Texto: Ana Matilde Sousa
Um breve tour pelo manga boys’ love e doujinshi, a partir de Jinrui Wa Suitaishimashita
Escolher um foco de análise dentro do universo labiríntico e multifacetado do manga (banda desenhada japonesa) pode revelar-se uma tarefa difícil. Ao escrever este texto, optei por apresentar dois temas que me são caros e irremediavelmente interligados: a banda desenhada para raparigas – conhecida como shoujo manga –, e o movimento do manga amador autopublicado, os doujinshi. Apesar da atenção crescente que o shoujo manga tem vindo a atrair no Ocidente desde os anos 90 (resultando num corpus significativo de produção académica sobre o tema), bem como da escala massiva da subcultura doujinshi (que demonstra que o manga não se limita à banda desenhada publicada comercialmente), ambos permanecem facetas menos conhecidas do público em geral.
O meu objectivo é, pois, dar a conhecer um pouco desta história, mas fazê-lo através de uma sua instância de reinterpretação contemporânea, que possa acrescentar algo ao trabalho histórico e antropológico já extensamente realizado por múltiplos autores (para os interessados, os sites de Matt Thorn e Sharon Kinsella são um bom sítio para começar). Ancorar este tour no terceiro episódio da série de animação Jinrui Wa Suitaishimashita, de 2012 é precisamente fruto desta preferência: recontar os factos através de uma história contrafactual, em que acompanhamos a Heroína (sem nome) e a sua amiga, Y, na (re)descoberta destas subculturas “perdidas” num futuro pós-apocalíptico.
Por outro lado, começar a falar de manga através da sua representação no anime (e num anime que é, por sua vez, baseado numa novela) é, também, uma forma de enfatizar que o manga não está sozinho. Cada vez mais, a transmedialização é um aspecto crucial para compreendermos a cultura popular japonesa, em que muitas vezes um único projecto ou conceito se desenvolve em múltiplos meios – um tipo de “ekprasis expandida” (1) à escala industrial. O caso de Jinrui Wa Suitaishimashita é particular, uma vez que o medium do anime é utilizado para reflectir sobre a história, política(s) e características de um género específico de banda desenhada, o boys’ love. E, apesar de não ter havido oportunidade para o abordar, vale a pena referir que, no episódio seguinte, a Heroína e Y (quais Alices num País das Maravilhas) acabam por “cair” dentro de uma página de manga, com onomatopeias, linhas de ênfase e uma luta sem tréguas para evitar o cancelamento da sua série.
O texto que se segue divide-se em cinco pontos: I. Ii Kanji no Koi, ou uma técnica perdida; II. Kusunoki, ou o boys’ love como laço entre raparigas; III. Douruishi, ou a Renascença dos doujinshi; IV. Shinamon e Dabide no Baraen, ou o yaoi e um “festival para jovens raparigas”; e V. Uma conclusão para o Monumento ao Humano. Espero que, no final, esta síntese d’après Jinrui Wa Suitashimashita possa chamar a atenção para o papel singular que a cultura feminina e amadora ocupa na criação, produção e distribuição da banda desenhada no Japão.
I. Ii Kanji no Koi, ou uma técnica perdida
Em “Yousei-san-tachi no, Sabukaru” (“A Subcultura das Fadas”), o terceiro episódio de um anime de 2012 chamado Jinrui Wa Suitaishimashita – espécie de Heidi-meets-David-Lynch, passado num futuro agrário em que a humanidade está à beira da extinção (o título significa, literalmente, “A Humanidade Entrou Em Declínio”) –, a Heroína recebe uma visita da sua amiga Y. Y está encarregue de recolher informação para o Projecto do Monumento ao Humano, descrito como “uma estrutura dedicada a celebrar a história, tecnologia e cultura humana”. Durante a inventariação dos bens de uma mansão próxima da vila da Heroína, cujo proprietário faleceu, Y encontra uma velha máquina fotocopiadora, uma máquina de impressão rotativa e várias caixas de CDs com “dados”.
Quando, no dia seguinte, a Heroína se dirige à vila, dá de caras com uma cena inédita: por todo o lado, há grupos de jovens raparigas, às risadinhas e de faces ruborizadas, em volta de uma misteriosa publicação. Esta publicação – que, rapidamente, a Heroína percebe serem os “dados” descobertos por Y – é, nada mais, nada menos, do que uma banda desenhada intitulada Ii Kanji no Koi (algo como, “Um Bom Amor”).
Numa divertidíssima sequência ecfrástica (em que medium da animação representa o medium da banda desenhada), são-nos mostradas várias vinhetas deste (pseudo) manga num estilo vintage, enquanto a Heroína faz uma narração sinóptica dos acontecimentos:
Jackie é uma rapariga normal que tem vergonha das suas sardas. Um dia Jackie choca contra um rapaz malcriado e envolve-se numa grande briga. No dia seguinte, esse rapaz apresenta-se na escola como um estudante transferido. No final, esse rapaz gosta de outros rapazes, e acontece que Jackie é um rapaz trasvestido.
A Heroína tem um momento de epifania perante as qualidades vicariantes deste “novo” medium. “Cenários desenhados com precisão mecânica. Personagens com designs únicos que ainda assim permanecem uniformes. Um ofício há muito perdido da humanidade; uma tecnologia perdida! Não, uma técnica perdida!”. Mas quando finalmente se dirige ao “quartel general” de Y – a morada agora rebaptizada Mansão do Manga –, descobre que esta, usando como desculpa o Projecto do Monumento ao Humano e auxiliada por uma equipa de raparigas absolutamente compenetradas nas suas tarefas, está a deixar-se arrastar por uma megaoperação de “salvamento de informação”.
Quando questionada pela Heroína sobre as suas intenções, Y informa-a, com os olhos brilhantes de excitação (e alguma condescendência), de que o que têm em mãos não é uma qualquer “alta cultura snob”, mas sim uma “baixa e suja subcultura”. “Por outras palavras,” relata a Heroína para o espectador, “ela estava viciada. Em quê? No medium do manga, que permitia representações vívidas das mais selvagens fantasias”.
O que se segue, daí para a frente, é toda uma história contrafactual dos doujinshi (fanzines autopublicados) e, em particular, da importância central da subcultura feminina no desenvolvimento do movimento do manga amador. Ii Kanji no Koi é, também, uma paródia e uma homenagem à longa obsessão do shoujo manga (banda desenhada para raparigas) com o género e a sexualidade; uma que, na sua forma moderna, recua até ao icónico Ribon no Kishi (em inglês, Princess Knight) de Osamu Tezuka. A súbita metamorfose da heroína normal de um normal romance para raparigas – um ameno “bom amor” – em miúdos gender bender e relações gay entre rapazes, é representativa do género que estará na base do Renascimento do manga encetado por Y: conhecido por vários nomes, trata-se do shounen-ai, yaoi, boys’ love ou, simplesmente, BL.
II. Kusunoki, ou o boys’ love como laço entre raparigas
Depois do sucesso de Ii Kanji no Koi, Y dedica-se de corpo e alma à edição semanal de uma revista com o nome da vila – Kusunoki (“Canforeiro”), a árvore da canela –, onde publica a joia perdida Onna Nanka Ni Omae Wo Watasanai! (“Não Deixarei Uma Mulher Ter-te!”. “Quem é que se lembrou desse título horrível?”, pergunta a Heroína, mas o seu comentário resvala na parede de entusiasmo borderline autista de Y).
Y maravilha-se com a materialidade do objecto – “Trinta e cinco páginas B5 em impressão offset! Uma capa laminada totalmente a cores! Esta obra de arte vai chamar a atenção por todo o lado!” –; e, de facto, em poucos dias começam a chegar à Mansão do Manga caixas e caixas de fan mail de raparigas adolescentes apaixonadas pelo romance homoerótico entre o “alto e temerário” Matthew e o “pequeno e adorável” Eric.
Este fenómeno cultural que toma de assalto as pacatas vilas alpinas de Jinrui Wa Suitaishimashita – que, daqui em diante, abreviarei para o seu nickname corrente, Jintai – é, claro está, uma reencenação livre do boom do boys’ love na era dourada do manga shoujo (o título Kusunoki pisca o olho ao universo vegetal das revistas de banda desenhada para raparigas dos anos 70, como Margaret ou Hana to Yume, “Flores e Sonhos”). “Boys’ love” é o nome genérico para um tipo de banda desenhada (ou outro tipo de produções, como anime e novelas) caracterizada por histórias sobre relações homossexuais entre rapazes, dirigidas a um público feminino e escritas e ilustradas por mulheres. Historicamente, o género tem as suas origens na pena de autoras como Moto Hagio (The Heart of Thomas), Keiko Takemiya (Song of the Wind and the Trees), Yasuko Aoike (From Eroika With Love), Ryoko Ikeda (The Rose of Versailles) e outras do chamado Grupo das Flores do Ano 24 (Hana no Nijuuyonen Gumi), que revolucionou a banda desenhada para raparigas na década de 70.
No contexto do pós-guerra japonês, em que o manga shoujo era, na sua maioria, escrito por homens adultos para meninas pré-adolescentes (e em que, salvo algumas excepções, o romance era largamente tabu), o Grupo das Flores do Ano 24 surge como resposta a uma necessidade de romper com os limites impostos à navegação emocional das raparigas. Como escreve Matt Thorn no prefácio da edição inglesa de The Heart of Thomas (Fantagraphics), isto implicava que as raparigas criassem “histórias que os seus pais não aprovassem” (2). O florescer desta nova sensibilidade assume, assim, contornos de uma “fuga de casa”: por um lado, estar em qualquer sítio menos no Japão, algo que nas obras seminais de boys’ love é figurado no palco nostálgico e inalcançável de um Ocidente idealizado (os nomes “Matthew” e “Eric”, em Kusunoki, ilustram este encantamento com personagens europeus); por outro, escapar o mais possível às identidades rígidas e papéis sociais impostos pela inflexibilidade dos modelos tradicionais. Utilizando a homossexualidade entre bishounen (“pretty boys”) como forma de ultrapassar a normatividade da relação heterossexual, tornava-se possível colocar o romance numa dimensão “aberta”, liberta tanto da familiaridade com a fisiologia feminina, como das construções tradicionais da masculinidade – no sentido em que os rapazes se tornam veículos para a expressão dos sentimentos e desejos das raparigas (3).
Por outro lado, apesar desta girls’ culture assentar numa “baixa e suja subcultura” – no Japão, o termo que define uma fã de boys’ love é “fujoshi”, que significa “rapariga podre” –, esta “podridão” contrasta com as cartas escritas numa linguagem abertamente feminina e decoradas com flores, corações, ursinhos e outros motivos cute, num pacote completo de girliness (que, aliás, não cessa de alienar a bastante mais terra-a-terra Heroína). Deste modo, a torrente de fan mail que chega à Mansão do Manga capta o modo como o boys’ love (a par de outros movimentos coevos, como a cultura kawaii) contribuiu para a instauração de um novo regime de comunicação interpares e expressão de sentimentos e emoções de forma íntima e livre (4). Estabelecer laços entre raparigas, assentes na partilha destas fantasias “podres”, tornou-se numa das funções sociais mais distintivas do género boys’ love.
III. Douruishi, ou a Renascença dos doujinshi
Ao segundo volume de Kusunoki, Y baptiza este novo tipo de revistas com o nome “douruishi”, um trocadilho com o termo “doujinshi”. A palavra “doujinshi” (que significa “revista de nicho”) é utilizada para descrever, simultaneamente, edições de autor, geralmente fanzines de manga ou trabalhos literários, a subcultura agregada em torno dessas publicações, e o movimento artístico underground que tem as suas origens no circuito paralelo, aberto e descentralizado que ficou conhecido como “minikomi” (de “mini-comunicação)” (5).
Contudo, a disseminação estrondosa da cultura douruishi, apanha de surpresa a própria Y, que uns dias mais tarde aparece à beira de um ataque de nervos na residência da Heroína. “Olha para isto!”, diz aflitíssima, mostrando-lhe uma série de novas publicações com nomes de árvores – Kunugi (“Carvalho”)’ Nemunoki (“Albizia”), Wiroo (“Cipestre”) – e manchetes sugestivas como “Doce e apaixonado rapaz-conhece-rapaz!”, “Uma antologia avant-garde?! sem mulheres”, “Histórias excitantes de homem com homem!”. “As leitoras do Kusunoki estão a publicar as suas próprias revistas!”, lamenta-se, “Roubaram-me a ideia…”. Para escândalo de Y, nesse momento a Heroína irrompe em gargalhadas. “É um motim!”, diz. Mas, de seguida, tranquiliza a sua amiga à beira das lágrimas: “É assim que a cultura se espalha. Quando alguém tem uma ideia nova, é imediatamente copiado. É normal que tal aconteça!”. E acrescenta: “A tua função, enquanto original, é publicar revistas de melhor qualidade!”.
Espicaçada pela concorrência e levando a peito o conselho da Heroína, Y reage imediatamente e com uma intensidade renovada: cria uma verdadeira linha de produção de banda desenhada boys’ love, transforma a sua revista num “círculo” (nome dado a um colectivo de artistas de doujishi), expande a distribuição e organiza workshops na Mansão do Manga.
O resultado colateral desta hiperactividade é um influxo de novas publicações (“Morus”, “Cedro”, “Cânhamo”, “Cereja”, “Camélia”, “Magnólia”, “Azálea”…), originando mais de trinta novos círculos e estabelecendo um verdadeiro movimento cultural, com uma base sólida de produtores-consumidores. “Sim,” narra a Heroína, “a Y tinha mesmo começado um renascimento da cultura do manga. Estava a fabricar-se uma Renascença!”
IV. Shinamon e Dabide no Baraen, ou o yaoi e um “festival para jovens raparigas”
No pico desta vaga de competição intensiva entre revistas, o círculo de Y lança uma bomba: uma nova publicação intitulada Shinamon (“Canela”). Segundo a Heroína, a Shinamon era “uma revista com duzentas e dezasseis páginas de contos escritos por autoras contemporâneas”, que varreu a concorrência em termos de volume e qualidade. Com o seu “estilo de escrita desavergonhado que deixava pouco à imaginação”, redefiniu o mundo dos douruishi e trouxe ao círculo de Y uma popularidade sem precedentes.
Pode dizer-se que a Shinamon assinala a passagem do homoerotismo quasi-platónico do Grupo das Flores do Ano 24 (mais estritamente definido como “shounen ai”, i.e., “amor de rapazes”), para o estilo mais explícito (não raras vezes roçando o hardcore) do género yaoi, emergido nos anos 80. A adopção espirituosa da expressão “yaoi” para definir o género – um acrónimo auto-depreciativo composto pelas primeiras sílabas da frase “yama nashi, ochi nashi, imi nashi”, ou seja, “sem build-up, sem puch line, sem sentido” (6) –, testemunha um desinteresse assumido pelos conceitos tradicionais de “narrativa”, “autor” e “originalidade”, em favor da adesão a uma sensibilidade camp (com um sabor distintamente pós-moderno), em que a aparência simbólica dos personagens e as emoções se tornaram mais importantes do que o enredo (7).
O boom do yaoi na década de 80 traz consigo, também, o advento da “era Comiket”. É isso que vemos acontecer no Jintai, quando Y se vê de repente confrontada com uma dificuldade imprevista: a produção de douruishi aumenta de forma tão descomunal que os transportadores locais se amotinam. “As vossas revistas são muito pesadas. E são demasiadas!”, dizem. “Ficamos sem espaço para as necessidades diárias. Desculpem, mas vão ter de ser vocês a distribuir isto, ok?”. Depois de um momento inicial de pânico, Y – sempre na vanguarda – concebe uma ideia revolucionária para resolver o aperto: uma feira de douruishi, em que o leitor tem de vir até ao escritor. Assim nasce a feira Dabide no Baraen (“Jardim de Rosas de David”), realizada no edifício onde reside a Heroína com o seu avô, o Professor. Atraindo milhares de jovens vindas de todas as partes do país, o evento revela-se um sucesso avassalador. De uma janela, um assistente do avô da Heroína observa a fila que se estende até ao horizonte. “Professor, o que é isto?”, pergunta pasmado. “Parece que é um festival para jovens raparigas,” reponde o Professor serenamente, enquanto completa um modelo de barco. “Todas trouxeram o seu próprio almoço, por isso basta ir mantendo um olho nelas”.
Para além das filas intermináveis, a corrida desenfreada às dezenas de círculos de douruishi, a disposição dos stands e o ambiente de camaradagem e rivalidade amigável não deixam dúvidas de que esta feira organizada por Y é, na realidade, um alter-Comic Market no universo do Jintai. O Comic Market, ou mais comumente Comiket, é uma das maiores convenções de banda desenhada do mundo, especializada na venda de doujinshi. Realizada duas vezes por ano desde 1975 (a meio de Agosto e a meio de Dezembro), atingiu em 2009, o número record de 560 000 visitantes, aproximadamente 4,5% da população de Tóquio (8). Apesar de, actualmente, ser o evento otaku (nerd ou geek) por excelência, a Comiket surgiu como uma forma de divulgação do circuito alternativo dos doujinshi, em resposta à hegemonia das grandes companhias e distribuidoras (9). Note-se que, até 1988, 80% dos participantes na Comiket eram mulheres (apenas em 1992 a percentagem de homens aumentou acima dos 35%) (10), e que várias autoras do Grupo das Flores do Ano 24 (como Moto Hagio e Keiko Takemiya) começaram por publicar doujinshi antes de penetrarem no circuito comercial (11). Como afirma Sharon Kinsella:
o número de mulheres a fazer doujinshi aumentou rapidamente depois de estabelecido o Comic Market, de tal forma que o primeiro resultado do súbito aumento da acessibilidade geral do medium do manga foi um novo movimento de manga amador engendrado por mulheres (12).
V. Uma conclusão para o Monumento ao Humano
No final do dia e milhares de cópias de douruishi vendidas depois, os círculos rivais de Y e de outras raparigas apertam as mãos cordialmente à luz do pôr-do-sol, jurando voltar a defrontar-se na próxima feira. “Ah, os douruishi são verdadeiramente maravilhosos!”, diz a Heroína, comovida (para logo de seguida acrescentar: “Excepto que eu não compro nada dessa porcaria.”). “Talvez seja apenas divertido pertencer a um grupo que partilha dos mesmos interesses que nós”, conclui, “independentemente de quais sejam”.
No seu livro The Female Complaint: The Unfinished Business of Sentimentality in American Culture (2008), Laura Berlant enuncia uma ideia semelhante a propósito da women’s culture nos Estados Unidos da América. Sugerindo que determinados bens de consumo de massas (commodities) podem servir como mediadores de uma “conversa íntima” na esfera pública entre membros de comunidades não-dominantes, diz-nos que:
Uma das principais funções das artes menorizadas que circulam na cultura popular é dizer aos consumidores que com elas se identificam que “vocês não estão sozinhos (nas vossas lutas, desejos, prazeres)”: isto é algo que sabemos mas nunca nos cansamos de ouvir, porque estar-se sozinho é uma das experiências afectivas de ser-se colectivamente, estruturalmente desprivilegiado. (13)
À luz deste pressuposto, talvez não seja surpreendente que o género do boys’ love tenha emergido como este espaço comunal “íntimo”, num contexto japonês em que, apesar de alterações significativas nas últimas décadas, as expectativas sobre a sexualidade e papéis de género tradicionais continuam a exercer um peso significativo sobre as raparigas (e, não menos, sobre os rapazes). Porém, tendo em conta a expansão massiva da cultura do boys’ love para o Ocidente na última década (e fenómenos paralelos como a slash fiction), podemos assumir que a necessidade desta “conversa íntima” tem, afinal, um carácter bem mais global (14).
Assim, apesar do seu humor (por vezes mirabolante) e espírito satírico, a história contrafactual do boys’ love e doujinshi no Jintai sublinha algumas características particulares da indústria da banda desenhada japonesa. Por um lado, uma participação em massa das raparigas na criação, produção e distribuição de banda desenhada – tanto a nível profissional, como amador –, que dificilmente encontra paralelo noutra parte do globo. Por outro, a preponderância do género boys’ love no universo do manga para raparigas, numa utilização colectiva do medium da banda desenhada para representações (mais ou menos explícitas) da sexualidade e fantasias sexuais femininas. E, num âmbito mais geral, a escala do movimento do manga amador (que incluiu outros géneros, como o lolicon, dirigido a homens), que rivaliza com a banda desenhada comercial e atesta à importância das práticas dos fãs na produção de banda desenhada no Japão. Por isso, e voltando ao Jintai, é interessante pensarmos que aquilo que ficará registado para a posterioridade no Monumento ao Humano não será um Osamu Tezuka… mas essa “baixa e suja subcultura” dos douruishi homoeróticos, criados por raparigas, para raparigas.
Notas:
(1) Laura Eidt, Writing and Filming the Painting: Ekphrasis in Literature and Film (Amesterdão: Rodopi, 2008), passin.
(2) Matt Thorn, “Introduction”, in Heart of Thomas (Seattle: Fantagraphics Books), 521.
(3) Olga Antononoka, “Bishonen – the Four Elements” (comunicação apresentada em Examining “Women’s Manga”: Research Reports by 5 Graduate Students, co-organizado pelo Kyoto Seika University International Manga Research Center, Kyoto Seika University Graduate School of Manga e Women’s MANGA Research Projects, Julho 16, 2011), 2-3.
(4) Sharon Kinsella, “Cuties in Japan”, in Women Media and Consumption in Japan, ed. Brian Moeran e Lise Skov (Honolulu: University of Hawaii Press, 1995), 224.
(5) Sharon Kinsella, Adult Manga: Culture and Power in Contemporary Japanese Society (Londres: Routledge, 2000), 104-105.
(6) Sharon Kinsella, Adult Manga, 113.
(7) Kinsella, Adult Manga, 116-121.
(8) Quen, “Record Numbers at Comiket 76: 560,000 Attendees”, Sankaku Complex, 17 de Agosto, 2009.
(9) Kinsella, Adult Manga, 104-106.
(10) Kinsella, Adult Manga, 112.
(11) Ibid.
(12) Ibid.
(13) Laura Berlant, The Female Complaint: The Unfinished Business of Sentimentality in American Culture (Durham, EUA: Duke University Press),
(14) Amy Ann O’Brien, “Boys’ Love and Female Friendships: The Subculture of Yaoi as a Social Bond between Women” (diss. de mestrado, Georgia State University, 2008), passin.
Bibliografia:
Berlant, Laura. The Female Complaint: The Unfinished Business of Sentimentality in American Culture. Durham, EUA: Duke University Press, 2008.
EIDT, Laura. Writing and Filming the Painting: Ekphrasis in Literature and Film. Amesterdão: Rodopi, 2008.
Kinsella, Sharon. Adult Manga: Culture and Power in Contemporary Japanese Society. Londres: Routledge, 2000.
Kinsella, Sharon “Cuties in Japan”. In Women Media and Consumption in Japan, edited by Lise Skov & Brian Moeran, 220-254. Honolulu: University of Hawaii Press, 1995. Acedido 21 de Dezembro, 2013, < http://www.kinsellaresearch.com/new/Cuties%20in%20Japan.pdf >.
O’Brien, Amy Ann. “Boys’ Love and Female Friendships: The Subculture of Yaoi as a Social Bond between Women”. Dissertação de mestrado, Georgia State University, 2008. Acedido 21 de Dezembro, 2013, < http://scholarworks.gsu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1027&context=anthro_theses >.
Sankaku Complex, < http://www.sankakucomplex.com/2009/08/17/record-numbers-at-comiket-76-560000-attendees/ >.
Thorn, Matthew. “Introduction”. In The Heart of Thomas, 521-519. Seattle: Fantagraphics Books, 2012.
Thorn, Matthew. “The Multi-Faceted Universe of Shojo Manga” (apresentado em Le manga, 60 ans apès…, Paris, Março 15, 2008). Acedido 21 de Dezembro, 2013, < http://matt-thorn.com/shoujo_manga/colloque/index.php >.
Thorn, Matthew. “Shojo Manga – Something for the Girls.” The Japan Quarterly Vol. 48, Nº 3 (2001). Acedido 21 de Dezembro, 2013, < http://matt-thorn.com/shoujo_manga/japan_quarterly/index.php >.
Imagens:
Figura 2: Anime International Company, Inc (estúdio de animação). 2012. Imagem promocional do anime Jinrui Wa Suitashimashita. Japão. Recolhida a 21 de Dezembro, 2013, em < http://www.zerochan.net/1225657 >.
Figura 8: Osamu Tezuka (artista de banda desenhada), Kodansha (editora). 1977. Capa do primeiro volume de Ribon no Kishi da edição Tezuka Osamu Manga Zenshuu. Japão. Recolhida a 21 de Dezembro, 2013, em < http://en.wikipedia.org/wiki/File:Princess_Knight-1.jpg >.
Figura 11: (À esquerda) Moto Hagio (artista de banda desenhada), Shogakukan – Flower Comics (editora). 1974. Capa do primeiro volume de Tooma no Shinzuo. Japão. Recolhida a 21 de Dezembro, 2013, em < http://en.wikipedia.org/wiki/File:Heart_of_Thomas_Moto_Hagio.jpg >.
(Ao centro) Keiko Takemiya (artista de banda desenhada), Shogakukan – Flower Comics (editora). 1976-1984. Capa do sexto volume de Kaze to Ki no Uta. Japão. Recolhida a 21 de Dezembro, 2013, em < http://mangacurmudgeon.mangabookshelf.com/2011/04/13/the-josei-alphabet-k/ >.
(À direita) Yasuko Aoike (artista de banda desenhada), Akita Publishing Co. (editora). 2006. Capa do trigésimo quarto volume de Eroika Yori Ai Wo Komete. Japão. Recolhida a 21 de Dezembro, 2013, em < http://en.wikipedia.org/wiki/File:Eroica_vol34.jpg >.
Figura 18: (À esquerda) Yamane Ayano (artista de banda desenhada), Libre Publishing (editora). 2007. Capa do primeiro volume de Faindaa no Hyouteki. Japão. Recolhida a 21 de Dezembro, 2013, em < http://en.wikipedia.org/wiki/File:Target_in_the_Finder.jpg >.
(À direita) Shungiku Nakamura. (artista de banda desenhada), Kadokawa Shoten (editora). 2002. Capa do primeiro volume de Junjou Romanchika. Japão. Recolhida a 21 de Dezembro, 2013, em < http://en.wikipedia.org/wiki/File:Junjoromantica.jpg >.
Figura 20: S/a, Tim Eldred (montagem). 2013 (montagem). Fotografias do Comic Market de 1978 (à esquerda) e de 2008 (à direita). Recolhida a 21 de Dezembro, 2013, em < http://ourstarblazers.com/vault/268/ >.
Figura 22: Bartman905 (fotógrafo). 2009. Fotografia do interior do Comic Market. Recolhida a 21 de Dezembro, 2013, em < http://bartman905.wordpress.com/2009/08/19/comiket-76/ >.
Restantes figuras: Romeo Tanaka (criador da série e escritor da light novel), Sunaho Tobe (design original das personagens e ilustrador da light novel), Seiji Kishi (realizador do anime), Makoto Uezu (guião do anime), Kyuuta Sakai (director da animação), Anime International Company, Inc (estúdio de animação). 16 de Julho, 2012. Jinrui Wa Suitashimashita – “Yousei-san-tachi no, Sabukaru” (“A Subcultura da Fadas”) [3º episódio do anime, 25’, cor, som]. Japão. Stills capturados pela autora.
Artigos realizados por colaboradores do Bandas Desenhadas.