Texto: Jakub Jankowski | Revisão: Rodrigo Ramos
Bows and Arrows
Quem pensaria que o espírito de Robin dos Bosques ressuscitaria nas páginas da BD e no ecrã de televisão de uma maneira tão espetacular como ocorreu com duas personagens clássicas da Marvel e da DC? Hawkeye de Fraction/Aja/Francavilla (BD) e Arrow de Berlanti/Guggenheim/Kreisberg (série de TV) conseguiram trazer um novo fulgor aos arqueiros, que até agora têm permanecido altamente e artisticamente negligenciados por parte dos criadores. Antes, as sua setas nunca acertavam em cheio com tanta frequência.
A história do Gavião Arqueiro nem sempre esteve ligada positivamente à equipa dos Vingadores. Clint Burton já teve um fraquinho pela Viúva Negra e já lutou contra o Homem-de-Ferro. Para falar a verdade, se procurarmos bem, encontraremos muitas encarnações diferentes deste herói. Não é de estranhar, pois o universo Marvel rege-se por esta regra simples há já vários anos – quando se alcança um certo grau de confusão no Universo, caracterizado por demasiadas ligações, mortes, traições e acontecimentos trágicos, inclusive uma batalha épica – é preciso recomeçar. O novo Gavião Arqueiro pertence à chamada linha Marvel NOW!, que, segundo a editora, não é nenhum reboot, mas sim uma continuação, após a mudança resultante do crossover respeitante ao confronto Vingadores vs X-Men. Para fazer esta dissertação mais curta, digamos apenas que, como sempre, aconteceu algo trágico que levou os dois grupos a lutarem e o mundo mudou mais uma vez. Marvel NOW! tem já várias fases e é uma das etapas de algo chamado Marvel ReEvolution. Não haveria motivos para tanta excitação, se não fosse uma incrível qualidade na abordagem que os criadores deste novo Gavião Arqueiro conseguiram desenvolver nas páginas da série. Sabemos que a Marvel já inúmeras vezes começou bem uma nova linha prometedora, para acabar muito mal, desapontando as esperanças despertadas nos leitores. Sean Howe, no seu excelente livro (premiado com um Eisner Award em 2013) Marvel Comics – The Untold Story, traçou o percurso histórico da editora, trazendo à luz algumas razões destas falhas de projetos bem pensados, mas posteriormente mal desenvolvidos e terminados. Podemos facilmente adivinhar que na maioria dos casos se tratou de dinheiro e ambições não realizadas de alguns criadores, chumbadas essas ideias pelos executivos da editora. Como exemplos mais gritantes e mais ou menos recentes, pode-se citar The New X-Men de Grant Morrisson ou The New Avengers de Brian Michael Bendis. Seja como for, e como diz no final o autor, ‘’as aventuras heróicas deles [dos super-heróis – JJ] nunca chegarão ao fim”. Esta regra de continuidade (r)evolucionária é sine qua non das novas versões e modus operandi não só da Marvel (p.e., The New 52 da DC). Obviamente, nem todas as séries conseguirão ficar na memória e provavelmente também o Gavião Arqueiro de Aja/Pulido/Francavilla deixará de entreter o público, embora esperemos que o divertimento dure tanto quanto já está viva a lenda de Robin dos Bosques [N.E. – Hawkeye (vol. 4) terminou em setembro de 2015]. Entretanto, a série garantiu dois prémios Best Cover Artist (Harvey Award 2013 e Eisner Award 2013) e um prémio Best Penciller/Inker a David Aja, um dos desenhadores desta BD. Contudo, o desenho é apenas um elemento forte deste novo Gavião Arqueiro.
No primeiro encardernado, ou trade paper back, publicado como Hawkeye vol. 1: My Life As a Weapon, recebemos quatro histórias principais (uma de dois capítulos) e uma extra de Young Avengers Presents #6 (completamente desnecessária, se comparada com o resto deste volume; aqui, Clint Barton surge como Ronin e “oferece” o papel de Gavião Arqueiro a Kate Bishop). O próprio protagonista não parece muito sofisticado. Parece como se tivesse caído da Lua. É totalmente diferente de Oliver Queen/Green Arrow (que na série televisiva Arrow é referido como The Hood), pois é modesto, interessado em lutar contra o crime de rua (Ollie, como veremos mais adiante, tem como prioridade atacar uma conspiração dos mais ricos de Star City) e raramente pensa duas vezes antes de se meter em sarilhos. Para além de os dois heróis serem arqueiros e gostarem (digamos que a cima da média) de mulheres, têm só mais uma coisa em comum: a consciência heroica que os leva a fazerem a diferença na sua vida e na vida dos outros.
À primeira vista, as armas que o Gavião Arqueiro usa para lutar contra o mal deste mundo são pouco úteis. Como fazer do arco e flechas uma arma mortífera pertencente a um protagonista moderno que tem de enfrentar máfias e gangues altamente armados? Como contar uma história destas de um modo cativante? Parece que Matt Fraction (argumentista) viu em Clint Barton um homem normalíssimo, um fulano, um sicrano e um beltrano, e a consciência desse facto resultou na ideia de contar histórias simples, mas ao mesmo tempo divertidas, devido à distância que Clint mostra de si próprio, sempre sublinhada no sentido de humor irónico. Nas histórias, chegamos a conhecer a vida dele como se fosse um dos nossos vizinhos, cansado depois do trabalho diário e das responsabilidades na estrutura d’Os Vingadores/The Avengers, mas sempre pronto a agir, qualquer que seja o caso. E assim, Clint Barton ajuda um cão, depois salva os vizinhos das mãos da máfia gananciosa que quer subir a todos a renda, rouba aos ladrões (mas engana-se quem diga que é para dar aos pobres), consegue tirar dos sarilhos uma jovem ruiva misteriosa numa corrida automóvel (fazendo piadas e rindo-se de si próprio e do seu espólio de diferentes flechas-engenhocas que nem ele próprio sabe que truque são capazes de fazer) e recupera uma cassete de vídeo com algo que nem todos os olhos deviam conhecer.
Esta BD é escrita duma maneira muito leve e não tende a complicar a receção, não exigindo do leitor capacidades de leitura extraordinárias. Embora hajam várias ligações que eventualmente possibilitam leituras intertextuais, embora os autores pisquem o olho aos seguidores do universo Marvel, a história é autossuficiente. Também não encontraremos aqui nenhumas cenas altamente patéticas, mas sim um divertimento bem pensado, inteligente e simples. A leitura mostrar-se-á de tal maneira cativante que não será preciso parar e dividi-la. Lê-se de um só fôlego. Aja surpreende algumas vezes com os seus enquadramentos e oscila no traço algures entre Tim Sale e Darwyn Cook. As inspirações dele são impecáveis. Este estilo retro condiz com a história cotidiana sobre um homem que não tem superpoderes mas desenrasca-se devido a muita vontade e a impulsos para ajudar. Não importa, inclusivamente a ele, que acabe sempre por arranjar sarilhos. Normalmente, uma história desta série começa com as palavras de Clint Burton “this looks bad” ou algo parecido. Esta frase funciona como um parêntesis narrativo. Como é garantido em cada história, o herói sem poderes sobrenaturais parece-nos ainda mais próximo e, no mundo diegético, sentimo-nos como em casa.
Basicamente, tudo o que acaba de ser escrito a propósito do primeiro volume TPB desta série, confirma-se em Hawkeye vol.2: Little Hits (Marvel Now!, 2013). Na vida de Gavião Arqueiro quase nada muda, só voltam os demónios do passado que fazem com que se possa ir repetindo “this looks bad” (ou até “worse”). O humor continua presente de mesmo modo – com distância e muita autoironia. Embora o que acontece seja muito corriqueiro, desta feita os autores decidiram complicar um bocadinho a linha narrativa. Ou seja, para a BD alternativa não seria nenhuma novidade, mas numa BD mainstream parece algo bastante, digamos, diferente. O modo de narrar é bastante fragmentário e recorrente dentro deste volume, isto é, as retrospectivas fragmentárias estão dispostas estrategicamente e exigem uma concentração maior para serem coladas, uma vez que a ação duma história faz, às vezes, referência a algo provavelmente já visto algures anteriormente. Os episódios são elípticos e complementam-se via estas retrospectivas dispostas ao longo de todo o livro. Felizmente, os autores conseguiram manejar com êxito este conceito da fragmentaridade controlada.
No que diz respeito aos protagonistas que reaparecem, voltamos a encontrar a mulher ruiva misteriosa, que antes o Clint já tinha ajudado, metendo-se em sarilhos que, por sua vez, continuam a agravar-se.
Os episódios My Bad Penny (cortado por capas de publicações amorosas cujo papel se revela só no fim da história) e Girls trazem a ruiva de volta. Na abertura, lemos sobre Atlantic City durante o furacão Sandy, depois vemos “seis dias normais da vida”, os já mencionados My Bad Penny e Girls, mais um história que introduz no palco um novo vilão na cidade, e, no fim, aparece o melhor, um cereja no topo dum bolo chandlereano, Pizza Dog in Pizza is My Business, ou seja, uma investigação feita pelo cão (salvo no primeiro volume pelo Clint) e narrada da perspetiva dele. O segundo TPB acaba com esta narrativa canil muito jeitosa.
Num dos episódios da série Arrow, cuja linha narrativa é desenvolvida a partir das aventuras do protagonista da DC conhecido como Arqueiro Verde, um dos inimigos de Oliver Quinn encapuçado sabe que, quando este já tiver chegado ao esconderijo dele, matando ou derrubando os 24 guarda-costas pelo caminho, ficará sem nenhuma flecha para lançar o golpe final. Normalmente, uma aljava tinha justamente esta capacidade, de caberem lá exatamente 24 setas. Infelizmente, para o nosso vilão, the Hood traz consigo um reforço, um ás na aljava – o detetive Lance da Starling City Police Department (SCPD).
A origem do vigilante referido em Starling City ora como The Hood, ora simplesmente como vigilante, é-nos contada no início de cada episódio. Oliver Queen (Stephen Amell), filho dum dos poderosos da Starling City, desapereceu depois do naufrágio do iate Gambit Queen. Sobreviveu e passou 5 anos numa ilha chinesa aparentemente deserta. Nas duas temporadas da série até agora produzidas (mais precisamente uma e meia, pois no momento de escrever deste texto estamos no nono episódio da segunda temporada) seguimos alternadamente cenas do início da luta dele pela Starling City contra o que se revela depois uma conspiração e flashbacks da ilha que nos revelam como é que Oliver Queen se transformou num arqueiro da primeira. [N.E. – no presente momento, está a ser transmitida a quarta temporada]
No início, Oliver Queen é um betinho que, depois do seu milagroso salvamento, tenta manter esta aparência, enquanto à noite, como The Hood, ataca, mata sem piedade e ameaça os seguintes nomes da lista que lhe foi deixada pelo pai. É um verdadeiro vigilante que, só depois dos acontecimentos trágicos da primeira série, decide mudar de estilo e, a partir daí, agir mais como um verdadeiro herói, isto é, tenta deixar de matar. Além do treino que recebe na ilha, ele não possui superpoderes, mas aposta na sua pontaria impecável e num grupo de ajudantes – o guarda-costas de Oliver, Digg, e Felicity, uma funcionária de tecnologia de informação na empresa Queen Consolidated. Eles formam um grupo que tenta lidar com todas as transgressões que ocorrem na Starling City.
Há quem diga que a criação desta encarnação de Oliver/The Hood, o protagonista, é muitíssimo influenciada pela ideia que já antes tinha sido usada por Nolan na nova trilogia do Batman, ou seja, que se tenta mostrar um super-herói como um simples homem cujos laços com a cidade onde age são incrivelmente fortes. O parentesco com o Batman não é casual, pois o Arqueiro Verde que está por detrás do The Hood da série televisiva, foi originalmente inventado por Mort Weisinger e George Papp, tendo os dois autores se baseado na figura de Batman (isto é, simplificando um bocadinho, porque a primeiríssima inspiração, conta a lenda, apareceu com o filme The Green Archer de Edgar Wallace). No filme emitido pela rede televisiva The CW, Oliver comporta-se como se fosse uma mistura de Bruce Wayne e Tony Stark. Pretende ser ignorante, misterioso e estranho, o que se justifica sempre como sendo idiossincrasias dum rico. No modo de agir relembra mais Batman, embora não hesite quando é preciso matar, do que o Homem de Ferro, pois tenta esconder-se da opinião pública, atacar do escuro e sobretudo meter medo aos seus alvos. Os ataques dele raramente são frontais.
É interessante sublinhar que embora a série tenha como ponto de partida o protagonista da BD, Arqueiro Verde, este nome não é usado no filme. Oliver não precisa de nenhuma alcunha espetacular, nem da aceitação pública das suas ações. Prefere esconder-se na sombra e usar um traje modesto. Os criadores da série desistiram de criar mais uma fábula colorida e improvável sobre os super-heróis, apostando no lado mais humano dos protagonistas. The Hood não se interessa pela fama, acha que simplesmente tem uma dívida por pagar, cumprindo a sua missão. Sacrifica-se para salvar a cidade que faz parte dele. Neste sentido, mas numa escala maior, relembra o Clint, que se preocupa sobretudo pela sua vizinhança. Mas enquanto o Olie é um sortudo, Clint quase sempre tem azar.
Arrow, tal como Hawkeye, já arrecadou algumas indicações e prémios em vários certames, tendo ganho, p.e., o Satellite Award 2012 para a melhor série televisiva. As duas primeiras temporadas foram planeadas para 23 episódios, mas de certeza haverá mais flechas na manga, isto é, ases na aljava, quer dizer, haverá de certeza ainda muitas surpresas para todos os aficcionados.
Agora nós!
O Gavião Arqueiro e o Arqueiro Verde, para além de serem arqueiros, têm mais traços em comum. Pertencem ao grupo de heróis sem poderes sobrenaturais e a este grupo de protagonistas que nunca antes conseguiram ganhar tanta fama por via das suas aparições na BD. O Gavião Arqueiro sempre esteve na sombra dos seus colegas Vingadores e não conseguiu destacar-se nem nos filmes, nem nos comics. Só Aja e Fraction conseguiram fazer justiça ao potencial dele. No que diz respeito ao Arqueiro Verde, o caso dele relembra um bocadinho a «carreira» do Homem de Ferro: um herói com uma boa história pessoal, mas sem nenhuma história decente. Os dois conseguiram ganhar destaque, ou até se tornarem estrelas no grande ecrã, no caso do Homem de Ferro, e no pequeno ecrã, no caso do Arqueiro Verde. Independentemente das afiliações editoriais, foi isto que Stan Lee sonhou durante toda a sua vida profissional. Ver os protagonistas da BD no grande ecrã. Mas o sucesso dos dois arqueiros de certeza que se deve também a uma certa elegância das armas brancas que usam. Talvez neste mundo brutalizado seja preciso ver algo um bocadinho menos violento? Cuidado, vem aí um swishhhh!
Tem traduzido alguns livros de BD portuguesa na Polónia. Na Universidade de Varsóvia, trabalha no Departamento de Pesquisa Interdisciplinar em Países de Língua Portuguesa do Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-americanos.