Filipe Melo: entrevista

Filipe Melo: entrevista

Filipe Melo

À medida que os anos vão avançando, os projetos criativos de Filipe Melo vão-se diversificando pelos mais diferentes meios. Em banda desenhada, é o argumentista da trilogia As Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy, um bestseller nacional que teve direito a edição  norte-americana pela Dark Horse. Para o início do primeiro trimestre de 2016, está previsto o lançamento da BD Os Vampiros, novamente na companhia de Juan Cavia.

Nuno Pereira de Sousa: Que principais géneros, personagens e autores foste lendo em banda desenhada ao longo da vida?
Filipe Melo: Na verdade, só em tenra idade me tornei um leitor de BD mais dedicado. O que me levou a fazer banda desenhada foi o cinema e, de uma forma menos directa, a literatura. No entanto, a BD de que gosto é bastante variada, por isso posso apenas dar alguns exemplos de livros que me marcaram: O Eternauta, o Incal, o Maus, o Dylan Dog, Little Nemo, o Blankets

NPS: Tens um percurso no cinema e na banda desenhada. Como o teu percurso numa área tem influenciado a outra?
FM: A pouca experiência que tenho a fazer filmes mostrou-me que o processo criativo é muito semelhante. Surge uma ideia, que com algum trabalho se transforma num guião, que depois passa a uma planificação – na BD é o layout, no filme é o storyboard. Depois vem o processo de desenho, que é equivalente à rodagem. Muitas vezes dou por mim a falar com o Juan Cavia sobre o acting das personagens de um livro; é quase um trabalho de direção de actores. Depois vem a pós-produção de imagem e de som, que na BD seria a balonagem e a correção de cor. Por fim, com o livro ou com o filme feito, vem a distribuição e a promoção – andar de um lado para o outro a tentar que o trabalho seja visto. Acho que em qualquer uma das artes se trabalha a sensibilidade visual e narrativa. Creio que a maior diferença reside no facto de na BD haver mais liberdade – pode-se ser muito ambicioso porque se podem desenhar facilmente coisas que custariam uma fortuna para serem filmadas.

NPS: E no caso da música? O que transportas da BD para a música e vice-versa?
FM: Sinto que, da música, transporto a ansiedade de tentar fazer as coisas bem, com clareza, com sinceridade e com total empenho. Contar histórias é um processo transversal, quer seja na música, nas BD ou nos filmes. O Juan, curiosamente, também toca bastante bem e tocamos piano muitas vezes nas nossas sessões de Skype.

PizzaboyNPS: Quais julgas ser os ingredientes nas BD de Pizzaboy e Dog Mendonça que ditaram o seu sucesso comercial em Portugal e o interesse da Dark Horse?
FM:  A nossa preocupação durante o processo criativo nunca foi, nem nunca será, o sucesso comercial – não digo que não seja uma preocupação, mas é um fator que só surge na altura de promover os livros. O nosso objetivo principal e o que nos motiva é a mensagem, a narrativa e a forma como a história chega ao leitor. Quer se goste quer não, foram os melhores livros que conseguimos fazer na altura em que os fizemos. Não descansámos até ter a certeza de que está o mais próximo possível da ideia que nos motivou inicialmente. Quem lê os livros devolve-nos esse empenho, recompensa-nos o esforço. Faz com que o trabalho não seja ingrato.

NPS: Conjuntamente com o Juan Cavia, estás a trabalhar há cerca de um ano numa nova banda desenhada, Os Vampiros, ambientada na Guiné-Bissau durante a Guerra Colonial Portuguesa, que se prevê que seja lançada no primeiro trimestre de 2016 pela Tinta-da-China. Fala-nos um pouco sobre ela.
FM: Em boa verdade, estamos a trabalhar nisso desde março de 2010. É um livro de guerra, é uma interpretação livre da famosa canção do Zeca Afonso. Segue um grupo de soldados em 1972 que cruza a fronteira da Guiné para o Senegal, para cumprir uma missão complicada. Porém, ainda não sei bem que tipo de livro será. Não é uma histórial linear, como o Dog Mendonça & Pizzaboy. É um ponto de interrogação gigante. Diria que é um livro sobre o medo. Algo assim, ainda não sei bem o que será…

NPS: Porquê a Guerra Colonial Portuguesa? É um passo consciente em elaborar uma obra que vá além do entretenimento?
FM: Por curiosidade natural sobre o tema, li muito sobre o assunto e começou a surgir a ideia abstrata da história que queria contar. Inicialmente, o argumento era mais tradicional, era uma história de terror clássica, mas foi-se transformando noutra coisa. É uma reflexão sobre o que se passou na guerra do Ultramar, e sobre uma geração que viveu uma experiência horrível à força. Não se consegue recuperar. Felizmente, nunca passei por nada assim, não imagino como seria. Queria muito falar sobre o medo, o terror no estado puro, e pareceu-me o cenário ideal. Depois disso, são muitas horas de discussão e de e-mails gigantes com o meu amigo e sócio Juan Cavia, em que vão aparecendo novas ideias que melhoram o resultado final: fica menos óbvio, menos quadrado.

Filipe MeloNPS Que fontes utilizaram para se documentarem?
FM: Documentários, livros, mas, mais do que tudo, cerca de 50 horas de entrevistas com ex-combatentes. Conheci pessoas com histórias incríveis e com visões diferentes do que se passou naqueles anos.

NPS: Numa das sessões do ano passado da Comic Con Portugal, um elemento do público e aspirante a argumentista de BD, manifestou um desabafo sobre existirem várias estratégias na Comic Con para um ilustrador atrair atenção sobre si e tentar se iniciar profissionalmente no mundo dos comics nacional e internacionalmente – portfolio reviews, arte exposta no Artists’ Alley –, mas que parecia não existir na convenção, ou fora dela, ninguém interessado em recrutar argumentistas. Que indicações úteis darias a alguém que se quer iniciar na BD enquanto argumentista?
FM: O único conselho que consigo dar para qualquer argumentista (e que gostava eu próprio de o seguir mais diligentemente) é: não desistam. Se existe a ansiedade de fazer coisas bonitas e de contar histórias, não adiem. Comecem a trabalhar já, sem querer fazer logo uma obra-prima. As coisas demoram muito tempo a acontecer, especialmente quando estamos a começar e a perceber o que funciona ou não. É preciso paciência, mas é preciso trabalhar todos os dias para aquilo que queremos que aconteça. É cíclico – há momentos bons, momentos maus. Os momentos maus têm de ser ultrapassados com trabalho, e a fazer com que esse trabalho chegue às pessoas.

NPS: Qual foi a tua opinião sobre a Comic Con Portugal 2014 e que expectativas profissionais e pessoais tens relativamente à edição de 2015?
FM: Percebi que a Comic Con está em boas mãos desde a primeira reunião. As pessoas que fazem este festival preocupam-se realmente em fazer as coisas bem, e fazem-nos sentir imediatamente em casa. Estou muito feliz porque na edição deste ano teremos a visita do nosso editor da Dark Horse, com quem trabalhamos há 5 anos e que nunca conheci pessoalmente. Será um fim de semana inspirador, rodeado de pessoas criativas, num ambiente que estimula o aparecimento de ideias novas.

NPS: Além d’ Os Vampiros, estás atualmente a trabalhar em mais alguma BD ou tens planos nesse sentido?
FM: Neste momento, estou completamente focado no nosso novo livro, só quero que fique bom!vampiros_

nota: fotografia por Vitorino Coragem, ilustrações por Juan Cavia

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