre aquela ideia pré-concebida de que a Banda Desenhada é uma arte menor e para crianças. Não fica agarrado a clichés e não se ilude, tenta evoluir constantemente as suas ideias e opiniões, não se importando com o que pensava ou pensou em momentos anteriores, ao fim ao cabo só assim se pode evoluir. As sua principais referências são a família e os amigos, basicamente quem está perto dele.

Vamos conhecer um pouco mais do mundo de André Oliveira, a quem agradeço a amabilidade e disponibilidade para esta pequena (grande) entrevista e onde vamos saber alguns pormenores sobre o argumentista, que é neste momento, um dos mais activos na área da BD em Portugal.

Aproveito também para vos deixar aqui e para quem quiser saber ainda um pouco mais sobre o André Oliveira, uma excelente entrevista em video, feita pelo Rui Geada para o Sítio das Artes. Ajudou muito a compor esta pequena introdução.

André Oliveira é mais uma daquelas pessoas a quem devemos agradecer pela sua persistência, pela sua luta e pela sua paixão de continuar a publicar Banda Desenhada em Português. Fiquem também a saber de onde vem o nome Ave Rara, algumas sugestões de leitura e muito mais. Não percam já a seguir …

Desde que altura da tua vida e de que maneira, surgiu a decisão de enveredares por este caminho ligado à banda desenhada?

Algumas das minhas primeiras memórias envolvem a construção de cadernos de folhas de rascunho agrafadas onde rabiscava pequenas narrativas e pedia mais tarde ao meu avô para preencher os balões. Sempre disse orgulhosamente, em biografias ou entrevistas, que o meu avô teve uma grande influência naquilo que sou hoje porque também ele gostava de contar histórias, era algo que fazia parte da sua identidade e felizmente ainda faz. Talvez por isso me tenha habituado a entender o acto de contar uma história como algo honorável, maior, uma forma de elevar o ser humano.
Depois, cresci com banda desenhada à volta, como muitos da minha geração. Nunca vi propriamente o fazer BD como uma decisão, foi algo que surgiu naturalmente já na faculdade embora tenho tido experiências pessoais antes disso. Para mim, a BD não é um caminho, é uma expressão que passou a fazer parte da minha vida e ocupa um lugar muito especial.

Ainda te lembras da história que consideras ter sido o teu primeiro argumento para BD? Podes contar-nos um pouco sobre ela?
Ainda conservo um ou dois desses cadernos em casa, não sei muito bem onde. Um deles parece relatar o encontro pouco amigável entre dois cães raivosos com múltiplas patas (como não sabia contar e não tinha a noção do que eram quatro patas, limitava-me a desenhar uma série indiscriminada delas). Enfim, é muito complicado perceber o que estava a pensar na altura mas se tiver de ser meticuloso terei de apontar este como o meu primeiro “argumento” embora saiba pouco do que se trata. Mais tarde, já mais a “sério” e na escola secundária, comecei a fazer uma história de super-heróis cujas personagens eram os meus colegas de turma. O enredo estava carregado de clichés (ou “homenagens” como alguns provavelmente lhes chamariam) mas até estava divertido… embora me tenha fartado por volta da décima prancha.

Tu és também um formador nesta área do argumento de BD, costumas participar em inúmeros eventos ligado à formação. Da tua percepção nesses eventos, e não só daí mas também do conhecimento que tens da realidade portuguesa no meio, estamos bem servidos de argumentistas em Portugal?
Convém esclarecer que nos workshops que dirijo, não assumo a pretensão de “gerar” argumentistas de BD ou de qualquer outra área. Pessoalmente, continuo e continuarei sempre a aprender e a melhorar… Por isso, longe de mim esse domínio. O que faço é partilhar o meu método e apresentar uma série de desafios de escrita que geralmente parecem surpreender os formandos de maneira positiva. É sobretudo um espaço de partilha e experimentação. Claro que há bases teóricas e partes que poderiam ser confundidas com “uma aula” mas o intuito destas formações é outro: proporcionar experiências que envolvam a escrita para banda desenhada. As formações correm bem, todos ficam normalmente muito satisfeitos mas há poucos que continuem a insistir. Isto porque não é fácil reservar tempo para a BD nos dias que correm, conciliar com as profissões, arranjar colaboração com ilustradores, etc. Envolve muito trabalho e sacrifício, lidar com frustrações, com as poucas ou nenhumas perspectivas de rentabilidade em Portugal e por aí fora.
No que diz respeito aos argumentistas da nossa praça (que pouco ou nada têm a ver com as minhas formações dado que apenas dois ou três chegaram depois a realizar trabalho e a publicar) não sou tão pessimista como aqueles que repetem há anos o lugar comum de que é tudo uma pobreza até onde a vista alcança. Dizer que “estamos bem servidos” talvez pareça conformista e eu quero sempre que haja mais e melhor, assim como os ilustradores. Nos dias que correm, posso dizer que gosto e leio com prazer alguns portugueses como leio estrangeiros.

A percepção que tenho é que em Portugal, ninguém produz mais histórias do que tu para Banda Desenhada. Colaboras com a revista Cais da elaboração das BD presentes na revista, já publicas-te este ano o livro Hawk pela Kingpin Books, tens a tua série Living Will em produção contínua, Tiras do Baralho pela El Pep, vem aí mais um novo trabalho, Gentleman, entretanto mais umas tiras – O Incrível Tarantantan de Balbino o Esfutricador – para uma revista, entre muitas outras coisas. Ou seja, não paras. Faço, portanto, aqui um pouco um paralelo, nas devidas proporções, claro, com certos argumentistas americanos, que também têm em mãos uma série de trabalhos diferentes todos ao mesmo tempo. É algo que tenho uma enorme curiosidade, como é o teu método de trabalho em relação à gestão de tudo isto, com tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo? Como se faz o click para mudar o foco de umas coisas para as outras?

É uma pergunta muito difícil. Como se eu tivesse um método… O meu ritmo de produção julgo que tem a ver um pouco com a minha maneira de entender a vida. Por alguma razão, apenas quando estou a criar ou a viajar sinto que estou realmente a viver. Portanto, passar os dias a fazer o mesmo, a devorar trash TV ou a ver o tempo a passar seria extremamente doloroso e deprimente para mim. Levanto-me todos os dias de manhã com motivação para fazer algo ou para continuar o que entretanto já comecei. Ao mesmo tempo é um combate constante com a procrastinação porque exijo bastante de mim mesmo, como sou freelancer sou dono do meu tempo e faço questão de o fazer render sempre o melhor possível.
Como disse anteriormente, para mim o acto de contar histórias é uma maneira de elevar a minha própria existência, mas isto não quer dizer que ache que o faço bem. Acho sim que é minha obrigação tentar melhorar, experimentar diversas formas de expressão, várias maneiras de transmitir as ideias e os conceitos que me ocorrem. A minha cabeça está sempre em actividade (e tem de estar porque assumo compromissos regulares que tenho de cumprir) e é assim que me sinto bem. Há alturas em que também estou cansado mas enfim, tenho a sorte de ir fazendo o que gosto. Para muitas pessoas isso nem sequer é uma opção.

Com todos estes trabalhos, tens acabado por trabalhar com inúmeros ilustradores, isso também te tem trazido mais valias ao teu próprio trabalho? Como é essa relação entre o argumentista e o ilustrador?
É sempre positivo conhecer pessoas talentosas (umas mais do que outras, claro) e com todas elas se aprende alguma coisa. Muito daquilo que tem sido a minha evolução deve-se à convivência com outros artistas e criadores, nomeadamente no estúdio onde trabalho, o The Lisbon Studio. Mas sim, já colaboro com muita gente diferente desde os tempos em que co-editava a Zona e essa foi uma experiência extremamente rica que ajudou a definir-me como autor.
A relação de argumentista e ilustrador geralmente é pautada por mim, a forma como construo os meus guiões é objectiva o suficiente (relativamente aos layouts e tudo mais) mas deixa sempre coisas em aberto que podem (devem) ser discutidas pessoalmente ou por chat. O storytelling, o ritmo da história, tem de ser pautado por mim como argumentista mas a relação com os ilustradores é sempre muito próxima. Não é de admirar que muitos eles se tenham tornado amigos pessoais.

Entretanto, formaste a tua própria editora, a Ave Rara. Como surgiu a ideia e o porquê dessa decisão?
A Ave Rara não é uma editora apesar de compreender que possa ser entendida como tal. É uma marca editorial pessoal, gerida por mim sobretudo, e surgiu da vontade de ter algo onde só eu mandasse. Isto porque tenho trabalhado, e continuarei a trabalhar, com outras plataformas, revistas ou editoras e há sempre uma voz de comando que muitas vezes se sobrepõe à minha. Não que não goste de colaborar com os editores com quem colaboro, nada disso, mas numa parcela da minha vida quis ter algo que fosse “o meu discurso”. A Ave Rara nasceu dessa vontade, e de um nome que o Geraldes Lino me chamou no dia em que me conheceu e que eu sempre achei que de certa forma definia aquilo que queria fazer neste meio.

Já com a chancela da Ave Rara inicias-te, juntamente com a Joana Afonso a série “Living Will”, uma BD em 7 partes, escrita em inglês e em que, pelo menos até agora, cada episódio possui um tom de cor diferente. Este é também um titulo que te tem dado alguns prémios este ano, nomeadamente nos Prémios Profissionais de BD e nos Troféus Central Comics. Tendo em conta que também já podemos ver esta Banda Desenhada à venda fora do pais, nomeadamente em Inglaterra, este foi um dos objectivos quando decidiste fazê-la em Inglês? De onde surgiu a ideia, na minha opinião fantástica, de cada capitulo ter o seu próprio tom de cor? E qual a sensação de se ver o trabalho recompensado e reconhecido, quer por quem pertence à indústria, quer pelos próprios leitores?
Living Will é uma história muito pessoal e muito importante para mim. Estou contente com o trabalho da Joana e certo de que não poderia ter encontrado melhor parceira para partilhar uma obra como esta. Estou agradecido pelos prémios e pelas palavras de apreço, é bom para o projecto e para a marca. No entanto, não é nem nunca foi por troféus que faço o que faço, não consigo pensar muito no assunto porque tudo é efémero. Essa é, aliás, uma questão com que me debato muito… Acho que não poucas vezes as pessoas dão demasiada importância a coisas que não a merecem porque a importância de tudo é relativa. O meu ego não se alimenta de prémios, de recompensas ou distinções, na verdade não se alimenta de nada por aí além. Há coisas que faço e que me deixam satisfeito e outras que me deixam frustrado… Continuo a trabalhar como continuo a respirar, é um processo natural para mim.
Relativamente ao formato dos comics, apeteceu-me tentar uma abordagem diferente onde contornasse a barreira do preço num livro de BD portuguesa (tornar o PVP tão baixo que isso nem sequer fosse desculpa para não comprar) e explorar uma forma do ilustrador receber a maior recompensa possível por 16 páginas (para me permitir realizar projectos grandes, pouco a pouco).


O inglês permite-me levar a obra o mais longe possível, em proveito próprio e neste caso da Joana, sem prejuízo em Portugal porque os leitores estão habituados a ler BD nesta língua.
Quanto às 7 cores diferentes, dado que a impressão a 2 cores tem a ver com a redução do custo de produção… porque não variar a reforçar o conceito da obra? Isto do conceito e da ideia sempre foi algo que valorizei muitíssimo e é uma característica que quero trazer para a minha marca. Portanto, faz parte do compromisso da Ave Rara e vai estar patente em todos os seus projectos.

Ainda pegando um pouco no tema da internacionalização, normalmente é mais fácil ao Desenhador globalizar o seu trabalho do que propriamente ao argumentista. Tens alguma ambição nesse aspecto? Os grandes mercados da BD Mundial mexem contigo de alguma maneira?
A minha ambição é só uma: fazer o que gosto cada vez melhor e viver disso. Não tenho nenhum fascínio pelos grandes mercados de banda desenhada, não ambiciono escrever histórias de super-heróis, por exemplo. Gosto de BD indie e muita dela é estrangeira… Portanto, se pudesse, além de fazer BD em Portugal (que gostaria de fazer sempre) gostava de fazer também para fora e ter mais rendimento. É para isso que trabalho, por isso vamos ver.

Se pudesses escolher uma editora e um artista estrangeiros para ilustrar e publicar um trabalho teu, quais seriam as tuas escolhas? E que outros autores segues com mais atenção, ou que mais te influenciam como argumentista? Tens alguma preferência pessoal quanto ao estilo de BD? Franco-Belga, Comics Americanos, Mangá e/ou outros?
Há várias editoras estrangeiras que gosto bastante… a First Second, a Vertigo, Top Shelf… Sei lá. Acho que qualquer uma que demonstrasse interesse já seria uma enorme honra e uma grande sorte também.
Autores há alguns que gosto especialmente como o Paul Pope, Craig Thompson, Jeff Lemire… Mas gosto de outro tipo de registos também e aí já teria de falar noutros nomes. Muito do que leio acaba por influenciar-me de alguma forma e algumas das vezes nem sequer é algo racional. Continuo a dizer que as minhas principais influências estão na minha vida e nas coisas do dia-a-dia, nas pessoas com quem partilho o quotidiano, conversas fortuitas, acontecimentos banais, etc. Tudo faz pensar e pode originar uma história.
Quanto aos estilos de BD não sou especial fã de nenhum desses que enunciaste. Gosto dos registos independentes que não estão presos a nenhuma escola. Às vezes podem pender mais para um registo mas têm sempre um cunho próprio. Deixo-me inspirar por determinados autores, apenas.

Muitas vezes vemos o ilustrador, pelo menos num ou outro caso, a aventurar-se na área do argumento. Não fazendo qualquer ideia se tens ou não jeito para o desenho, achas que alguma vez te vamos ver a fazer as duas coisas, argumento e ilustração?
Sim, já aconteceu mas não acho que tenha muito jeito. Às vezes apetece-me tentar fazer um álbum sozinho mas acho que não saberia lidar com a frustração. Um tipo tem de escolher as suas lutas… a minha é o argumento, a escrita, e aí já tenho desafio que chegue. Só isso já me deixa insatisfeito, desgostoso e irritado comigo mesmo vezes suficientes. Se lhe juntasse o desenho, onde tenho um único estilo limitadíssimo, teria uma bomba em mãos que certamente não passaria das primeiras páginas.

Há algumas séries de BD que queiras destacar ou aconselhar aos nossos leitores?
Sim, leiam e apoiem autores nacionais. “Witch Gauntlet” webcomic do Zé Burnay (http://witchgauntlet.tumblr.com/), a série “Figment” da Marvel com desenho do Filipe Andrade, “Polarity” da Boom Studios com desenho do Jorge Coelho, “Negative Dad” da Wavves com desenho do Rudolfo… Não sou muito de séries mas estas são algumas que vale a pena descobrir e que têm cunho português (embora estejam todas elas em inglês e, à excepção do webcomic, pertençam a editoras estrangeiras).

Andre Oliveira

André Oliveira

Nasceu em Lisboa, Portugal em 1982. É um storyteller acima de tudo e é disso que vive, seja a escrever guiões ou a trabalhar como copywriter em publicidade. Em tudo pode haver uma história e gosta de explora-las. Formou-se em Design de Comunicação, pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e é dos argumentistas de BD mais activos actualmente.
Alguns dos seus trabalhos em Banda Desenhada incluem participações em diversas publicações como o projecto Zona, a série Living Will, Hawk, Tiras do Baralho, entre outros. É actualmente o argumentistas das histórias de banda desenhada presentes na revista Cais. É ainda membro activo do The Lisbon Studio. Podem ver mais dos seus trabalhos no seu site oficial ou segui-lo pelo facebook ou página da Ave Rara.

nota: originalmente publicado no Universo BD, em 22 de setembro de 2014.

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