A Criança na BD: A infância em grupo

A Criança na BD: A infância em grupo

A exposição central do festival Amadora BD 2015 A Criança na BD é comissariada por João Paulo de Paiva Boléo, com sugestões de Pedro Moura, sendo a cenografia da responsabilidade de GNBT.

No dia 31 de outubro, Pedro Silva documentou fotograficamente a exposição A Criança na BD, a qual  se encontra dividida em 5 núcleos, a saber:
1) Tropelias infantis – inocência e perversidade
2) Heróis / Aventura
3) A infância em grupo – “Turmas” / Família / Escola
4) Peanuts / Mafalda / Calvin
5) O fim e a revisitação da infância

De modo a facilitar a navegação, optámos por dividir as fotorreportagens por 5 artigos, devidamente acompanhados pelo texto de João Paulo de Paiva Boléo que consta do Dossier de Imprensa Amadora BD 2015, remetido pela Organização.

Veja mais 4 fotografias da exposição dedicada à A infância em grupo – “Turmas” / Família / Escola na nossa fotorreportagem do dia 31 de outubro, disponível aqui.

3. A INFÂNCIA EM GRUPO – “TURMAS” / FAMÍLIA / ESCOLA
João Paulo de Paiva Boléo

Se as compartimentações têm sempre algo de artificial, este capítulo demonstra-o exemplarmente, pois não só algumas séries do capítulo inicial estariam bem aqui, mas também o ambiente e dinâmica de algumas séries de aventura aqui se poderiam situar, bastando recordar os Katzenjammer Kids ou Bob et Bobette – o que são, afinal, senão “famílias”? Este será o capítulo, talvez, em que as crianças serão mais crianças. É a evocação em que os autores mais projectarão como que um misto de memória e idealização dos códigos e rituais de infância, a vida de rua e de grupo, as amizades (e conflitos normalmente passageiros), em geral num ambiente clara ou subtilmente resguardado pelo contexto familiar. E a descoberta da sexualidade. E a interligação entre o universo familiar e de bairro e a escola.

Sem esquecer, mais uma vez, Quim e Manecas, que se vêem por vezes envolvidos em ambientes mais familiares, comecemos então pela BD portuguesa, que desde cedo, como temos visto, prestou especial atenção à criança, como lufada de ar fresco, como brincadeira, como pedagogia, como evasão, como alargamento de horizontes e descoberta do mundo… Crianças personagens e crianças destinatárias, com a ajuda da família, pela ironia dos textos, pelos versos ritmados e cativantes que convidam também ao gosto pela leitura e aos saudáveis exercícios de memória, entre outras actividades e iniciativas (como as construções de armar) que faziam parte de todo um “programa” subjacente à filosofia de cada revista, e cuja, matriz, como sabemos, foi o ABC-zinho.

E nesta plétora de publicações infanto-juvenis que vão despontar desde meados dos anos 1920, com mais ou menos regularidade, “heróis” ou figuras efémeras, a Criança e a sua entourage vão estar presentes de forma significativa durante várias décadas. Será desde logo o caso de Pim Pam Pum!, suplemento d’O Século já evocado na sua fase inicial, e que vai registar ciclos ligados a alguns dos mais relevantes autores de BD, como TioTónio (A. Cardoso Lopes), Arcindo Madeira ou Fernando Bento, que animará, nomeadamente, uma Volta ao mundo pelos miúdos que dão o título à revistinha.

De muitas evocações de que a preparação desta exposição também é feita, cruzam-se memórias de um tempo em que os “patinhas” eram sinónimo de BD de leitura preguiçosa e sem grande qualidade, até à irrupção do desenhador que primeiro era referido anonimamente como “o dos Patos”, que se distinguia pela qualidade, até se conhecer que se tratava de Carl Barks, hoje um dos nomes mas prestigiados da história da BD. E também houve um tempo em que serem séries só com tios e sobrinhos, sem pais e filhos, representava censura e recalcamento. Hoje concentramo-nos mais na qualidade e imaginação, na geografia, nas diversas componentes de um mundo imaginário que não deixa de ser a sociedade capitalista. Se as figuras de referência são adultos, como Donald ou o Tio Patinhas (Scrooge McDuck, nome inspirado, como se sabe, no célebre Conto de Natal de Dickens), os sobrinhos de Donald, Huguinho, Zezinho e Luizinho na versão brasileira consagrada entre nós (Huey, Dewey, Louie) trazem uma frescura e dinâmica que constitui uma mais valia, pois tanto são “heróis” e participantes activos como crianças com as suas tropelias e brincadeiras. E – de memória ainda – sintetizemos esse vasto universo com uma história ideologicamente simbólica, em que os miúdos são os juízes de um “concurso” destinado a determinar se vale mais o dinheiro (Tio Patinhas), o talento (Donald) ou a sorte (Gastão/Gladstone Gander). E chegados ao fim, o “júri” não consegue tomar uma decisão, a não ser a de que são agora os sobrinhos que têm de se disputar para ver qual das “virtudes” vale mais…

No que diz respeito à dinâmica de grupo infantil, às “turmas”, uma das mais influentes veio a ser Little Lulu, conhecida entre nós (mais uma vez por via brasileira) por Luluzinha, que tem a característica invulgar de ter sido criada por uma mulher, Marge. Começando por ser um panel, ainda nos Anos 1930, vai ser a sua substituição de Henry – uma tira também popular em Portugal de um miúdo com histórias sem ou com poucas palavras, Pinduca, que muda de syndicate – nos Anos 1940 que vai contribuir para a dinâmica da série, potenciada pelas revistas animadas por John Stanley. É a idade em que as meninas gostam de andar com meninas e os meninos com meninos (encabeçados por Bolinha/”Tubbs”), com os seus famosos clubes exclusivistas, vivendo a série muito desses amigáveis “confrontos”, para lá da forte personalidade de Luluzinha e da natural diversidade de peripécias e aventuras em que se vêem envolvidos.

É no contexto da vasta produção americana publicada em revistas brasileiras, entre as quais Luluzinha, que Mauricio de Sousa irá criar várias personagens, nomeadamente Cebolinha, onde surgirá nos Anos 1960 uma menina que virá a ter um sucesso estrondoso, Mônica, que virá a congregrar na sua “turma” a maior parte desse universo infantil feito também de disputas entre miúdos e miúdas, de confrontos com uma personalidade bastante determinada, seja em contexto escolar, de rua ou familiar. É uma visão da infância simpática, viva, imaginativa, sem deixar de ser convencional, também inspirada na experiência pessoal do autor e dos seus muitos filhos.

A série brasileira de maior projecção também tem tido bastante divulgação entre nós, nas próprias publicações e seus derivados, incluindo o cinema, como vai acontecendo com a maior parte das BDs de sucesso.

Com algumas afinidades mas um espírito diferente, talvez com uma maior exigência reflexiva, é a criação de Ziraldo, nos Anos 1980, Menino Maluquinho. Começando por ser personagem de literatura infantil, merece aqui referência porque sendo Ziraldo (que, como alguém disse com um humor bem brasileiro, «já nasceu com pseudônimo»), além de cartoonista, um grande autor de BD, e sendo a criação do Menino muito ilustrada, as duas dimensões de algum modo se completaram. Ziraldo, aliás, artista prolífico e polémico, é o criador de uma das mais notáveis séries brasileiras, por onde perpassa este espírito infantil de uma “turma” muito especial, inspirada no folclore brasileiro, Pererê, que nos Anos 1960 também teve eco entre nós.

Muito diferente é o espírito, a composição, a estética de uma das mais emblemáticas “turmas” da BD franco-belga, La Ribambelle de Roba. Muito heteróclito e invulgar, o grupo inclui dois rapazes e uma rapariga, mas também dois miúdos japoneses especialistas em artes marciais e um negrinho trompetista. Começando por um ambiente familiar de disputa por um terrain vague num contexto urbano de que só a BD belga tem o segredo, irão depois viver aventuras mais arrojadas. Roba é um dos melhores desenhadores da escola da revista Spirou, mas apesar do interesse e originalidade desta série, que também teve edição em Portugal em livro e revista, viria a dedicar-se a uma das séries infantis mais emblemáticas de toda a BD franco-belga, Boule et Bill.

O simpático miúdo e o seu cão cocker são símbolos e projecção do sonho de uma criança feliz com o seu inseparável companheiro das competentes orelhas compridas. Num ambiente familiar e num contexto urbano acolhedor, Bill é um miúdo querido e imaginativo que tem ideias que nem sempre correm bem e prega partidas relativamente inocentes, de que uma das principais vítimas é o próprio pai, num ambiente doce, ternurento e divertido, cheio de uma bonomia muito característica de uma certa BD belga, e o que mais impressiona é a frescura com que a série, iniciada em finais dos Anos 1950, se foi prolongando no tempo. Estamos longe, muito longe, de Max und Moritz

Com algumas similitudes estéticas e de contexto urbano mas já diferentes no espírito são algumas séries mais recentes protagonizadas por grupos de rapazes (e raparigas!) em torno de uma personagem central, em que, de uma forma mais inocente nos casos e já não tanto noutros, já se vão colocar as questões das relações entre os dois sexos, paixonetas, projectos de namoro, descoberta da sexualidade, voyeurismo, em ambientes familiares e escolares, nem sempre os miúdos primando como bons alunos.

É o caso de Cédric, de Raul Cauvin (famoso por Les tuniques bleus) com desenhos de Laudec, um aluno com problemas cujas peripécias giram em torno das maiores ou menores dificuldades de se “declarar” a certas colegas, caso, a certa altura, de uma recém-chegada miúda chinesa.

Le Petit Spirou, de Tome e Janry, que também animaram diversas aventuras de Spirou et Fantasio, começou por ser uma jeunesse do herói, mas depois passou a um universo próprio em que uma visão mais moderna e crítica simultaneamente se integra e subverte uma certa tradição da BD belga entre o familiar e o escolar. Agora não só a componente de descoberta da sexualidade é mais acentuada, como há toda uma desmistificação do ambiente educativo e parental, religioso, etc., das suas contradições e hipocrisias, uma série que se pretende divertida e bem disposta nos seus gags, mas que desde finais dos Anos 1980 subverte de algum modo a tradição clássica em que se insere. Claro que o espírito iconoclasta da escola da revista Spirou já vem de longe, mas há uma actualização de temas que acompanha os sinais dos tempos.

Sucesso ainda maior, com um desenho mais caricatural e contorcido, é Titeuf, do suíço Zep, que também tem edições portuguesas, com uma variedade de gags entre amigos, com professores, etc., mas em que directa ou indirectamente o tema da descoberta sexualidade é dominante.

Em contraponto deste universo juvenil mais agressivo, embora não deixem de se verificar muitas ingenuidades que também fazem parte da atracção pela série, estamos “noutro mundo” – igualmente de sucesso, perante uma série como Les Triplets, de Nicole Lambert, que tem sido publicada em Madame Figaro, uma revista francesa feminina, e que nos transmite um ambiente doméstico muito mais infantil e aconchegado em torno dos trigémeos.

Embora muito diferente, esta perspectiva de uma infância com atrevimentos e imprevistos mas muito mais suave e doce, o que o desenho reforça, faz-nos recuar muitas décadas e pensar numa das melhores BDs portuguesas de cariz familiar, das mais naturais e conseguidas, Laçarote e Pantalonas, criados na revista Lusitas, da Mocidade Portuguesa Feminina, e depois na Fagulha que lhe sucedeu, por Bixa (Maria Antónia Cabral), em geral a partir de histórias de Mitza (Maria Teresa Andrade Santos). Todo este contexto pode não convocar à partida a atenção, mas vista sem preconceitos e com um olhar pelo menos tão inocente como o das autoras, descobriremos uma das melhores BDs portuguesas, que bem merecia uma reedição. Ao contrário do que se possa pensar (e que está patente noutras secções e noutras páginas destas revistas, como a BD sobre as férias “modelares” na Fagulha), não estamos perante propaganda piedosa ou a transmissão de um mundo católico-conservador, embora as práticas religiosas também estejam presentes, mas é um retrato vivo e um autêntico programa educativo da rapariguinha e o seu irmão mais pequeno para a descoberta responsável do mundo, dos outros, da natureza, dos animais. É um dos melhores retratos das famílias da classe média, abrindo horizontes às crianças e fazendo-as participar na dinâmica familiar na cidade ou no campo, lição que está na origem da maior parte das peripécias em que elas tomam por sua conta e risco iniciativas… excessivas, num ambiente em que a bonomia se sobrepõe à autoridade discreta. Em paralelo, animaram também uma série animalista com um espiríto parecido mas em que as tropelias e o lado lúdico e humorístico são mais evidentes.

Curiosamente, uma série recente que está a ser desenvolvida na blogosfera mas que chegou às livrarias, As crianças são muito infantis, de Filipa da Rocha Marques e Fernando Caeiro, lembrou-me subtilmente Laçarote e Pantalonas (mesmo que os autores porventura não conheçam), onde também há viagens de família de carro (aqui é a cena permanente), e em que, com um esquema simples e eficaz, uma família, e em especial os mais pequenos, se interrogam e “filosofam” sobre a vida de forma ora engraçada ora desconcertante, num ambiente de simpática cumplicidade familiar.

Porém, pensamos que – com um olhar atento – muitos concordarão que a joiazinha da BD familiar se encontra nas páginas do Pajem do Cavaleiro Andante pela delicada e inconfundível mão de Fernando Bento. Entre o “diário” autobiográfico e a recriação enternecida da infância, as peripécias familaires, em que se expõe o próprio Fernando Bento, em torno da filha Anita e depois de Filipa, desde preciosos auto-retratos (como aquele em que se “protege” com a armadura do Cavaleiro Andante), até ao atelier posto em pantanas pelos miúdos, as tropelias inocentes mas devastadoras, a ideia encantadora do anjo da guarda ele próprio vítima de partidas, as idas à praia, etc., é um mundo real e quotidiano e ao mesmo tempo a evocação idealizada e poética do mundo infantil reflexo, no fundo, de um profundo amor pelas crianças.

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1) Tropelias infantis – inocência e perversidade
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nota: fotografias de Pedro Silva; texto de João Paulo de Paiva Boléo extraído do Dossier de Imprensa remetido pela Organização.

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