Entrevista: Laudo Ferreira

Entrevista: Laudo Ferreira

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Pedro Moura entrevista Laudo Ferreira, a propósito da sua trilogia de banda desenhada Yeshuah, editada no Brasil pela Devir. Complementar a esta leitura é a crítica de Pedro Moura à citada trilogia, disponível no blog Ler BD, aqui.

Entrevistador: Pedro Moura   |   Ilustrações e demais imagens: Laudo Ferreira

Pedro Moura: Comecemos pelo mais simples. Depois de tantas experiências enquanto ilustrador, caricaturista, trabalhador gráfico para projectos comerciais, e autor de HQs tão distintas, de teor histórico, de aventura, humor, e em registos diferentes, o que te levou a embarcar num tratamento da vida de Jesus, que nunca é uma empreitada simples?
Laudo Ferreira: A questão mística, espiritual. A busca pelo entendimento, pelo sagrado, que extrapolasse a religião. Embora tenha produzido meus quadrinhos dentro dos mais variados estilos, como você mesmo conta, existem algumas hq’s feitas dentro de vários períodos que flertam com essa busca. Por exemplo, “O duelo”, que lancei de maneira independente, através do editor Edgard Guimarães, em início dos anos 90, falava de questões como bem/mal, campos opostos, porém infinitamente ligados; ou a minissérie “Depois da meia-noite”, publicada em 2007, onde também há elementos místicos, diluídos dentro de uma trama policial. Quer dizer, essas questões, de uma forma ou de outra, se fizeram presentes em alguns trabalhos antigos.
Quando foi então, em fins dos anos 90, fui inundado por uma verdadeira enxurrada de reportagens, documentários sobre Jesus, inclusive nesse período, foi que se publicou no Brasil, as primeiras edições contendo os tão famosos textos apócrifos. A ideia de contar uma hq sobre a história dele, dentro de uma visão pessoal foi muito pertinente e, queria contar essa história de forma linear, sequenciada, como uma história em quadrinhos mesmo e não em blocos, ou capítulos, como é nos evangelhos canônicos. À partir desta ideia, comecei a me cercar de livros sobre o assunto, e das mais variadas vertente, desde textos católicos, até estudos de historiadores como Geza Vermes, filósofos clássicos como Jacob Bohéme, passando por Helena Blavátsky, hinduísmo, até mesmo apócrifos muçulmanos, que contam sobre Jesus. Li muita coisa dentro do tempo que levei para produzir os três livros.
Agora, a produção desta hq levou 13 anos, escrevendo o roteiro e desenhando, quase que simultaneamente.  O texto não estava pré-escrito, ele seguia quase que em um fluxo consciencial, na medida que avançava no trabalho. E, não se passa impunemente num feitio de uma obra assim. Minha entrega foi absolutamente inteira. Questionando e buscando coisas que estavam guardadas dentro de mim, inquietações, muita coisa. A busca saiu do campo teórico e foi para o orgânico também, com experiências de autoconhecimento intensas, através de meditações, trabalhos xamânicos, terapias alternativas, etc. No final disso, que culminou também com a finalização do segundo livro, “O círculo interno o círculo externo”, e início dos trabalhos do terceiro, “Onde tudo está”, estava uma pessoa diferente, um pouco mais amadurecida com a maneira de olhar a vida, minha arte e em especial aquela obra que estava fazendo.

PM: A figura de Jesus é extremamente complexa. No prefácio de Bárány Yaaru, isto é dito, e de facto há uma construção da sua figura que é impossível de “limpar”, pois o substrato está demasiado afectado por esse processo. Mesmo a sua existência histórica não é totalmente comprovada, mas tampouco a sua não-existência. Além do mais, existem muitos traços comuns com outras figuras religiosas de outros contextos históricos e culturais que podem ou não ter influenciado essa mesma “construção”, desde o nascimento “virgem” (uma noção estranha ao judaísmo) à sua natureza humana (próxima da de Krishna) até vários episódios da vida, aparentáveis a Buda, Mitra, etc. Qual era o substrato a que querias chegar? Qual é o Jesus que querias explorar?
LF: Embora muito tenha se falado que minha obra refletia um Jesus histórico, mais humano (e está tudo bem quanto à essas opiniões), na verdade, não me preocupei com essa questões, a da humanização de um ícone religioso. Não houve a intenção de tirar o sagrado dele. Na realidade, acredito que o sagrado exista, independente de que religião for, a experiência sagrada em si, verdadeira, está fora do contexto religioso, embora o termo automaticamente seja ligado. Houve a intenção de tirar as grossas camadas construídas ao longo dos séculos, de interpretações direcionadas deste elemento sagrado. Puxando para seu nicho, os fatos, transformando-os e moldando-os ao bel-prazer de cada instituição e daí, tornando-a como verdade. Uma maneira mais simples de perceber certos fatos é o que os próprios evangelhos canônicos contam sobre Jesus, sua postura como figura social e filosófica e a forma que durante séculos aquilo foi transformado.  Compaixão virando sinônimo de intolerância e preconceito. Para se dizer o mínimo. Sabedoria virando ostentação. Então, você simplesmente destrói todo o momento sagrado que foi a vida daquele homem, independente de sua origem celestial ou não, mas sua experiência de amor absoluto, por si só é sagrada, para torna-lo um ícone, um mito de algo que não corresponde a uma verdade que dispensa tudo isso, pois ela por si está num outro campo. Daí ateus e crentes fervorosos, de alguma forma, são oriundos da mesma fornada, pois creem e descreem de um mito e não daquele homem que buscou transcender, o que nós não queremos.  Se crê ou se questiona a existência de um clichê.
A procura foi tratar esse pontos e mais alguns, tendo justamente como base, o próprio evangelho canônico, por isso, por exemplo, a gravidez de Maria ser virginal, pois partindo deste mito, procurei trabalhar alguns questionamentos da relação humano, sagrado e o que foi feito depois. Provocar reações do leitor não acostumado a ver certas coisas, como a sequência do primeiro livro, “Assim em cima assim embaixo”, em que mostro a Maria com as pernas abertas e a criança recém-nascida, Jesus, ainda com o cordão umbilical. Muita gente aqui no Brasil me acusou de querer fazer polêmica, “insultando a imagem da Santa Virgem Maria”, mas se pensarmos bem, não há mais o que “polemizar” sobre a história de Jesus, pois tudo já foi feito, no teatro, literatura e cinema, então, houve ali a simples intenção de provocar uma quebra de dogma e mostrar de uma maneira mais pura e honesta, um momento humanamente sagrado e que é uma dádiva da mulher: gerar e parir vida.

PM: Existem inúmeros tratamentos ficcionais “sérios” da figura de Jesus, como os de Robert Graves, Catherine Clément, José Saramago, Nikos Kazantzakis, e Mikhail Bulgakov. Muitos deles constroem, naturalmente, fabricações totais, ao passo que outros empregam variadíssimos graus dos conhecimentos históricos conhecidos e debatidos em círculos académicos para construírem versões alternativas, e até mesmo ancoram de forma absolutamente sólida na Palestina do século I, nas suas redes de interesses políticos e económicos, para depois criarem outra forma de ver a figura dele. Qual a razão de teres optado não tanto por seguir um desses caminhos alternativos, mas antes ter eleito os evangelhos sinópticos como a espinha dorsal do teu projecto?
LF: Os evangelhos canônicos como ponto de partida para o roteiro, traziam  meus questionamentos. Dali partiriam mais coisas. Não quis mudar a história, quis vira-la do avesso, sem no entanto, quebrar sua espinha. Seria muito mais fácil, criar situações alternativas, visões diferentes do que é contado. Não me interessava. Então, como disse anteriormente, Maria seria engravidada sem ter contato sexual com seu marido, não importa se acredito nisso ou não, mas a situação seria trabalhada dentro de uma outra ótica, uma questão reflexiva. E por aí vai, nos três livros há vários momentos onde fiz releituras de momentos do evangelho canônico, não alterando a narrativa original, mas dando um outro enfoque. Esse era o desafio e a provocação ao leitor.

Yeshuah 01PM: Por outras palavras, e para parafrasear Robin Lane Fox (The Unauthorized Version), os Testamentos são constituídos com partes de ficção e partes de história, por vezes difíceis de destrinçar. É Yeshuah uma tentativa de re-equilibrar a história para um desses lados ou, pela mesma ordem de razão, um abraçar dessa (aparente) contradição e manter essa natureza dupla?
LF: Manter uma dupla natureza. Parte ficção e parte histórica. Parte humana e parte sagrada. E uma última, tudo junto. Uma tentativa e pretensão de re-equilibrar sim, a visão de Jesus, que é, por si só, na sua história oficial, os evangelhos canônicos, ou alternativa, os apócrifos, uma figura de absoluta importância para o ser humano, assim como foi Buda, Krishna, Maomé e tantos outros iluminados, pois nos traz uma filosofia de vida e um modo novo para enxergarmos a existência e que de maneira alguma foi entendido e absorvido por nós, ao contrário, como disse, foi transformado em ícone, em clichê, como objeto de manipulação. Reverenciamos,  pois ele é um elemento etéreo, divinal, filho de Deus, que não sabemos como é, pois é Deus; ou o tememos, pois ele é o filho de Deus, que logo logo, vai voltar para nos julgar e jogar os culpados, e aí tememos, pois podemos estar nesse time, na infinita tortura do inferno, com fogo e dor, então, temendo isso e procurando nos resguardar desta terrível eternidade, acabamos indo contra nossa natureza e julgando o tempo todo nosso semelhante, sem compreende-lo, sem aceita-lo, por pior que esse semelhante possa ser. Julgando-nos boas pessoas, quando às vezes só estamos cumprindo uma meta, seguindo um padrão imposto. Se for refletir sobre, Jesus não pensava e agia assim.

PM: Como indicas nos teus prefácios, epílogos e até pela inclusão da bibliografia usada, no fim dos volumes, não são apenas os evangelhos a fonte para Yeshuah, mas fontes alternativas, como os ditos evangelhos apócrifos, ou outros escritos do tempo, como os manuscritos do Mar Morto, etc.? O que ditava a tua escolha de um determinado elemento para integrar a história que querias contar mas não outro?
LF: Uma questão intuitiva. O que batia junto com o coração. Há muita coisa que saiu diretamente da versão original e foi para o roteiro, há muitas outras, que a ideia e o primeiro contato com aquilo, motivou reflexões de minha parte e que aí caíram para o texto da hq. Nada muito “técnico”, pelo contrário.

PM: E em que medida é que fontes exclusivamente textuais (textos, crítica textual, estudos bíblicos, etc.) foram mais importantes na pesquisa do que fontes arqueológicas, antropológicas, ou mesmo decorrentes de viagens ou outras esferas? Falo das escolhas de retratos fisionómicos, tipos de corpos, vestes, alimentação, arquitectura, etc.?
LF: Na questão cenográfica e física dos personagens, existiu uma fortíssima referência de filmes do cineasta Pier Paolo Pasolini, não só o seu “Evangelho Segundo São Matheus”, mas outras obras do diretor. Os tipos excessivamente reais, nortearam todo meu trabalho, algo muito evidente em Pasolini. Não há maquiagens ali, o leitor percebe roupas encardidas, sujas, pés e mãos grosseiras, dentes quebrados ou careados, cenários rústicos, despidos de embelezamento e por aí vai. Um pouco me prendi à pesquisas de época, pois há que se tomar cuidado para não misturar coisas ou errar períodos, isso é importante, pelo menos para minha maneira de conceber a história. Existia uma arquitetura para as casa judias da época, diferente, por exemplo, dos árabes do mesmo período que a história transcorre. Mas, também me permiti umas licenças poéticas, logicamente respeitando certos princípios de figurinos e cenográficos.
As fontes textuais, por sua vez, caminharam dentro de um outro aspecto, pois me servi mais de textos reflexivos, que muito inspiraram. Da parte textual histórica, pouquíssima coisa foi realmente aproveitada, serviu mais como base de conhecimento ou para reiterar algo já de meu conhecimento.

Yeshuah 02PM: Falaste do filme de Pasolini. Procuraste ver mais filmes? Existem alguns recontos da vida de Cristo que tenhas por preferida, mesmo que seja bem diferente da tua?
LF: Sim, vi alguns. Gosto imensamente, muito, do filme do Scorcese, A última tentação de Cristo. Inclusive a trilha do Peter Gabriel para esse filme é algo que foge ao raciocínio, comunica com outras formas de entendimento, e, essa trilha tocou muito no meu estúdio enquanto desenhei os três livros.
Vi alguns outros filmes, como pesquisa imagética, clássicos como Rei dos Reis [de Nicholas Ray], A maior história de todos os tempos [de George Stevens] e  Jesus de Nazaré do Franco Zefirelli, que é ótimo, mesmo sendo alicerçado na versão católica. O roteiro, além de ser escrito pelo Zefirelli, tem a colaboração do Anthony Burgess, autor de Laranja Mecânica. O filme tem uma base no livro original do Burgess, que é infinitamente melhor. Se o filme fosse mais fiel a esse livro, seria genial.
Não gosto do Paixão de Cristo do Mel Gibson, embora muita coisa ali esteja próxima à realidade da época, como o chicote flagellum, usado pelos romanos, naquela extensa cena da tortura de Jesus no filme. Um chicote com pedaços de osso, prego e vidro, criado pare destruir, dilacerar o torturado, quando chicoteado. O filme não acrescenta nada, em minha opinião, a não ser, mais uma vez “matar Jesus” e colocar a coisa de que “ele morreu por nós”. Além de uma dose muito forte de anti-semitismo, mostrando todo o povo judeu querendo a morte dele.

PM: E qual a integração na produção de HQ? Conheces outras obras de quadrinhos em torno de Jesus, ou usaste alguma para informar o teu caminho, ou já conhecias mas não quiseres revisitá-los, ou evitaste procurar novas leituras? Enfim, tendo em conta a existência de obras tais como a adaptação dos Evangelhos por Chester Brown (em Underwater), ou mesmo a Bíblia de Crumb, ou a integração em obras tais como as de Urasawa (Billy Bat), já para não falar de versões mais conformes às várias denominações cristãs ou, pelo contrário, as variadíssimas versões paródicas, sarcásticas ou desconstrutivas, qual é a relação de Yeshuah com esses outros textos, se é que há alguma?
LF: Não há nenhuma relação com outra obra dos quadrinhos. Das que você cita, só conheço o Genesis do Crumb e, acredito que quando ele começou a trabalhar nesse livro, eu já estava há algum tempo no meu, pois comecei os desenhos em 2000 e o Crumb, acredito que começou a trabalhar em sua Bíblia, bem depois.
Conheço  algumas versões satíricas, que embora entenda a questão de cutucar a instituição católica, e em muitas vezes, isso acaba tocando mais os fiéis, do que a instituição em si, não acho que traga nada de novo e provocativo, mesmo que você fazendo um Jesus fumando maconha, um Jesus  fazendo sexo anal com Deus, e por aí vai, para mim, por mais que isso possa parecer provocador (e deve ser), perceba que a Igreja Católica, a instituição católica, não se incomoda com isso, há uma tolerância, uma certa aprovação, claro diferente do que acontece com muçulmanos, por exemplo, que é uma outra situação. Isso porque, na minha leitura, não mexe com as estruturas mais, sempre vai ser o Jesus, sempre vai ser o Deus da igreja.
Eu, do meu lado, também não queria provocar dessa forma, pois seria mais um. Poderia agradar à casta de artistas, intelectuais, notoriamente atéia, mas nada acrescentaria, pois como disse, toda forma de sátira já foi feita e, não incomoda mais a igreja. Então minha ideia não foi ofender, debochar, ironizar, a figura de Jesus, mas sim tirá-lo do altar católico e mostrar que há uma outra possibilidade, que o discurso dele se aceito e entendido principalmente, sem a grossa cobertura da igreja, é muito atual, fundamental para o ser humano.
Para chegar nesse ponto, não me mirei em nenhuma outra obra dos quadrinhos, pois como disse, conheço poucas e nunca vi nada nessa linha.  Acredito que procurei trabalhar a minha busca pessoal, o meu Jesus, e mais, o meu sagrado, livre de qualquer dogma e religião. Para isso, inclusive, passei por um profundo processo de entendimento, de limpeza do ego, pois essas coisas interferem muito. Para não pensar que estava produzindo “uma obra prima” e sim contando algo verdadeiro, do fundo de meu coração, honesto comigo. Foi uma busca pessoal para se chegar a esse princípio, só assim teria um Jesus “meu”,  verdadeiro, sagrado e humano.

PM: Essas escolhas determinaram igualmente, parece-me, o tratamento da esfera mais propriamente política. Por exemplo, a questão das dinastias de Araão e de David, não no seu sentido simbólico, mas de pertença às linhagens reais de Israel, parecem ser suspensas na discussão do teu livro. Isto deveu-se ao desejo em seguir os Evangelhos somente, ou trata-se de uma realidade sobre a qual estavas ciente e preferiste evitar?
LF: Num primeiro momento, quis me deter mesmo aos evangelhos, canônicos e apócrifos. Essa questão de ascendência de Jesus não me interessou, primeiramente porque cá comigo, tenho certas dúvidas, pois me parece muito com algo formulado para dar à pessoa de Jesus uma dinastia, uma ascendência nobre e importante para o próprio povo hebreu, que são as figuras de Araão e David, quando na realidade, pelo menos, dentro de um modo de pensar meu, Jesus não precisa disso. Mas claro, existem as previsões tão decantadas sobre e vinda da figura do Messias no velho testamento, espelhado em Jesus. Porém aí, vindo de pesquisas minhas, constatei que na realidade Jesus não trazia mesmo o perfil que o Messias, um conceito judaico por excelência, pedia. O Messias é um guerreiro sagrado que vindo de Deus/Adonai traria a libertação para o povo hebreu. Jesus nunca pregou a revolução por armas, ao contrário, pedia uma mudança interna, para aí sim, ocorrerem as mudanças externas. Dentro do conceito messiânico judaico, houve Simão bar Kokhba , que viveu um pouco depois do período de Jesus, esse sim, dentro do verdadeiro conceito do Messias. Jesus mesmo, se ler nos próprios evangelhos canônicos, nunca se afirmou “o messias”. É ler com atenção.

Yeshuah 03PM: Ainda nesse seguimento, o mesmo se presta em relação à realidade histórica da relação com o ocupante romano? Apesar de surgirem muitas referências aos romanos, à sua presença e abuso de poder (do ponto de vista judaico), é raro sermos testemunha desse mesmo poder? Os romanos acabam por ter presença e voz activa somente no terceiro volume? De novo, perguntaria que princípio presidiu a essa gestão?
LF: A questão política e social da presença romana em Israel, na hq, só fica mais evidente no terceiro livro, pois a intenção era crescer isso à medida que a figura de Jesus começa a incomodar o Sinédrio, a casta de sacerdotes hebreus, vivendo sob a proteção e benefícios do governo de Roma, até então, a história caminha dentro dos vilarejos, das pequenas casas e desertos, enquanto Jesus espalha sua palavra, sua proposta. À medida que vai se aproximando de Jerusalém, grande centro, a presença romana e do Sinédrio vão se fortalecendo. Vale contar que existe no roteiro menção a um governo corrupto por parte do perfeito Pilatos, que realmente foi deposto do seu cargo e exilado, sob acusação de corrupção, algum tempo após a crucificação de Jesus. Isso é um fato histórico. Existe porém na narrativa a intenção de mostrar um distanciamento e desinteresse da parte de Roma/Pilatos, pela figura de Jesus, o que provavelmente tenha acontecido, pois no período, era comum a proliferação de profetas e pseudo-Messias, isso não causava problema nenhum para eles, que estavam interessados simplesmente em obter dinheiro do povo hebreu e trabalho. O resto, no caso, os profetas que afrontavam as castas religiosas, como Jesus e João Batista, eram de interesse dos judeus. O próprio Pilatos abominava o contato com o povo hebreu, tanto que ao invés de morar em Jerusalém, lugar onde comandava e que deveria estabelecer morada, residia em Cesaréia, cidade antiga e de porto marítimo, provavelmente de menos circulação de gente comparada à Jerusalém e mais aprazível para ele.

PM: A decisão em tomar este percurso, evangélico, leva a que os milagres de Jesus sejam retratados. Isto é, a dimensão sobrenatural está presente, assim como a do “testemunho” dos seus poderes. Por outro lado, a dimensão humana é por demais sublinhada, não apenas pela forma como os eventos têm lugar, junto aos seus camaradas, mas até pelo tratamento gráfico, dos corpos. Há aqui algum paradoxo, em tratar Jesus a um só tempo como “humano” e “divino”, ou é uma escolha consciente precisamente para sublinhar esta natureza complexa da figura?
LF: Exatamente. Trata-se de uma escolha em mostrar as duas naturezas coexistindo, dentro de um outro enfoque, de um outro campo, fora do peso religioso, católico. Como disse anteriormente, apesar de ter o peso humano, realista, forte, nesta hq, o elemento supra-real age dentro de uma outra perspectiva, às vezes sutil, inspiradora, às vezes sem a clareza do entendimento humano, no caso, dos personagens. Como disse São Tomás de Aquino, “Não cabe à criação entender a natureza do criador”, mesmo ela fazendo parte dele, arremato aqui.
Esse aspecto torna-se importante nos três livros do Yeshuah, principalmente pelo desafio que é mostrar esses dois planos, sem o peso da religião, tentando assim aproximar-se de “possibilidades”, digamos assim.

PM: Apesar do que já conversámos sobre as fontes empregues em Yeshuah, e as escolhas na estrutura da tua história, gostava de compreender outros elementos integrados na obra. Por exemplo, na parte “mística” da visão de Jesus, é por demais claro que usas a noção das chakras iluminadas no corpo de Jesus. E falaste das lições de Sócrates, etc. Qual é o objectivo de beber de outras realidades místicas para informar a vida de Jesus?
LF: Justamente em formar o “meu personagem”, criá-lo sem vícios de religiões e dogmas. Então fiz uma “salada mística”. Vale ressaltar que, mesmo tendo vivido dentro do judaísmo (levando em conta sua existência), sua atitude caminhava para um outro rumo. Mas por outro lado, não existia também a ideia de fundar uma outra religião, em seu discurso, embora haja a tão famosa frase do Novo Testamento, quando Jesus se dirige a Pedro: “Sobre ti edificarei minha igreja”, é óbvio, pelo menos dentro do meu ponto de vista, que isto foi coisa que igreja católica agregou posteriormente.
Nessa busca de humanização de sua figura, essa mistura de conceitos, ideias, misturando Sócrates, com espiritualidade mais aberta e coisas do xamanismo, por exemplo, sem tirar a questão sagrada, como disse anteriormente, gera uma outra visão, uma outra postura, sem críticas diretas à Igreja Católica, mas tentando tirar o “selo de aprovação” da própria instituição.

Yeshuah 04PM: Esta entrevista está a ser dirigida a Laudo Ferreira, que estou a tratar como autor dos três volumes de Yeshuah. No entanto, nas capas vemos o nome de Omar Viñole (com a indicação de ser dele a arte-final) e o prefácio de Júlia Bárány Yaaru aponta igualmente para uma imensa colaboração em termos de investigação. Em que medida é que se distribui aqui a responsabilidade autoral, de criação, de trabalho técnico, etc.? As decisões de estruturação da obra, de escrita, de tratamento das personagens, é tua, eram debatidas em conjunto, ou de todas as conversas que terás tido aproveitavas aquilo que melhor satisfazia o teu propósito?
LF: Sou um criador completamente comprometido com minha criação.  Quando estou no processo de parir, ou gestação, convivo vinte e quatro horas com aquilo na cabeça, pensando, refletindo. No caso específico do Yeshuah, as ideias, conceitos, formas, visuais, tudo ia se formatando conforme ia produzindo. Aí impera um certo egoísmo de minha parte em não debater sobre o que estou criando, embora tenha ciência que isso é importante, sem dúvida, mas algumas vezes, algumas ideias estão tão formatadas e em alguns outros casos, tão imagéticas, que nem é possível compartilhar com outra pessoa a não ser consigo mesmo.
Mas nem tudo é tão extremista assim. O Omar teve uma contribuição fundamental, com sua arte-final em todo o processo deste trabalho, principalmente pela parceria ao longo de todos os treze anos que a obra levou para ser completada. Não enxergo a trilogia de livros, hoje em dia, sem a parceria técnica com ele. E foi por sugestão dele, que inseri no primeiro livro, “Assim em cima assim embaixo”, os magos. Inicialmente fui relutante com a sugestão, pois julgava muito coisa de presépio, aquela coisa bem de manjedoura, animais, pastores,  Jesus na manjedoura, porém, comecei a pensar melhor na ideia proposta pelo Omar, na ocasião, e vi que talvez fosse possível dar um outro enfoque às figuras dos magos, como estudantes da escola do Zoroastrismo, da astrologia, dos céus, dando um caráter místico a eles e, foi por esse caminho que acabei enveredando. Acredito hoje, a participação dos três personagens, os magos, na primeira parte da história, deu um grande peso à narrativa.
A Júlia Bárány, filósofa, estudiosa profunda do assunto, principalmente de textos apócrifos, trabalhou em início dos anos dois mil, na Editora Mercuryo, aqui no Brasil e, foi a primeira pessoa que publicou textos apócrifos no país. Chegou a enfrentar alguns problemas oriundos de vários seguimentos religiosos, por causa deste material publicado. Isso tudo gerou um enorme interesse de minha parte em conhece-la e propor a publicação do meu projeto. Estávamos então  por volta de 2005 e estava na procura de uma editora aqui que abraçasse minha trilogia. Vale ressaltar que neste período o mercado editorial brasileiro estava muito diferente de sua atual condição junto à produção de Histórias em Quadrinhos e um tipo de projeto como Yeshuah, obviamente, gerava estranheza. Havia procurado a Júlia justamente para propor-lhe a publicação de Yeshuah pela Editora Mercuryo, e acabamos ficando muito amigos, em longas tardes conversando em seu escritório sobre esses assuntos tão pertinentes a nós. Porém, suas sócias na ocasião e algumas livrarias que eram parceiras da editora, não conseguiam captar qual era a proposta de Yeshuah, consequentemente não viam público para isso. Lembrando que, naquele período, não se vislumbrava, por parte das editoras e livrarias, o potencial que as hq’s hoje mostram no Brasil.
Então, em 2009, quando fechei a publicação com a Devir Livraria, grande parceira nisso tudo, vale ressaltar, julgava que o primeiro volume teria que ter um prefácio de uma pessoa que não fosse ligada ao seguimento dos quadrinhos, mas sim, um expert no assunto que a obra tratava, nada mais justo que chamar  a Júlia Bárány.
Enfim, tanto o Omar, quanto a Júlia,  são parcerias e participações, fundamentais para a obra em si.

PM: Jesus é uma personalidade, até certo ponto, maleável graças à possibilidade de não apenas o interpretar mas até utilizar de formas específicas os episódios dos evangelhos: podemos falar de um Jesus humano, rabi, mundano, preocupado com a vida quotidiana dos seus vizinhos, mas também de um Jesus divino, sobrenatural; podemos salientar os seus traços pertencentes ao mais tradicional judaísmo do seu tempo como a uma certa rebeldia tradicional, seguindo ou não lições e atitudes de outros líderes do seu tempo; um Jesus pastor e um Jesus activista; etc. Qual é o traço principal que gostarias que fosse sublinhado com estes três livros? Ou que tipo de personalidade procuraste respeitar?
LF: Um homem sagrado, porque é humano, na melhor acepção da palavra e na melhor possibilidade de ser. O Jesus de Yeshuah traz o sagrado em si, vivencia-o, pois está na sua natureza humana, porém compartilha essa sua experiência com quem ama, com quem está próximo a ele, com quem o ouve. Ele erra, chora, grita, percebe suas falhas, porque é humano, porque é o sagrado experienciando a vida.
Sem dar spoiler aqui,  quando Madalena o vê, saindo da caverna e ouve “conheça a você mesmo”, a máxima de Sócrates, esse Jesus a liberta, nos liberta de qualquer corrente que nos prenda a conceitos e religiões. Esse é o meu Jesus, um verdadeiro libertador, um mestre que, no final não deixou prova alguma de sua existência, apenas sua mensagem. A mensagem inicial, me refiro, não ao que a igreja católica se apoderou.
Ou, como diz a velha no final de “Onde tudo está”, “É o que você quiser acreditar”.

Yeshuah 05PM: O que presidiu à escolha de utilizar termos mais próximos da fonética original – nomes de pessoas, de locais e expressões? Trata-se somente de um efeito de referência que era desejado, ou querias que houvesse um nível de “estranheza” na linguagem que obrigasse o leitor a reflectir sobre o seu significado mais profundo, histórico, etc.?
LF: Essa “estranheza” era a intenção original, trazer os nomes desses personagem tão conhecidos para sua versão hebraica, portanto próxima a versão original, me soou interessante e mais sensata também. Então, você ter Miriam ao invés de Maria, Yohanán ao invés de João, e Yeshu, ao invés de Jesus, iria gerar um distanciamento das pessoas por essa estranheza mesmo, isso, traria novas perspectivas para a leitura, perspectivas boas, ajudando inclusive, uma nova ótica sua a história que poderia ser associada a uma visão religiosa, caso mantivesse os nomes em sua versão conhecida. Lógico que para muita gente houve uma tremenda dificuldade de associação, pela dificuldade de leitura dos nomes, mas, acredito que foi só no primeiro momento. Não tive nenhuma crítica tanto pelos especialistas de quadrinhos, quanto de leitores, nesse quesito.
Vale ainda lembrar, num tom mais irônico, digamos assim, que fica muito difícil de “levar a sério”, um hebreu de mais de dois mil anos atrás, vivendo na Palestina, chamado Joaquim (o sacerdote, pai do João Batista). A versão hebraica de  Yehoiahim, é muito mais plausível, não?

PM: Esta pergunta deve-se ao facto de que muitas das expressões hoje associadas a Jesus, como as de “filho do Homem” e “filho de Deus/Yahweh”, parecem pertencer-lhe exclusivamente, mas em termos históricos elas eram expressões mais localizadas, como a segunda, aplicável ao rei de Israel nos Salmos. Em que medida procuraste que se regressasse a um significado mais genuíno, digamos, menos Cristianizado, dessas mesmas expressões?
LF: Embora esses termos sejam usados em um ou outro momento nos três livros, não foi um ponto fundamental do roteiro, procurei usar apenas como referência para a dramaticidade de determinadas cenas ou sequências em que seriam importantes para o contexto. A relevância  do Jesus em Yeshuah é por si só, focada nele. Sua pessoa, o que trouxe, o que queria transmitir, propor às pessoas. Não se valeu de um “pistolão”, como se diz aqui no Brasil, ou seja, uma alta referência, “Filho do Homem”, “Filho de Deus”. Mesmo existindo toda a conotação messiânica do judaísmo, e teológica, preferi trabalhar com meu Jesus humano-sagrado-divino, como ele foi e como todos são e podem ser. Essa é mensagem.

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