A BD como ferramenta de apoio à literatura infantil e juvenil na iniciação e na promoção da leitura

A BD como ferramenta de apoio à literatura infantil e juvenil na iniciação e na promoção da leitura

tebeos

Nove anos volvidos, volta a estar disponível online a primeira parte de um pequeno artigo do espanhol Jesús Castillo Vidal. Ainda manterá a pertinência ou algo mudou? É o que convidamos a descobrir… Adiantamos já que a web mudou e com ela a maioria dos links do artigo original. Pesquisámos os novos endereços e conseguimos obter novamente as fontes de informação.

Texto: Jesús Castillo Vidal  |  Tradução do castelhano: Adalberto Barreto

Parte 1

A literatura infantil e juvenil é, sem dúvida, o primeiro e principal caminho para desenvolver hábitos de leitura nas crianças. No entanto, poucas vezes pensamos que um papel semelhante pode ser levado a cabo pela banda desenhada sem qualquer espécie de problema, como apoio a esse processo iniciático. Na literatura especializada sobre o tema, a banda desenhada costuma ser um item a que se recorre de forma muito pontual, prestando-se uma atenção muito minoritária. Na verdade, o mundo da BD não encontra, excepto em raras ocasiões, um lugar de destaque para expor a sua produção.

A banda desenhada, pela sua própria natureza, é, provavelmente, junto com o conto ilustrado, uma das melhores formas para que a criança possa adquirir desde cedo hábitos de leitura. Mas não podemos pretender que seja o caminho principal. Contudo, graças à conjugação perfeita de textos e imagens, podem-se desenvolver as habilidades necessárias para que a criança potencie “duas áreas expressivas fundamentais: a linguagem e a expressão plástica” (Aller). Como primeira abordagem à leitura, a banda desenhada transforma-se num meio realmente atractivo devido, sobretudo, à força de sua componente gráfica, mesmo sem esquecer a sua componente narrativa, uma vez que também é importante prestar atenção à narração que nos é contada. Por outro lado, é verdade que a dimensão textual costuma ser mais leve que na literatura convencional. Assim, o esforço intelectual e de concentração que a criança deve realizar será, em regra, menor.

No entanto, por diversas razões relacionadas com o âmbito da educação e da cultura, virou-se as costas sistematicamente à BD, esquecendo-se frequentemente a sua presença, pelo que é necessário voltar a lembrar de uma forma contínua quais são os seus méritos, num contexto onde os preconceitos prevalecem sobre a realidade incontestável: a banda desenhada é provavelmente, na maioria dos casos, a primeira grande leitura da criança.

A este respeito não compartilhamos a ideia manifestada no site de uma das pessoas mais conceituadas em Espanha na área da comunicação, J. A. Millán, que comenta a sua reacção ao encontrar o filho com uma BD muito popular em Espanha “Salamão e Mortadela”. «Faço uma pausa para dizer que não tenho nada contra os quadradinhos. É muito possível que tenham servido e servem constantemente como porta de entrada à Cidadela da Leitura; mas, na sua maioria, são muito maus. Quero dizer: aqueles que meus filhos liam com mais fruição, ou seja: Salamão e Mortadela. Cada vez que lhes via seguir com entusiasmo as aventuras do chinês Ten-Ho-Pis (protagonista do prémio Nãobel) dava-me algo… Era como descobrir uma maquinaria complexa (a mente da criança!) e cara (em sete anos de criação os pais investiram aproximadamente quatro milhões e meio de pesetas) dedicada a tarefas menores, a tarefas que qualquer artefacto mais barato teria cumprido…».

Uma opinião respeitável como esta baseia-se, sem dúvida, no desconhecimento total do que a banda desenhada pode oferecer, justificando-se, assim, comentários tão depreciativos e que, vindo de quem vem, podem provocar muitos danos. Seguramente a visão pessoal que tem Millán da banda desenhada lhe impede de saber que o chinês Ten-Ho-Pis aparece numa aventura de Salamão e Mortadela que pertence à época na qual o seu criador, Francisco Ibáñez, mantinha um litígio com a editora, a qual aproveitava o trabalho de outros autores para, imitando toscamente o estilo do autêntico autor, dar seguimento à publicação destes títulos, mas com resultados de qualidade muito inferiores.

Não podemos pretender que a primeira leitura da criança ou do adolescente, como ocorreu durante décadas no sistema educacional espanhol, seja a das obras que têm grande qualidade literária, mas que não são de todo adequadas para certas idades. É certo que com os métodos tradicionais podemos ganhar um novo leitor, mas não é menos verdade que corremos o risco de que, a muitas crianças, ante a obrigatoriedade de ler obras que lhes são completamente indiferentes, provoquemos fastio para um hábito que estamos a tentar impor. Contudo, haverá certamente tempo para, quando for mais adequado, se descobrir a bondade das obras de Cervantes, Delibes, Machado, Cela ou de qualquer outro autor da rica literatura espanhola ou internacional.

Inegavelmente, o que é preciso ter muito em conta é que uma coisa não impede a outra: não é incompatível a leitura de banda desenhada com a de outro tipo de obras literárias; mas é certo que uma coisa pode levar à outra, complementando-se na formação cultural da pessoa. Também não compartilhamos, portanto, o famoso slogan do franquismo que dizia: “Onde hoje há uma história em quadradinhos, amanhã haverá um livro”, no sentido que um substitui ao outro. É preciso compreender que há lugar para todos os gostos na mesma estante e que é melhor quanto mais material de leitura tiver.

O contexto da literatura infantil e juvenil e sua extrapolação à banda desenhada

Sem entrar em profundidade no tema, um dos problemas mais graves que afligem o mundo da banda desenhada é sua fraca consideração dentro do contexto cultural, em geral, e a grande quantidade de preconceitos que a cercam. Se atendermos às belas palavras que António Machado pôs na boca de Juan de Mairena, a cultura “é tudo aquilo que serve para despertar a alma adormecida” (em: Aller, 2004), a banda desenhada, a partir da sua dupla vertente (textual e icónica), apresenta duas vias para esse despertar. O importante é saber como promover e “vender” as bondades de um meio muito rico nos aspectos que Trigo e Aller (em: Aller, 2004) propõem para a literatura infantil: singeleza criadora (não confundir com simplicidade, já que isso supõe um grave problema); audácia poética e comunicação simbólica.

A banda desenhada, desta forma, pode-se adaptar a uma etapa importante do processo de educação da criança e que pode marcar o seu futuro como pessoa leitora ou não. Os artigos escritos no contexto da literatura infantil falam do momento no qual se abandonam as actividades de animação da leitura e se dá um passo decisivo para a leitura pessoal e individual. Este momento é um passo crítico no sentido de que as acções levadas a cabo pela animação da leitura são sempre realizadas num ambiente de colaboração e, poderíamos dizer, até festivo. Deixar de lado essa leitura colectiva para passar a outra de carácter mais individual, constituindo-se num acto privado, onde é necessária uma maior concentração, pode provocar o abandono do hábito recém-adquirido se não se levar em conta as considerações adequadas. Assim em relação à banda desenhada, poderíamos dizer que seria importante:

  • Estabelecer os níveis de idades correctos. No caso da literatura infantil e juvenil, onde já existe uma certa especialização, é necessário que se encontrem obras específicas para as idades concretas. Deste modo, como podemos ver no portal Sol (Serviço de Orientação à Leitura)*, estabelecem-se várias categorias de idades: 0-5, 6-8, 9-11, 12-14, 15-18. No entanto, vendo a actual realidade do mundo da banda desenhada e, como veremos mais tarde na continuação deste texto, a pouca oferta existente no mercado infantil, torna-se desnecessária uma divisão tão detalhada das idades. No nosso caso, basearemos a leitura de banda desenhada em três níveis: infantil (com uma categoria que variaria entre os 5 e os 10-12 anos); juvenil (10-12 e 16-18 anos) e adulto (16-18 em diante). É importante entender que quando falamos de banda desenhada adulta estamos a pensar em obras pensadas e criadas com maturidade, da mesma forma que são maduros, no sentido cultural, educativo e pessoal, os leitores a que estão dirigidas. Sem dúvida não pretendemos com esta pequena classificação estabelecer nenhuma barreira estanque, mas sim em valores aproximados que nos possam ser úteis.
  • Adequada selecção de obras de acordo com os níveis estabelecidos. Outro problema que atinge o mundo da banda desenhada em geral é algo do que já se falou a seu tempo no site @bsysnet ** e que tem a ver com os preconceitos relacionados com as idades a que estão dirigidas as histórias aos quadradinhos: ou são considerados como produtos para crianças, ou para adultos (no sentido erótico e pornográfico), parecendo não haver meio-termo, quando é precisamente nesse meio-termo que existe e onde se encontra a maravilhosa realidade da banda desenhada. No entanto, temos de ser bem claros e reconhecer que nem toda a banda desenhada é válida para ajudar uma criança a iniciar-se na leitura e que, certamente, o mesmo ocorre com o cinema e com a própria literatura. Nem todas as obras são assimiláveis por todas as idades. Uma errónea selecção de títulos pode levar a resultados totalmente contrários ao pretendido.
  • Sobretudo nos dois primeiros níveis, o infantil e o juvenil, a biblioteca escolar deve-se constituir, sem a menor dúvida, no principal factor de impulso aos hábitos de leitura. Esta é, muitas vezes, o primeiro lugar de contacto com a leitura e é o acesso mais importante que a criança tem a uma grande colecção onde pode seleccionar aquilo que mais lhe interessa. E tudo isso com a devida ajuda, tanto por parte do bibliotecário, como do educador; ambos, na medida de suas possibilidades, devem tentar levar a cabo a melhor selecção de obras, de acordo com as necessidades específicas de cada centro. Neste contexto, a biblioteca pública também deve assumir o seu papel como difusora da cultura e como ligação entre a escola e a casa. Felizmente, são cada vez mais as bibliotecas que contam com fundos especializados em Espanha e que, para além disso, organizam eventos relacionados com o mundo da banda desenhada. Alguns casos são realmente exemplares como a Biblioteca Central Tecla Sala, a Biblioteca Can Fabra, Artium e a Comicteca da Biblioteca Regional de Murcia, cujas actividades devem ser imitadas por outros centros similares.
  • Não é preciso entender a banda desenhada como uma via prioritária para o início da leitura nas crianças. Isso pode levar-nos a equívocos. A banda desenhada, na sua dupla vertente verbo-icónica, utiliza uma série de códigos próprios que lhe são únicos como linguagem determinada. Definitivamente, o processo de leitura é muito diferente da literatura textual, mesmo que esta se encontre profusamente ilustrada. De facto, a compreensão desses códigos, dessa linguagem (a sua sintaxe, a sua semântica), requer também um processo de aprendizagem. É muito habitual encontrarmo-nos com pessoas adultas que, ao enfrentarem-se pela primeira vez com uma banda desenhada, não se sentem cómodas a lê-la: “O que se lê primeiro, a imagem ou o texto?”. Não aprenderam esta linguagem e, portanto, não desenvolveram os mecanismos para as ler. A consequência de tudo isso é clara: não são capazes de desfrutá-la, não a entendem, rejeitam-na e o que é pior: desprezam-na e emitem preconceitos infundados sobre o seu próprio desconhecimento. É precisamente o mesmo processo de quem não conseguiu assimilar hábitos de leitura desde pequeno (“ler aborrece-me”): não são capazes de entender e assimilar intelectualmente o que lêem; e, por que não dizê-lo?, o mesmo acontece a quem despreza a ópera, por exemplo (“não entendo o que cantam”): porque não sabem interpretar os códigos e portanto não captam as subtilezas presentes numa obra destas características.

Na segunda parte deste artigo, realizaremos uma pequena aproximação aos três níveis propostos, tentado oferecer recomendações de interesse, assim como iniciativas realizadas dentro da animação da leitura, utilizando banda desenhada.

Bibliografia:
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Barrero, Manuel. “Los cómics como herramientas pedagógicas en el aula”. Em: Tebeosfera. Não disponível na web.
Barreiro Villanueva, José Manuel. “El cómic como recurso en la clase de español”. Em: Actas del VIII Seminario de dificultades específicas de la enseñanza del español a lusohablantes, 2000, pp. 44-48.
Cervera Borrás, Juan. “Aproximación a la literatura infantil”. Em: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes
Chabon, Michael. “Keynote speech 2004 Eisner Awards”. Em: Comic-Con, 2005.
García Pérez, Concepción. “¿Deben estar los cómics en las bibliotecas?”. Em: Boletín de la Asociación Andaluza de Bibliotecarios, 2002.
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Hernández Cava, Felipe. “La literatura infantil y juvenil contra los tebeos”. Em: CLIJ: Cuadernos de literatura infantil y juvenil, n. 85, pp. 56-59.
López Valero, Armando. “El cómic infantil en España y su incidencia educativa”. Em: Cuadernos Campos, 1989, junio, n. 3.
Stapich, Elena; Cañón, Mila; Hermida, Carola, Pascale, Eleonora; Segretín, Claudia; Troglia, María José. “Las colecciones de literatura infantil y juvenil: una experiencia en la capacitación universitaria de bibliotecarios escolares”. Em: Biblioteca Universitaria, nueva época, 2002, enero-junio, v. 5. n. 1, pp. 45-52.
Unidad didáctica “el cómic”. Em: Xarxa Telemática educativa de Catalunya.
Woolf, Virginia. “¿La animación a la lectura?, bien, gracias, y ¿despues qué?”. Em: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes

Originalmente publicado em castelhano em @bsysnet **.


  • N. E. – atualmente, Canal Lector
    ** N. E. – atualmente, RecBib

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