Candidatura a prémios de BD – existe iniquidade?

Candidatura a prémios de BD – existe iniquidade?

Uma semana após serem conhecidas as normas de participação dos Prémios Nacionais de Banda Desenhada, o coletivo Clube do Inferno manifesta o seu descontentamento com a ausência de alterações naquelas que dizem respeito ao processo de candidatura, tendo realizado uma petição pública para serem realizadas alterações ao regulamento e apresentado propostas nesse sentido.

Tal como em muitas áreas, os Prémios Nacionais de Banda Desenhada (PNBD) preveem uma candidatura ativa das obras. Transcrevendo (negrito nosso):

Podem concorrer aos Prémios Nacionais de Banda Desenhada, todos os álbuns/livros de BD publicados em português por uma editora portuguesa entre Agosto de 2014 e Julho de 2015 (inclusive). Serão consideradas as datas de depósito legal, sendo desejável que os livros já se encontrem distribuídos no mercado livreiro. Cabe às editoras e/ou autores o envio de todos os álbuns, livros e fanzines (seis exemplares de cada que serão distribuídos pelo Júri), devidamente acompanhados por uma listagem que defina a que prémios cada publicação concorre e se são novidades ou reedições. Os concorrentes deverão acompanhar os álbuns/livros de uma biografia e foto do(s) respectivo(s) autor(es). Os álbuns entregues pelas editoras/autores ficarão na posse dos elementos do Júri, caso assim o entendam, com exceção das do diretor do AmadoraBD, cujos álbuns integrarão a Bedeteca da Amadora. O sexto exemplar será para exposição e consulta pelo público no AmadoraBD. A data limite para entrega/envio das candidaturas (listagens e 6 exemplares de cada livro) é até às 17:00 horas do dia 7 de Setembro de 2015, devendo estas ser feitas para:
Festival Internacional de Banda Desenhada
CMA/Recreios da Amadora
Av. Santos Mattos, n.º2
2700-748 Amadora – Portugal.
(Tel.: 214 369 055)

A proposta do Clube do Inferno é simples e alberga três alterações ao regulamento: a) que concomitantemente seja possível aos interessados candidatarem-se com o envio de obras em formato digital; b) que os que optarem pelo envio digital no momento da candidatura apenas sejam obrigados a remeter os álbuns, livros ou fanzines se forem nomeados; e c) que o número mínimo de exemplares físicos a ser remetido seja de 2 ao invés dos 6 exemplares.

Se o ano passado o Clube já tinha criticado esta situação na sua página do facebook, este ano é proativo, com a realização da petição pública. Transcreve-se as propostas de alteração com o texto integral:

1. Sobre a pré-selecção e inventariação de obras a concurso, propomos que esteja disponível a opção de envio em formato digital (ficheiro PDF). Ainda que não possa substituir-se ao objecto físico, que merece ser avaliado, permite cobrir o risco aos autores e às editoras, em particular os independentes, de baixas tiragens, que deixam de ter que enviar 6 cópias sem retorno.
2. Após as nomeações, propomos que se mantenha como regra o envio do objecto físico, mas em quantidades menores: um exemplar para o júri, e outro para o Festival, a ser cedido à Bedeteca da Amadora depois do evento.

Não será de estranhar a proposta surgir num seio de autores e faneditores de baixas tiragens, uma vez que a crítica da obrigatoriedade do envio físico de 6 exemplares tem sido realizada mais frequentemente, ora no domínio público ora na esfera privada, por autores autoeditados e editores especializados em pequenas tiragens, para os quais o número de exemplares obrigatórios a enviar no momento da candidatura representa uma percentagem maior da tiragem total. Quem sabe, se existisse em Portugal um mercado especializado em edições de luxo de banda desenhada com baixa tiragem, publicadas pelos grandes grupos editoriais, talvez as vozes de outros agentes se adicionassem àqueles. Ou, quiça, a elasticidade que um plano editorial permite a uma grande grupo fosse suficiente para que não mais vozes se levantassem.

Esta petição do Clube do Inferno foi um mote para refletirmos sobre o processo das candidaturas aos prémios em geral, focalizando nas normas de participação dos Prémios Nacionais de Banda Desenhada (PNBD), visto serem atualmente os (únicos?) galardões na área que obrigam a este procedimento. O que nos interessa em particular é uma tentativa de responder à questão: existe equidade entre os interessados à candidatura? Analisaremos as normas referentes aos PNBD, bem como as vantagens e desvantagens de realizar determinadas alterações às mesmas. E terminaremos com uma breve reflexão sobre se as diferentes formas de apresentação de uma obra aos jurados pode ou não influenciar a sua nomeação ou votação.

Aparentemente, o princípio da equidade estaria expresso na primeira frase transcrita das “Normas de Participação nos PNBD”: Podem concorrer (…) todos os livros/álbuns de BD (…).

Podem? Na verdade, de acordo com as próprias normas, não podem. Quem não pode? Os que não possuam 6 exemplares. Este facto não está relacionado com se tratar de uma edição de autor ou do maior grupo editorial nacional ou internacional. Se interpretarmos textualmente as normas de participação, se o autor ou editor não estiver na posse de 6 exemplares, aparentemente não se pode candidatar. E, portanto, há uma iniquidade de teor físico na possibilidade de realizar a candidatura ativa.

Se estes ou outros prémios considerassem concomitantemente ser possível realizar a candidatura com a publicação por via digital, isso resolveria a situação anterior? A resposta provável seria que resolveria a maioria dos casos em que não existem exemplares físicos para serem remetidos e em que a digitalização exista ou seja possível realizar. Mas poderá ser um adiar do problema se os mesmos forem de apresentação obrigatória posterior, no caso de virem a ser nomeados (como defende o Clube do Inferno, tendo os exemplares por fim a mostra e a Bedeteca da Amadora, no caso concreto dos PNBD). Na verdade, apenas o término da obrigatoriedade da apresentação de exemplares físicos resolveria esta última questão quando o autor/editor não tem o número mínimo de exemplares físicos exigido para ser enviado.

Se resolveria a maioria dos casos, quais ficariam por resolver? Existe um grupo, provavelmente de menor dimensão, que não poderia concorrer caso não existissem exemplares físicos para envio, inclusive se a candidatura através do formato digital fosse permitida: as publicações-objeto ou todas as demais em que a digitalização não permita uma reprodução exata/próxima da obra, bem como as demais publicações em que não está disponível um formato digital nem o mesmo é passível de ser realizado em tempo útil. Seria impossível candidatarem-se por via digital? Provavelmente. Deveriam ser vencidos pelo desânimo? Imaginamos que poderia ser filmada uma experiência de interação com uma publicação-objeto, fazer uma sessão fotográfica e/ou outros métodos e meios mais imaginativos que reproduzissem o mais fielmente possível a obra. Compete à entidade organizadora (e não ao júri) a resolução dos casos omissos nas normas de participação…

Se, no cenário que criámos, se substituísse os autores/editores que querem se candidatar mas não possuem os exemplares exigidos por quem os possui (independente do número exigido) mas não quer enviar no momento da candidatura, haveria alguma diferença significativa? A mais importante será talvez que, além de tal permitir a candidatura, o autor/editor pode cumprir com o envio obrigatório de exemplares físicos após ser nomeado.

Pelo facto dos PNBD decorrerem inseridos num Festival no qual uma das mostras é a exposição física das obras nomeadas, entendemos que este eventual corolário de envio obrigatório apenas se a obra for nomeada, insere um factor de risco para a Organização do AmadoraBD quanto a se as obras nomeadas são remetidas em tempo útil ou de todo. Sublinhe-se o termo física, uma vez que se poderia eventualmente conceber que para a apresentação das obras nomeadas não remetidas fosse realizada uma exposição por via digital, através da colocação de dispositivos para esse efeito na mostra. Neste caso, ter-se-ia de assumir também que não era a obra em si que estava exposta mas uma representação da mesma. Outra solução seria, por exemplo, exigir um exemplar físico com a candidatura (o que talvez gerasse maior aceitação por parte dos que não estão interessados em remeter 6), garantindo assim que, por exemplo, a Bedeteca da Amadora receberia um exemplar de todas as obras concorrentes, fossem as mesmas nomeadas ou não.

Segundo as normas de participação dos PNBD, atualmente, os exigidos 6 exemplares (…) ficarão na posse dos elementos do Júri, caso assim o entendam, com exceção das do diretor do AmadoraBD, cujos álbuns integrarão a Bedeteca da Amadora. O sexto exemplar será para exposição e consulta pelo público no AmadoraBD. Perante as regras, compete a cada autor/editor realizar ou não a candidatura, conforme se aceita ou não as mesmas. Haverá quem valorize mais candidatar-se a um prémio (no limite, pode existir até quem publique apenas 6 exemplares para remeter ao Amadora BD e se candidatar ao PNBD), quem esteja mais interessado na eventual visibilidade que ganhará se a obra for exposta, quem opte pela retribuição financeira da venda dos exemplares, ou até quem deseje que a sua publicação seja lida preferencialmente por um perfil de leitores que não o dos jurados…

No entanto, caso as normas fossem alteradas com a introdução da opção da candidatura digital, o júri receberia um conjunto de publicações físicas dos autores/editores que remetessem as obras em formato físico e um conjunto de ficheiros digitais dos autores/editores que remetessem em formato digital, competindo à organização garantir que a forma de apresentação não causasse nenhuma situação de iniquidade no processo de pré-seleção e nomeações pelos jurados.

Se, atendendo à atual conjuntura, parecem existir diversas publicações independentes que não se candidatam, podemos presumir que a redução das despesas associadas à candidatura seria benéfica, por permitir uma maior representatividade das obras nas diferentes categorias. Saliente-se que, por exemplo, nos últimos 2 anos, a categoria fanzine nunca teve direito às 5 nomeações da praxe.

Para complicar um pouco a questão, há um dado importante que deve ser acrescentado à discussão e que versa as nomeações, constando também das normas de participação dos Prémios Nacionais de Banda Desenhada:

A organização entregará a cada elemento do Júri um exemplar das publicações a concurso que cheguem atempadamente ao AmadoraBD.
Cada elemento do júri poderá pré-selecionar até 10 álbuns para cada categoria que apresentará na Reunião de Júri.
Os membros do júri poderão nomear outros álbuns que não constem da listagem, devendo para tal comunicar antecipadamente os dados e apresentar à organização a publicação em causa.

Ou seja, podemos interpretar que não existe obrigatoriedade dos editores e autores se candidatarem ativamente, podendo ser os jurados a ter, nesse caso, o papel insubstituível de os apresentar à Organização. Aqui, regressa-se à frase: Podem concorrer (…) todos os livros/álbuns de BD (…). Realmente, os jurados podem ter uma papel preponderante entre os que não se candidatam.

Concluímos também que se os jurados não pré-selecionam uma determinada obra que não se candidatou, ou não a reconhecem elegível para nomeação ou a desconhecem (e, nesse caso, estar-se-ia a discutir uma outra questão, abordada por Nelson Dona, diretor do Amadora BD, na entrevista que me concedeu em 2013:

(…) o número de jurados (…) é relativamente pequeno. Pode haver coisas que os jurados não conheçam. Não existem sistemas perfeitos (…).)

A ela regressaremos daqui a pouco. Antes gostaríamos de continuar a refletir sobre a proposta de nomeação de obras que não se candidataram aos PNBD. Dado desconhecermos de que forma se realiza a posterior apresentação à organização e demais jurados de uma obra que não foi candidatada, poderíamos presumir que, caso estas obras não estejam disponíveis para os restantes jurados as lerem, não concorrem em pé de igualdade, aquando da votação, com aquelas cujos exemplares foram remetidos, sejam em formato físico, seja em papel. No entanto, entraríamos numa série de suposições, que não nos permitiria construir nada de sólido. A única informação que retiramos das normas sobre esse assunto é tangencial e não nos deixa antever muito mais:

Tendo em conta a grande quantidade e qualidade das publicações apresentadas a concurso é determinante que todos os membros do Júri conheçam os álbuns.

Com este trecho, a Organização quer manifestar a sua intenção em garantir que todas as obras a concurso são lidas pelos jurados, contrariando o sistema de votação anterior, como Nelson Dona explicou na citada entrevista:

A grande desvantagem do sistema que tínhamos até 2012, é que, apesar de tornar mais democrática a votação, a participação era muito reduzida. A representação efectiva dos profissionais de banda desenhada era muito diminuta. Quando existe uma crítica sobre não existir a possibilidade das pessoas participarem e votarem, sendo isso cada vez mais relevante com a internet, o que é um facto é que a maioria das vezes, quando as pessoas são convidadas a participar, não participam. E nós questionámos a efectiva legitimidade dos resultados em função da pequena participação. Por pequena não se entendam 2 ou 3 mas, num universo de 1000 pessoas, digamos que 10% não é muito. Era mais que 10% mas não seria muito mais. Por outro lado, há outra questão – as pessoas votam naquilo que conhecem. Há livros, como por exemplo “O Baile”, que ganhou este ano, que muito dificilmente teria sido premiado neste sistema, porque a tiragem foi muito reduzida e muitas das pessoas não teriam acesso a ler o livro. Estas são as duas principais razões que nos levaram a equacionar a alteração.

Provavelmente, gera consenso o pressuposto de que os jurados têm de ler as obras para se pronunciar sobre elas, apesar de tal não ser proporcionado pela organização de todos os prémios de BD portugueses. A alternativa sugerida pelo Clube do Inferno no que toca às publicações poderem ser remetidas à Organização tanto em formato digital como em papel não é propriamente nova. Os (extintos?) Prémios Profissionais de Banda Desenhada utilizavam o sistema digital para remeter as BD aos jurados. No entanto, se havia autores/editores que não forneciam tais ficheiros, essas obras, ao não serem distribuídas ao júri, não concorriam em pé de igualdade com as demais. Nesse sentido, regressando ao Amadora BD, acreditamos que caso não seja possível fornecer em tempo útil ao restante júri as obras que não foram candidatadas mas foram pré-selecionadas por um jurado, não existirá uma vera equidade, pois não está garantida a sua leitura.

Por mais especializado que o júri seja e por mais que tente estar próximo da produção nacional e acompanhar o ano editorial a nível dos lançamentos, desde os mais publicitados às microtiragens, na ausência da leitura atempada, pela maioria dos jurados, de obra não candidatada, dificilmente a salvaguarda da pré-seleção de obras não candidatadas gera frutos.

E chegamos a outro ponto, que é o do tempo útil dos jurados. Entre a data-limite de entrega de exemplares e as nomeações e posterior votação, haverá tempo para os jurados realizarem uma leitura atenta de todas as obras candidatas, referentes a um ano editorial de banda desenhada e ilustração? Ou a maioria das escolhas já foi sendo, consciente ou inconscientemente feita, com as leituras dos últimos 12 meses? O jurado não apreciador de um determinado género ou subgénero conseguirá fazer a devida análise de dezenas dessas publicações que lhe venham a entregar simultaneamente com muitas outras obras de géneros pelos quais se interessa mais? É possível garantir equitativamente uma leitura atenta e uma análise detalhada de todas as publicações por parte dos jurados? Afinal, não é para esse fim que as publicações são remetidas?

Como disse Nelson Dona, não há sistemas perfeitos.

Independentemente de se tratar dos PNBD ou outros, a candidatura que permite ao autor/editor optar por remeter a publicação em papel ou em formato digital, teoricamente aumenta a participação dos candidatos. Como se expôs, é apenas um de muitos passos no caminho que se pretende rumo ao tal sistema que se aproxime o mais possível da perfeição, mas todas as medidas que aumentem a acessibilidade das obras a se candidatarem são de valorizar.


N.E: este artigo é uma nova versão, corrigida e aumentada, uma vez que a primeira versão estava pouca explícita nalguns pontos. Agradeço a todos os que ajudaram a construir um artigo melhor.

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