José Domingo é um dos convidados do ComicCon Portugal 2015. Abordamos o seu percurso enquanto autor de banda desenhada, desde a publicação da sua primeira BD em 2008 e a ingressão no coletivo Polacqia até ao presente.
Nuno Pereira de Sousa: Cuimhne foi a sua primeira banda desenhada longa, com argumento de Kike Benlloch. Como surgiu esta oportunidade?
José Domingo: Conheci Kike através de um amigo comum, David Rubín – como saberão, um autor de banda desenhada espanhol muito importante -, pois Kike tinhao projeto de Cuimhne parado e necessitava que alguém o desenhasse. O David pensou que eu podia encaixar no estilo de história e nos colocou em contacto. O Kike reuniu comigo no dia seguinte e começámos a chegar a um acordo e a trabalhar.
NPS: Fale-nos un pouco de Cuimhne.
JD: É uma história de género fantástico ambientada num mundo medieval invetado, mas que recorda a Europa de Leste ou Nórdica e na qula contamos as aventuras da sua protagonista, a ‘Cuimhne’ que dá título ao livro – ‘Cuimhne’ é um termo gaélico que significa ‘Memória’. Cuimhne é uma monja guerreira que vigia a aldeia em que vive e que é responsável por uma situação muito perigosa, tendo que enfrentar alguns invasores misteriosos, ao mesmo tempo que gere os conflitos internos do povo. Para isso, contará com a ajuda de Deireannach, o último gigante e protetor da aldeia. O livro contém dois episódios e no segundo, que se situa muitos anos depois, conheceremos o destino daquela aldeia e a nova ameaça com que Cuimhne tem de lidar. Os argumentos de Kike dão tanta importância ao enredo de intriga política como à ação e tive prazer em desenhá-los e moldar o mundo em que decorrem, mas, sobretudo, enfrentar o meu primeiro romance gráfico foi um desafio.
NPS: Como foi trabalhar com Kike Benlloch?
JD: Totalmente satisfatório! Considero que aprendemos a ajudar-nos mutuamente e a somar forças, contribuindo e enriquecendo o trabalho dos dois. O Kike apontava coisas sobre o desenho e a narrativa e eu podia contribuir com cenas ou diálogos para o argumento, de modo que o resultado final é muito melhor.
NPS: Como ingressou no Polaqia? Apresente aos nossos leitores o coletivo Polaqia e a revista Barsowia, na qual chegaram a ser publicados autores portugueses.
JD: Eu entrei no Polaqia a meio da vida deste coletivo, no número 7 da revista Barsowia, em 2006 ou 2007. Foi uma etapa maravilhosa, uma vez que foi o meu primeiro contacto com os autores da Galiza – eu tinha estado a estudar fora e não os conhecia – e iniciar-me no mundo profissional e da edição, sentido-me simultaneamente envolvido e estimulado pelos trabalhos dos colegas, entre os quais havia uma grande variedade de abordagens e estilos. O grupo completo era formado por Kike Benlloch, David Rubín, Brais Rodríguez, Diego Blanco, Álvaro López, Hugo Covelo, Luis Sendón, Sergio Covelo, Bernal Prieto, Roque Romero, Emma Ríos e eu. Alguns deles, estão hoje totalmente consolidados como autores de BD de referência, como Emma Ríos ou David Rubín. Prepara cada número de Barsowia era uma experiência muito enriquecedora, desde a escolha dos autores, a realização da própria banda desenhada ou todos os trâmites de diagramação e impressão. Na revista, além de publicar os membros do coletivo, publicávamos autores de BD de que gostávamos, de dentro e fora da Galiza e Espanha, como Miguel B. Núñez, Ana Galvañ, Dylan Horrocks, Jesse Jacobs ou Paulo Monteiro e Susa Monteiro, de Portugal.
NPS: Como foi a receção dos leitores à sua BD Euclides Mortem?
JD: A verdade é que os comentários que ouvi foram muito bons. Parece que gostavam do personagem e do planeamento! Ao ver agora as BD, parecem-me horríveis, especialmente o desenho, mas o que se pode fazer? Apenas para situar os leitores, Euclides Mortem era uma série de bandas desenhadas curtas sobre um gestor de Morte, um burocrata sobrenatural que lida com os trâmites e a papelada quando alguém morre.
NPS: Porque se dissolveu o coletivo Polaqia?
JD: Era o momento. Polaqia teve o seu objetivo e a sua altura – a publicação de BD quando não era possível publicá-la noutro local, especialmente em galego, e ser uma porta de entrada no mundo profissional, permitindo-nos desenvolver as nossas histórias e vê-las publicadas. Dez anos depois, as prioridades dos integrantes eram muito diferentes das dos início, como seria de esperar, e o propósito de Polaqia já não era tão evidente.
NPS: Aventuras de un oficinista japonés apresenta um estilo de desenho muito diferente da sua BD anterior. Que influências e percurso gráfico desenolveu entre Cuimhne e Aventuras de un oficinista japonés?
JD: Foi um percurso bastante longo, a pensar muito e profundamente sobre que direção queria tomar no que toca às minhas histórias. Quando fiz Cuimhne, não pensava em quem eu era, mas simplesmente em desenhar bem e, apesar de considerar que o desenho em Cuimhne está correto e que é uma linha estilística que poderia ter desenvolvido sem problemas, ao refletir, dei-me conta de que o que realmente me conectava mais com quem sou e com os temas que me interessavam estava mais ligado ao humor e a um tipo de desenho mais próximo do cartoon e mais louco.
NPS: Porque produziu a BD sem diálogos?
JD: A BD ser muda estava no cerne da obra; desde a sua concepção que a planeei assim – muda e com um layout de página fixo, bem como os planos. Foi uma banda desenhada que nasceu graças a um conjunto de premissas fixas. A inexistência de diálogo reforça o sentido do humor físico e o slapstick, bem como ajuda a criar essas aventuras absurdas sem necessidade de explicar nada nem fazer nenhuma reflexão a esse respeito. definitivamente, não podia ser de outra forma!
NPS: Os videojogos foram uma influência na concepção de Aventuras de un oficinista japonés?
JD: Sim, parcialmente! Gosto muiro de videojogos e sou especialmente nostálgico por aqueles com que cresci nos anos 80, as aventuras gráficas de Lucasfilm como Loom ou Maniac Mansion, os Zelda da Nintendo… jogos que tinham uma aura de magia, mistério e exploração, que quis recrear em Aventuras… De igual modo, o plano em perspetiva isométrica é clássico desse tipo de videojogos – Zelda – e acredito que funciona muito bem para esta história.
NPS: Ter recebido o Prémio para o Melhor Autor Espanhol no Salón del Cómic de Barcelona 2012 criou novas oportunidades?
JD: Sim, depois de publicar o livro e ganhar o prémio entrei, por assim dizer, no círculo “oficial” de autores de banda desenhada em Espanha e muitas editoras espanholas ofereceram-se para que lhes apresentasse os meus próximos projetos. Uma vez que publicada uma obra que tem um certo êxito, é muito mais fácil encontrar portas abertas para projetos seguintes.
NPS: Para a série Leyendas urbanas da Astiberri, criou Conspiraciones. Foi o José Domingo que escolheu o tema? As sociedades secretas fascinam-no?
JD: Sim, fui eu que escolhi o tema! Embora não esteja especialmente atento às últimas notícias paranóicas de conspiração, é um tema de que gosto por tudo o que tem de misticismo, ocultismo e tolice em porções iguais. Gosto do quão ridículos somos enquanto seres humanos e como tratamos de procurar explicações estranhas e rebuscadas ou inclusivamente formar sociedades secretas com componentes místicos para nos sentirmos em comunhão com outros pares. Na verdade, parece que necessitamos que o mundo tenha um pouco de mistério!
NPS: José Domingo e a personagem Professor Domeniko: quais são as as semelhanças e as diferenças?
JD: Nenhuma, eu não tenho nada a ver com esse senhor! E recomendo que também não tenham; é um tipo muito perigoso, um louco psicótico!
NPS: Em que bandas desenhadas está atualmente a trabalhar?
JD: Neste momento, acaba de ser colocado à venda quase simultaneamente no Reino Unido, EUA e Espanha o meu último livro, o primeiro para o público infantil, intitulado Pablo & Jane and the Hot Air Contraption – Pablo & Jane en la Dimensión de los Monstruos em castelhano -, uma mistura de BD com livro-jogo de descobrir no estilo de Onde Está o Wally? Conta a história de duas crianças aborrecidas numa tarde chuvosa de domingo que acabam rodeados de centenas de monstros! E também acabei de iniciar a produção de uma nova BD, também destinada ao público juvenil, que se chamará Vampire Defenders.
NPS: Na sua opinião, os mercados franco-belga e norte-americano continuam a ser uma referência para os autores de BD espanhóis que desejam internacionalizar o seu trabalho?
JD: Sem dúvida! São os maiores mercados do mundo, em conjunto com o japonês – embora este seja muito mais difícil, quase impossível de aceder enquanto autor -, sendo um salto importante. Ambos têm um volume de publicações e leitores potencialmente maior que o espanhol ou mercados similares, sendo eles próprios uma indústria que atrai a atenção dos demais mercados menores, pelo que uma obra por eles publicada chega a muitos mais lugares e adquire mais notoriedade e prestígio. Então, sim, eles são uma das metas!
NPS: Como pensa que será publicada a banda desenhada dentro de 20 anos?
JD: Suponho que a consumiremos principalmente no formato digital e que o papel ficará para aquelas edições especiais ou de luxo. Penso que é uma questão da tecnologia inventar algo mais cómodo que os tablets atuais e que replique, na medida do possível, a experiência do papel, o folhear, a página dupla… coisa que atualmente não existe. Mas, em troca, economizaremos espaço e certamente surgirão novas oportunidades económicas. E iremos comprar banda desenhada a voar nos nossos jetpacks!
NPS: Atualmente, qual é o propósito da banda desenhada e quais são os valores que lhe são inerentes?
JD: O propósito da BD não é outro que não o de comunicar. A comunicação pode ser utilizada para entreter, para divulgar uma mensagem, para educar… Tudo depende de qual seja a finalidade, embora, evidentemente, a maior utilização que se lhe dá atualmente é o de entretenimento; mas, tal como a literatura em geral, a BD pode dar obras tão banais ou tão profundas quanto o que se deseje, pode falar de problemas reais, fazer história, ensaio ou divulgação. Penso que os seus valores principais são a facilidade de leitura e a imaginação plástica; a comunicação através da imagem é muito rica e o imaginário na BD é infinito; há infinitos estilos e formas de desenhar, infinitos recursos, o que é enriquecedor enquanto forma de expressão. É uma forma distinta de comunicar e penso que nunca estamos demasiado expostos a formas de comunicação artísticas e humanas num mundo saturado de anúncios, publicidade, propaganda e formas de comunicação pouco elegantes. Além disso, como obra, seja de divulgação ou entretenimento, é muito mais barata de produzir que qualquer outra coisa! Quanto custa fazer um filme de 2 horas dos Vingadores? E uma BD? E na BD não há limitações no que se pode utilizar, nem de pressuposto nem técnicas. É muito melhor!
Fundador e administrador do site, com formação em banda desenhada. Consultor editorial freelance e autor de livros e artigos em diferentes publicações.