Texto: Pedro Moura
É inevitável que os novos leitores d’As aventuras de Tintin, de Hergé, se virem para os textos que estão disponíveis como estão disponíveis, isto é, a “colecção” completa dos álbuns. Na verdade, neste momento eles são oferecidos em vários formatos, ora em álbuns duplos, colecções mais majestosas, formatos de bolso, formatos de “graphic novel”, etc. No entanto, toda essa variedade aponta sempre para a mesma coesão e canonicidade final dos textos em si. Mas esta forma de olhar as histórias de Hergé, como perfeitas unidades narrativas, ainda que seja a melhor forma de as abordar enquanto texto para leitura imediata, de prazer (como a leitura deve ser sempre), acaba por apagar em parte a sua dimensão histórica. A forma como os textos foram sendo reescritos e redesenhados à medida do tempo, das circunstâncias editoriais, as transformações operadas sobre os seus processos de representação, ora por razões políticas ora por razões de cosmética tecnológica, ora ainda pela própria transformação interna da criatividade de Hergé, quer gráfica quer literária quer estrutural.
A maneira como certos textos são-nos ofertados hoje em dia, como o caso recente da edição portuguesa em um só volume de Maus, de Art Spiegelman, pode dar a entender a uma grande parte do público que a banda desenhada teve sempre esta presença “livresca” nos escaparates, eliminando os passos pelos quais atravessou para aí chegar. No caso de Hergé em particular, todo o seu outro trabalho (Quick et Flupke, Jo, Zette et Jocko, o seu trabalho de ilustração) é subsumido a Tintin, como se este fosse o seu cume – não apenas estilístico mas cronológico e até ontológico – ao passo que os outros textos seriam somente passos. Tal como Maus na verdade nasceu enquanto um pequeno panfleto-encarte de uma revista de “vanguarda” (e o seu conceito como uma história curta numa revista efémera do underground), também as aventuras da famosa personagem belga foi sendo desenvolvida a um ritmo de uma a duas páginas por semana em revistas, ou mesmo uma tira diária num jornal, como é o caso d’As sete bolas de cristal.
É em parte essa dimensão histórica, de desenvolvimento rítmico, que esta nova edição dessa aventura vem devolver. La malédiction de Rascar Capac é o relançamento de um clássico, que nos permite reler o texto original outra vez pela primeira vez.
Se no mundo da recepção académica é Maus o livro mais debatido (tendo companheiros próximos em Persepolis, The Smartest Kid on Earth e Fun Home), e Alan Moore o autor mais estudado, não é de surpreender que seja Hergé e o seu Tintin aquele que ocupa o lugar de maior destaque no espaço francófono (Bélgica e França). As edições multiplicam-se, os livros temáticos são legião, não há aspecto ou dimensão que não tenham sido escrutinados ao pormenor. A bibliografia é surpreendente, impossível de seguir na íntegra, mas por outro lado é um fenómeno atreito à quantidade e ao ruído. Qualquer mínimo de atenção a essa catadupa de livros fará distinguir quase de imediato as diferenças entre meros levantamentos de dados (que poderão ser úteis para um trabalho ulterior, mas absolutamente secos em si mesmos), abordagens de divulgação, remisturas de informação ou curiosidades (apenas interessantes para os “retentivos anais” do coleccionismo), hagiografias ou então questionamentos verdadeiramente críticos. La malédiction de Rascar Capac, de Philippe Goddin, encontra-se num território ambíguo.
Na verdade, esta aventura de Tintin já havia sido alvo de uma edição similar, de 2003, também num formato oblongo, mas de menor dimensão, intitulado Les mystères des 7 boules de cristal, que é aproveitado como sub-título desta obra. Trata-se basicamente da edição, integral e fac-similada, dessa mesma história tal como havia sido publicada originalmente sob a forma de tiras diárias no jornal de Bruxelas Le Soir, quando da ocupação nazi da Bélgica. Esse formato obriga a uma abordagem diferente do álbum, obrigatoriamente, mas ao mesmo tempo permite aos leitores fazerem uma leitura contrastiva com o texto “final”. A diferença desta edição em particular é que é acompanhada de toda uma série de textos escritos por Philippe Goddin, nome incontornável da “tintinofilia”, abordando a história da origem da aventura, circunstâncias de trabalho, contexto histórico, etc., já para não falar de algumas melhorias no aspecto técnico e imagético dos ficheiros originais. Prevendo-se ainda este ano a publicação do segundo volume*, que entrará n’O templo do sol (já publicada na revista Tintin), abordemos este volume.
Se a história dupla de O segredo do Licorne e O tesouro de Rackham, o terrível teve maior fortuna enquanto unidade narrativa (devido aos seus ingredientes mais convencionais de aventura, a introdução das personagens, o lugar na obra de Hergé e, mais recentemente, a sua adaptação cinematográfica), Hergé tem também em Sete bolas de cristal e O templo do sol uma estrutura coesa e contínua. Ainda que se possam fazer ligações a longo prazo entre O lótus azul e Tintin no Tibete, as duas histórias “lunares” e, enfim, entre todos os textos, há entre aquelas duas primeiras unidades duplas um maior balanço entre histórias autónomas que se encaixam entre si (a aventura espacial, pelo contrário, é bem mais coesa, quase eliminando a possibilidade de olhar cada álbum de forma independente). Essas possíveis leituras de escalas diversas são algo que contribui para a fortuna da obra de Hergé. Se há livros que se podem ler isoladamente, e alguns mesmo quase “desligados” da sua economia usual de aventuras (sendo o caso d’As jóias de Castafiore o seu maior paradigma), há outros que fundam esse mesmo género, ou são um seu exemplo máximo, e As 7 bolas de cristal ocupam esse papel.
Como dissemos atrás, esta re-edição permite um acesso mais alargado, quase democrático, ao estudo genético do álbum, revelando opções de montagem, narratividade, construção de intriga e personagens. Com as intervenções de Godin há também um acesso àquilo que Catherine Delafield chamou de “texto em contexto” ou mesmo “intertextualidade competitiva”, isto é a forma como a tira de banda desenhada poderia entrar em diálogo com as notícias, os anúncios, as ilustrações, as fotos, as colunas de opinião, etc. veiculadas pelo jornal Le Soir. Estas “interacções…. eram parte da experiência textual original dos leitores” (“Text in Context: The Law and The Lady and The Graphic”, in From compositors to Collectors. Essays on Book-Trade History, pg. 135). Ainda que não totalmente, esta edição reconstrói parcialmente essa “experiência textual” primeira. De resto, esta é uma realidade interpretativa que deveria estar sempre nas mentes dos investigadores e críticos de banda desenhada, ao longo de toda a sua história. Pois não é apenas nos nossos tempos contemporâneos, na pós-modernidade, que ocorre esta “cultura de convergência”, como a chama o teórico de media studies Henry Jenkins. Bem pelo contrário, por emergir ela mesmo numa era de reprodutibilidade técnica e numa complexa e variada paisagem mediológica, a banda desenhada é desde sempre parte de uma “mestiçagem mediática”, para citar Jan Baetens numa abordagem dos estudos históricos de Thierry Smolderen (“Bande dessinée et roman graphique”).
Mas uma vez que devemos ter em conta, seguindo Andreas Huyssen, que “o tempo e o espaço são categorias fundamentais da experiência e percepção humanas, mas não são imutáveis: elas estão, bem pelo contrário, sujeitas à mudança histórica” (Present Pasts: Media, Politics, Amnesia: 834), é preciso re-integrar toda essa experiência no seu específico tecido histórico – desde o papel dos jornais, ao lugar que a banda desenhada, e especificamente a obra já então famosa de Hergé, tinha no circuitos dos meios de comunicação social, e o contexto da Bélgica ocupada – e não crer que essa “devolução de experiência” está livre de perigos de distorção, na sua renovada recepção contemporânea.
As aventuras de Tintin tinham, pela altura da edição diária no jornal da nova história, já uma fama considerável, em termos críticos e comerciais, ainda que existissem algumas flutuações que obrigassem a reapresentações sucessivas das suas personagens. Além disso, estava-se a viver numa época de recalibração da obra de Hergé, a que o contexto da guerra não foi alheio. A estrela misteriosa é o primeiro álbum a sair a cores, em 1942. Todavia, é apenas em 1946, com o início da revista Tintin, que se coloca a questão do relançamento de todas as aventuras passadas numa nova estrutura: a do álbum a cores de 64 páginas. Uma vez que esta história estava a ser publicada no diário “ocupado” Le Soir (aliás, hoje muitos se referem mesmo a Le Soir volé), a 3 de Setembro de 1944, com a “libertação de Bruxelas”, os novos poderes políticos proíbem a sua edição, antes que se resolvam os juízos políticos em relação aos colaboradores. Enquanto Hergé espera alguma decisão sobre se ele pode ou não retomar o seu trabalho, a aventura de Tintin fica interrompida, mas Hergé trabalha em duas frentes: a feitura dos álbuns numa nova vida (em quadricromia, e com alterações modernizadoras), e a nova aventura hebdomadária. A fundação de uma nova editora, a Yes, a qual deseja conquistar o mercado infanto-juvenil, propõe uma fórmula idêntica à do Petit Vingtième, em que a personagem de Hergé seria o porta-estandarte. Essa oportunidade não é perdida e a 26 de Setembro de 1946 surge a nova revista, cuja influência não é de forma alguma displicente. É nessas páginas que se conclui a primeira parte da saga sul-americana de Tintin, apesar de na capa do primeiro número já se prometer o próximo episódio: O templo do sol, e se publicarem páginas que repescam a história anterior numa versão bem diferente. Serão essas páginas revisitadas no segundo volume deste projecto de Goddin. Entre 1944 e 1946, portanto, são dois anos de “silêncio público”. As interrupções parecem marcar estes dois livros, já que durante a publicação na revista d’O templo, uma nova depressão do autor marcará um longo intervalo de dois meses.
Acima de tudo, aquilo que parece ser o ponto forte desta edição é o seu contributo para o potencial estudo genético, que se encontra naturalmente no contraste entre esta edição das tiras e a leitura do álbum. Não é apenas na introdução da cor, mas de outros pormenores de figuração, como o caso das transformações operadas sobre Rascar Capac, por intermédio de Edgar P. Jacobs, ou o aumento visual de certas cenas (que seria permitido num formato pensado à página). Aliás, um dos aspectos importantes deste livro é indicar recorrentemente o trabalho de colaboração de Jacobs que, tendo chegado mais tarde, digamos assim, ao grupo de Hergé, e mesmo ao mundo da banda desenhada, seria uma força fundamental. Ele foi um colaborador decisivo de Hergé, e acabaria por também ser um prisma de desvio e desenvolvimento do próprio Tintin. É Jacobs quem apoia Hergé no levantamento de informação “factual”, inclusive visual, mas também vasculhando bibliografias, museus, artigos, etc. É ele quem desenha os cenários, sobretudo as cenas mais complexas e de grandes planos, incutindo um sentido geométrico rigoroso que contrasta, com resultados felizes, com o novo dinamismo das formas de Hergé. É ele quem dá cor na passagem para os livros. E é ele o “modelo” principal que assume poses dramáticas para que Hergé possa fazer esboços que o ajudem a prender uma posição das suas personagens. Esta edição está pejada de referências específicas a este trabalho.
Mas além de Jacobs, há também referências a outras colaborações que expandem o universo narrativo de Hergé, nomeadamente as peças teatrais elaboradas com Jacques Van Melbeke e a novela com os Dupont/d escrita por Paul Kinnet e igualmente publicada no Le Soir com ilustrações originais.
Mas o estudo genético vai ainda mais longe. Acima de tudo, apesar de surgir apenas duas vezes, está o pequeno caderno escolar em que Hergé colava as tiras publicadas a um ritmo praticamente diário (houve algumas interrupções, devido a doença do autor e depois a questões financeiras). Não se tratava apenas de um lugar para coleccionar o que saía, mas para estudar desde logo a futura composição do álbum. É aliás este breve acesso – que faz sonhar na felicidade que seria publicá-lo na íntegra como um fac-símile – que permite entender ser Hergé um autor exímio no que diz respeito à construção rítmica da narrativa, como na forma como pensa cada página como uma unidade, e utiliza esse processo para pensar a tira.
As tiras, repare-se, eram publicadas diariamente. Uma primeira vista em termos gerais faria entender que o autor não usa propriamente nenhuma fórmula estrutural: as tiras têm entre as quatro a seis vinhetas, mais raramente três (e um caso de oito, mas porque uma vinheta com Milou é literalmente esquartejada). Porém, independentemente de serem publicadas em dias seguidos ou com algumas interrupções pelo meio, apercebemo-nos de que existe uma “unidade” a cada três tiras, precisamente aquelas que se reúnem como um corpo só na paginação desta edição. A última vinheta da primeira tira (desta unidade maior) é sempre rigorosamente quadrada, assim como a primeira da terceira tira. E a segunda tira, do “meio”, é sempre composta por duas metades, mesmo que o número ou formato das vinhetas entre essas metades seja desigual (2/1, 2/3, 3/2 ou 2/2, 3/3, etc.). O que isto permite é uma redistribuição das vinhetas numa página na vertical, perfeitamente elegante e equilibrada quer em termos visuais quer em termos narrativos (a última vinheta das “terceiras” tiras reserva-se muitas vezes para um alto momento de suspense, como é sabido ser típico da “escrita” de Hergé). Enquanto distribuição matemática, ortogonal e narrativa, pode parecer formulaica e simples, e não o deixa de ser, mas é uma trouvaille esquemática que não apenas demonstra as soluções técnicas existentes para resolver problemas de tempo, de formato e editoriais, como revela uma sapiência no métier que comprova o valor do autor como uma espécie de inventor da – aparente, como é óbvio, mas precisamente por esconder essa obviedade – “naturalidade” da sua forma de arte. Se bem que a passagem não é simplesmente a de colocar as tiras em formas diferentes – há toda uma política de escolha, supressão de cenas, melhoria de estratégias narrativas, disparidades visuais resolvidas, detalhes corrigidos, cenas expandidas, etc. – há uma política de re-montagem que permite compreender melhor os princípios delineados por Renaud Chavanne no seu livro Composition.
Naturalmente, a aventura que aqui lemos é a preto-e-branco, e não conta ainda com as cores planas que muito contribuiriam para a emergência da ideia da “linha clara” (que, convém relembrar, é um apodo criado bem mais tarde, em retrospectiva, por um dos “herdeiros” de Hergé, Joost Swarte). Um estilo que, recordemo-nos das brilhantes palavras de Bruno Lecigne, está menos nos seus instrumentos gráficos (contornos negros, precisos e fechados, cores planas e vivas, ausência de sombreados e tramas, pormenorização e geometrização dos espaços e estilização caricatural das figuras, etc.) do que na transformação do universo em algo legível. E apesar das limitações mediológicas e económicas, não se pode dizer que o uso do preto-e-branco nas tiras seja totalmente desprovido de abordagens criativas conscientes, tal como o “acrescento” de cor, mais tarde, não é uma simples viragem por razões económicas (para um estudo da significação da cor em Hergé, veja-se Pierre Fresnault-Deruelle em Le secret de l’image).
Um autor mais analítico como Jan Baetens, por exemplo, cujo estudo da escrita de Hergé teve um gesto particular em Hergé écrivain, considera que o desenvolvimento e aprendizagem do desenho e do domínio da linguagem é divergente no pai de Tintin, o que resultará numa contínua fractura entre texto e narrativa, objectos do estudo indicado. Se Baetens encontra em As jóias da Castafiore a “rara densidade” dos melhores instrumentos literários de Hergé, considera que o seu desenho – a fase madura – está já em decadência. Ora é precisamente As sete bolas de cristal que Baetens vê como o cume da perfeição do desenho hergéeano (porém, é preciso ter em conta que o autor se refere sobretudo à versão em álbum). Hergé está na casa dos 35 anos. De facto, ao contrário de certos comentários a-históricos e apresentações genéricas – um discurso sustentando, por exemplo, por toda a estrutura expositiva do museu Hergé, sobre a qual esperamos vir a escrever – a obra de Hergé não surgiu nem ab ovo nem composta como Palas Atena. Recordemo-nos de outras palavras de Bruno Lecigne, logo na abertura de Les héritiers d’Hergé, falando das páginas do primeiríssimo Tintin, de 1929, como “mal-feitas e medíocres”, sem se poder imaginar o desenvolvimento que se lhe seguiria ao ponto de fundar todo um estilo, toda uma escola, senão mesmo toda uma linguagem plenamente estruturada. Nas palavras ainda de Lecigne, um “super-sistema” que ultrapassa a própria obra.
As 7 bolas de cristal, ainda assim, é uma das narrativas de maior força em termos do género de aventura. Sovietes, Congo e América são obras datadas e pejadas de referências e estruturas moralizantes e de propaganda que vão perdendo terreno nos nossos dias, as Jóias é uma obra cuja sofisticação o arranca quase do cânone normalizado de Tintin, impedindo a sua integração na economia do género de aventuras, e é portanto às aventuras da herança de Haddock e à aventura na América Latina que cabem os principais suportes dessa tradição oitocentista na banda desenhada moderna. A dimensão “enciclopédica” também aumenta de uma forma particularmente forte nesta aventura, ainda que haja muitas informações e detalhes que estão errados. Goddin informa-se mesmo com especialistas da cultura inca para mostrar alguns dos limites do trabalho feito, e distribuindo a “culpa” ora nas fontes erradas consultadas, ora no trabalho incompleto ou erróneo de Jacobs, ora mesmo em perspectivas então muito comuns, e mais raramente no próprio Hergé. A dimensão problemática destas questões não seria particularmente grave, pois o mesmo ónus levar-nos-ia a reler como erróneas muita da literatura de aventuras do século XIX, mas convém que ela tenha força suficiente para serenar, digamos assim, o mito ainda hoje perpetuado de que a saga de Tintin é pautada por um grande rigor documental.
Se formalmente há também grandes decisões técnicas, talvez elas não sejam tão sofisticadas como as que ocorrem em O tesouro. E parte dessa “diminuição” dever-se-á à sua criação por tiras, em vez de se pensar em pranchas. Isto não significa que não existam escolhas internas que tornem recompensadora a leitura analítica. Fresnault-Deruelle analisa precisamente uma repetição interna, daquilo a que ele chama de “imagens recicladas”, em Le secret de l’image (pgs. 114-115. Através do conceito de tressage de Groensteen, fala-nos da inquietude da repetição, e da forma como a repetição nunca é do mesmo, mas é precisamente na sua pequena inflexão – não apenas as diferenças compositivas, visuais, mas a própria informação narrativa que transportamos na leitura e que dá cor às vinhetas – que se dá o imo da leitura.
Na questão do “díptico”, Fresnault-Deruelle, no mesmo estudo, demonstra como o Peru é uma espécie de “eco”, inflectido pela literatura de aventura e mistério da literatura verniana, do Egipto, ligando-o, no universo cerrado da “linha clara” clássica, não apenas a Os cigarros do faraó mas também ao Mistério da grande pirâmide de Jacobs. Existem várias citações durante o texto que ligam a maldição de Tutakamon à de Rascar Capac, por exemplo. Mas o investigador vai mais longe nessas associações, passando dessas passagens intra-textuais para as intertextuais, equivalendo o breve sonho de Tintin do ataque da múmia a uma cena de Little Nemo, mas também a uma das cenas iniciais da saga de Adèle Blanc-Sec, de Tardi. O papel influente deste livro ainda hoje se faz sentir, como num livro muito recente, Iba, de Pierre Maurel, que trabalha uma outra citação do sonho do ataque de Raspac Capac. Se Hergé utiliza bastas vezes sonho e alucinações nas suas histórias, elas não servem apenas como pequenas interrupções, oníricas ou de nonsense, mas como marcas percursoras dos acontecimentos. No caso presente, o ataque de Raspac Capac preconiza ou assinala o ataque que ocorre, fora de campo, contra Bergamotte. Há uma manipulação consciente e sapiente dos mecanismos visuais-narrativos, complicados retrospectivamente, que importa assinalar como uma das conquistas da arte de Hergé. Aliás, Fresnault-Deruelle colecciona alguns dos seus ensaios num volume recente, Hergéologie, cujo sub-título é claríssimo na lição de fundo: “Coerência e coesão da narrativa em imagens nas Aventuras de Tintin”.
Todavia, além das implicações que esta edição traz para a análise genética e formal da aventura, extremamente importante, os contributos textuais e documentais de Goddin também revelam aspectos importantes do contexto histórico e político. A participação de Hergé no Le Soir “ocupado” trar-lhe-ia dissabores após a libertação belga, que não apenas lhe colocaram a carreira em risco, como a sua própria liberdade pessoal, e que o levou a entrar em dúvidas profundas, depressões e até mesmo ponderar emigrar para a Argentina. À partida, todo e qualquer funcionário que tenha trabalhado num órgão sob o domínio da administração militar alemã caía numa suspeita dessa natureza. Hergé não será excepção. Não nos cabe a nós fazer juízos de valor, sendo apenas salutar notar que é demasiado fácil marcar a giz uma linha claramente divisória entre “vítimas” e “carrascos”, e não prestar contas às “zonas cinzentas” que Primo Levi teorizou. Esse conceito permite que se enfrente vigorosamente a natureza humana, aberta à mais profunda das ambiguidades morais, e a evitarem-se céleres juízos de valor, julgamentos de carácter e representações estereotipadas, quer negativas – vigorosos ataques contra Hergé – quer positivas – os discursos melosos de encómio e hagiográficos que não possuem um grama de distância crítica. Infelizmente, Goddin não só não está isento de uma tomada de posição, como a sua tomada de posição é a da aparente resolvida distância da crítica, um mero encolher de ombros que afirma “como é possível pensar isto sobre um autor que tanto admiro?”
No entanto, é o próprio Goddin o responsável por, na sua biografia do autor belga, Hergé: Lignes de vie, mais pejada de factos e dados sólidos do que interpretação, que revela toda uma série de documentação inédita e surpreendente, colocando Hergé numa posição relativamente apartada de muitos dos seus colegas, que evitam a colaboração nos jornais ocupados. Esta é uma fase extremamente complicada na vida do autor, a qual, menos do dever estar sujeita a um sumário juízo de valor moral, deve munir-se de alguma informação contextual. Para além de Goddin, Jean-Marie Apostolidès também dedica um capítulo inteiro a esta questão no seu Dans la peau de Tintin.
Mas esta circunstância política também seria decisiva na transformação “narrativa”, ou “literária” se preferirem, de Tintin. Pode-se argumentar que a ocupação forçou a um afastamento de questões contemporâneas. Longe do trabalho de engajamento político anti-comunista de Sovietes, da missão “civilizadora” do colonialismo belga em Congo ou uma preocupação mais liberal em O lótus azul, as aventuras de Tintin durante a guerra lançam-no a aventuras de géneros mais tradicionais ainda que narrativa e literariamente mais sofisticadas, sobretudo a dilogia Licorne (1943) e Rackham (1944).
Mas isso leva a uma outra linha de inquirição que talvez ainda esteja por fazer: em que medida a progressiva “limpeza da belgitude” de Tintin, já em operação em As sete bolas de cristal, implica também um afastamento da circunstancialidade histórica? Goddin aponta alguns pormenores, no interior do “texto em contexto”, em que não há quaisquer sinais da ocupação alemã na aventura, e onde os movimentos dos protagonistas não revelam quaisquer entraves (como o pormenor de conduzir à noite com os faróis acesos, apesar da sua explícita proibição, anunciada no próprio Le Soir). Em muitos aspectos, é apenas uma continuação (ilusória, cândida, de cegueira política?) da construção de Tintin como uma personagem simbólica, de escape, fantasia, mas também de inocência e protecção imaginária dos seus leitores. Todavia, isto não impede leituras precisamente contrárias, ainda que algo simbólicas e transversais, que é a de escavar nos acontecimentos das aventuras, aparentemente sem qualquer ligação ao tecido da história real em que se formaram, ecos representativos das preocupações, profundamente políticas, de Hergé. É o que faz, por exemplo, Apostolidès, quando encontra no processo sumário dos Incas contra Tintin, Haddock e Tournesol alusões aos processos da justiça em curso contra o próprio autor, o abade Wallez, e outros dos seus amigos e companheiros.
Mais do que ler toda a obra – ou pior ainda, abuso irreparável, a de julgar o autor enquanto pessoa – iluminada por um dos seus muitos estados, importa antes, e acima de tudo, considerar toda a sua vida ao longo de décadas como “um barómetro do consenso ideológico de todo o século”, como escreve Ann Miller em Reading bande dessinée (18). Pois talvez seja esse o grande papel fundamental e inevitável de Tintin, pelo menos durante a sua “vida”: a de representar uma espécie de grau consensual, zero, paradigmático, de uma determinada linha, mas central e de grande influência, da banda desenhada franco-belga, ou talvez mesmo europeia.
Repetidamente, Goddin introduz informações retiradas das notícias dos dias das próprias tiras, como vimos. Um aviso dado pela administração militar alemã, uma notícia, ou uma imagem publicada, para depois tecer algum comentário sobre a sua complementaridade, reflexo ou até mesmo oposição na aventura, como no caso já citado em que Haddock, quando sai do teatro com Tintin, conduz o seu carro de faróis acesos, acção proibida pelas forças de ocupação. E é nestes momentos que surge o grande limite das notas de Goddin. Bastas vezes o autor tece comentários como se estas personagens se tratassem de pessoas reais, históricas. Ora, não há dúvidas de que Hergé sempre procurou, e de uma maneira magistral precisamente por ser elíptica e simples, criar efeitos de referencialidade nas suas histórias. Não apenas pela inclusão de dados reais e objectos nas histórias – aqui temos bastantes complementos vendo os arquivos de imagem de Hergé lado a lado ao seu aproveitamento nas histórias -, mas pelas várias estratégias mediáticas tentadas logo no início da saga, como quando o abade Wallez contratou um jovem para fingir ser Tintin regressando da Rússia, por exemplo. O próprio Le Soir, antes de lançar a tira, havia anunciado o regresso da personagem, não da mesma forma ilusória, mas mesmo assim contribuindo para essas expectativas. Mas Goddin, uma vez que está mergulhado totalmente nos discursos apologéticos, se não mesmo hagiográficos, de Hergé, tira conclusões sem qualquer trabalho de argumentação.
Um exemplo é suficiente. Numa das cenas no interior do teatro, Hergé desenha uma mulher, jovem e bela, com um chapéu à la mode. Goddin escreve: “Bela loura que, por ela só, demonstrará que Hergé nunca foi misógino”… Goddin, numa só frase, revela como não apenas não compreende as regras de argumentação ou a raiz da misoginia como parece contribuir ainda mais para a confirmação de uma contínua cegueira sexista da parte dos seus leitores.
A plasticidade destas personagens permite que se possam tecer interpretações da mais variada sorte. São conhecidos os atropelos biografistas e polício-psicanalíticos de Serge Tisseron, por exemplo, mas mesmo as abordagens cristológicas levam a curiosas leituras, como Dominique Cerbelaud que encontra no início das Sete bolas de cristal um eco dos evangelhos (a tentativa de transformação, falhada, de água em vinho, recordando as bodas de Canaã), que criará um arco simétrico com a cena final de O templo do sol (V. “Le héros christique”, in L’archipel Tintin).
Nada disto, porém, nos deve surpreender. Pois mesmo que Tintin seja uma obra “datada”, inscrita num tempo passado, e reflicta uma visão do mundo algo ultrapassada pela nossa “maior” sofisticação política – será que aceitaríamos hoje o desconhecimento dos Incas de quando ocorreria o eclipse solar? Os Incas? -, e mesmo tendo em conta que a oferta contemporânea no mundo da banda desenhada esbate a sua importância enquanto “texto central”, alguns dos seus livros são ainda fundamentais, para que se compreenda historicamente esta forma de arte, e até mesmo o seu desenvolvimento formal e estético. E no que diz respeito ao género da aventura, é possível que este livro em particular tenha um papel preponderante. Sendo esta edição, então, de redobrado interesse. Pois As 7 bolas de cristal são um clássico em muitos dos sentidos propostos por Italo Calvino: são uma obra que, ao ser relida (por é sempre relida, não lida), surge-nos de novo como e pela primeira vez, e também vêm pejados de múltiplas interpretações anteriores que se dissipam quando da nossa própria leitura.
- N. E.: este artigo inédito foi escrito antes da edição do segundo volume, entretanto publicado.
Autor, crítico, curador e docente de banda desenhada…