José Aguiar é o mais recente autor brasileiro de banda desenhada que é editado em Portugal, através da publicação do livro Coisas de Adornar Paredes. Conversámos com o autor sobre esta obra e o seu percurso, bem como as suas inquietações e aspirações. No final da entrevista, disponibilizamos ainda uma galeria com trabalhos do autor.
Nuno Pereira de Sousa: Quais julgam ser as principais influências da sua formação na Faculdade de Artes do Paraná nas bandas desenhadas que produz?
José Aguiar: Eu me graduei como arte educador na faculdade de artes, me habilitado em Artes Visuais. Foi uma formação eclética, que ajudou a abrir meus horizontes. Principalmente por pensar em aplicações da arte não só como artista, mas como difusor cultural. Eu sempre me vi como quadrinista e procurei me cercar de todas as boas obras ao meu alcance, mas experimentar outras linguagens me ajudou muito a querer sempre algo mais. Não existe uma só escola ou movimento favorito para mim. Busco ser eclético também no que faço. Experimentar a cada obra e buscar a solução gráfica e textual que melhor se enquadre à proposta. Assim evito a zona de conforto ou o tédio de ficar preso a um estilo.
NPS: Como surgiu a adaptação de Dom Casmurro à banda desenhada, com argumento de Wellington Srbek? Que lugar ocupa Machado de Assis nas suas referências literárias?
JA: O convite veio do próprio Srbek. Ele havia assumido há pouco o papel de editor da recém criada editora Nemo, que viria a se tornar um dos braços fortes das HQs nacionais nos últimos anos. O Brasil passava por uma euforia de adaptações literárias que eram adquiridas pelo governo como forma de incentivo à leitura em escolas. Infelizmente, Machado é um autor que aprendi a ler de forma errada na escola e que só vim a redescobrir em anos recentes. Reflexo do modelo educacional em que cresci, entre o fim dos tempos da ditadura militar e o reinício do processos democrático em meu país, onde mais valia o resumo do que a obra em si. Onde literatura em língua portuguesa não era ensinada como algo a ser compreendido, mas catalogado em períodos e nomes de autores. Acrescente a isso que cresci numa casa sem livros, regida pela televisão. As BDs foram meu portal para outras formas de cultura e leitura.
NPS: Como surgiu a ideia de utilizar dois estilos para diferenciar as diferentes narrações presentes na obra?
JA: Acreditei que, na estrutura oferecida pelo texto de Srbek à adaptação, a distinção entre os tempos do Bentinho de idade avançada e suas outras idades cairia bem num acabamento diferenciado. Em tempos mais inocentes, a arte é mais limpa e objetiva. Quando surge o narrador, o traço é mais sujo, acurado. Foi uma maneira sutil de separar o rancoroso do ingênuo.
NPS: Na sua opinião, quais são os principais objectivos das adaptações de obras literárias à banda desenhada?
JA: No meu entender, primeiramente deve ser uma obra com seu próprio valor artístico. Assim como temos infinitas adaptações de Shakespeare, Brecht, Jorge Amado ou Camões a outras mídias, cada uma acrescentando um ponto de vista peculiar à obra original. Não distorcendo sua aura de autenticidade, mas reforçando sua atemporalidade. Uma boa adaptação em BD precisa ter seu valor como BD. Manter-se em pé graças a sua narrativa e opções estéticas. Além disso, e talvez o mais importante, a adaptação jamais deve ser um mero resumo do original. Certa vez, discutindo um projeto meu ainda em andamento de uma adaptação de 20 mil Léguas Submarinas de Júlio Verne com o autor alemão Flix, discutimos justamente isso. Ele, que ambientou Dom Quixote na Berlim do presente, me indagou: o que faz essa adaptação literária relevante para a obra do artista que a executa e também para seus leitores? Concordamos que é preciso novas perspectivas para que a adaptação funcione por si mesma e desperte o real interesse pela descoberta da obra original.
NPS: Trabalhou com André Diniz na BD Revolta em Canudos. Utilizou outras referências, além do texto do André, como Os Sertões do brasileiro Euclydes da Cunha ou A Guerra do Fim do Mundo do peruano Mario Vargas Llosa, para se inspirar na ilustração da obra?
JA: Aquele foi um projeto singular, pois foi feito num prazo absurdamente curto. Como meu papel era apenas o de ilustrar o texto de André, me concentrei na pesquisa histórica para os desenhos. Me vali mais de referências fotográficas dos poucos documentos oficiais existentes do período e também em filmes e programas televisivos ambientados naquele momento histórico. As referências literárias ficaram a cargo de André, que me entregou um relato enxuto do que deve ter sido aquele massacre.
NPS: Que importância têm actualmente as bandas desenhadas educacionais no Brasil?
JA: Existem muitas realidades de BDs no Brasil além das adaptações literárias com fins paradidáticos. Maurício de Sousa, por exemplo, produz revistas publicadas em versões em inglês e espanhol que podem ser compradas em qualquer lugar. Uma ótima iniciativa para aprender outros idiomas, inclusive. As tiras de jornal têm grande utilização em materiais didáticos, especialmente no ensino de língua portuguesa. Há muita produção de BDs voltadas para o mercado de livros didáticos. Eu mesmo já fiz uma série didática chamada Arte & Você em parceria com Fernanda Baukat, minha esposa e sócia, onde as HQs tinham um papel fundamental como ferramenta de ensino. Mas tratam-se de um universo à parte, onde, infelizmente, nem tudo tem qualidade artística.
NPS: Trabalhou novamente com André Diniz em Ato 5. Fale-nos um pouco do seu trabalho nesta banda desenhada.
JA: Na verdade, Ato 5 foi a primeira parceria que tivemos, mas publicada em atraso. Em fins dos anos 1990, ele estava iniciando uma série sobre Ditadura militar intitulada Subversivos. Trata-se de um ponto de vista fora do lugar comum ao se abordar a ditadura militar. Uma narrativa curta sobre uma trupe teatral dentro daquele contexto. Sem recursos, a obra ficou anos na gaveta. Em 2009, decidi lançá-la. Retrabalhamos alguns detalhes e calhou que este foi o primeiro título publicado com meu selo autoral, a Quadrinhofilia, pelo qual tenho lançado a maioria dos meus trabalhos desde 2011.
NPS: Explique aos leitores portugueses o que é o Cena HQ. Qual tem sido a aceitação desse projecto?
JA: O Cena HQ é a união da minha paixão pela HQ com o amor ao teatro. Tratam-se de leituras dramáticas de obras, seguidas de debates entre encenadores, plateia e os autores, presentes no evento. Infelizmente, por questões ligadas a dificuldades no cenário atual da cultura em meu país, o projeto foi interrompido, por falta de recursos, em fevereiro de 2016. Completamos 04 temporadas desde 2012, encenando um total de 40 obras de autores de diversas gerações e perfis. Dessas, apenas 04 foram de estrangeiros. Cada obra era encenada uma única vez no Teatro da Caixa, em minha cidade, Curitiba. Na primeira temporada, todos nos perguntavam o que era exatamente esse projeto. Depois, foram anos de casa cheia e repercussão nacional que nos trouxe por três anos consecutivos o Troféu HQMIX (o mais prestigioso e tradicional prêmio da BD brasileira) na categoria Adaptação para outras linguagens. Esse projeto foi resultado da minha parceria com o dramaturgo e cineasta Paulo Biscaia Filho. Ele foi responsável pela curadoria de diretores e elenco e eu dos autores e obras. Agora batalhamos para trazer o projeto de volta a partir de 2017. Quem sabe com autores Portugueses? Para saber mais, acesse aqui.
NPS: Que ligações existem entre a banda desenhada e as artes cénicas?
JA: Pensar nos trabalhos de Will Eisner é pensar teatro. Não é à toa que por aqui ele teve várias adaptações de suas BDs aos palcos. Seja na dramaticidade das expressões corporais ou na suspensão do tempo diante da página ou na plateia. Estamos diante do palco como quem está diante de um quadro na página. Em ambas as linguagens, a quarta parede pode cair a qualquer momento e a suspensão de descrença se dá de maneira encantadora. Não é à toa que o Cena HQ veio a fazer parte da minha vida.
NPS: A sua primeira participação na BD portuguesa foi com a ilustração das capas das BD C.A.O.S. para a Kingpin Books. O que recorda dessa colaboração, 10 anos volvidos?
JA: A oportunidade surgiu da minha participação em um concurso, do qual a premiação em segundo lugar foi a oportunidade de ilustrar para o projeto. Eu estava residindo na Alemanha e a oportunidade me trouxe muita empolgação. Infelizmente, só fui ler as BDs depois de ilustrar as capas. Só pude conhecer o Mário Freitas em 2014, quando fui convidado ao Festival de Beja. Foi com muita alegria que constatei o quanto o trabalho dele em seu selo cresceu desde então.
NPS: Em 2014, o José Aguiar teve direito a uma exposição, “A Quadrinhofilia de José Aguiar”, no X Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja (FIBDB). Quais as principais recordações desse evento?
JA: Carinho foi o principal sentimento que ficou. Paulo Monteiro é um cavalheiro que tratou minha exposição com enorme respeito e coordenou um evento de uma delicadeza que não encontrei em outros lugares do mundo que visitei. Foi minha primeira estada em Portugal e minha impressão não poderia ter sido melhor. Depois daquela experiência, fiquei com vontade de residir em seu país e realizar algum projeto nesse período. Conhecer melhor as sutilezas que aproximam e distinguem Brasil e Portugal e transformar numa BD. Quem sabe um dia? Na época, fiz um vídeo relatando a experiência com depoimentos de algumas figuras ligadas ao evento. Ele pode ser conferido aqui:
NPS: Quais as semelhanças e diferenças do FIBDB com a antiga Gibicon, actual Bienal de Quadrinhos de Curitiba, da qual foi curador e cocriador?
JA: Posso responder pela Gibicon original, que contou efetivamente com minha colaboração em sua concepção. A atual “Bienal” é um novo evento com formato e propostas diversas, sem minha participação, mas que nasceu em consequência de tudo que foi experimentado em três edições da Gibicon. Semelhante ao FIBDB, era um evento onde a cidade abraçava a cultura da BD, com diversos espaços culturais espalhados não só no centro histórico, o que levou a população a descobrir não só a programação, mas a própria cidade. Foi o tipo de experiência que vivenciei em Angoulême e que tentei replicar para que a cidade despertasse para a sua demanda reprimida como polo criativo dos quadrinhos brasileiros. Deu muito certo e motivou toda uma nova geração de autores locais e o retorno de outros, que andavam desiludidos com o cenário nacional. Como resultado dessa ação que iniciamos em 2011, desembocou, somente neste ano, numa produção de 40 títulos de autores baseados em Curitiba. Senti essa atmosfera em Beja e também em Erlangen, na Alemanha. Quero experimentar agora a atmosfera da Amadora. Enfim, sentir o real perfil desse festival tão renomado.
NPS: Em 2013, a edição portuguesa de Morro da Favela de André Diniz contou com uma ilustração sua. Como surgiu o convite e que metodologia de trabalho utilizou para chegar à ilustração publicada?
JA: André e eu somos amigos desde a década de 1990 e trabalhamos juntos muito menos do que eu gostaria. Morro da Favela e 7 Vidas foram obras dele que levei para o palco do Cena HQ. O convite foi um bela surpresa e desenhar o ambiente sugerido por André foi um prazer. Queria que meu desenho remetesse ao grafismo dele, mas sem emular ou desvirtuar a atmosfera da obra. Foi também meu primeiro contato com a Polvo.
NPS: Morro da Favela foi o primeiro volume de uma já vasta colecção da Polvo dedicada aos Romances Gráficos Brasileiros. Na sua opinião e conhecendo o mercado e os eventos brasileiros, porque é que o intercâmbio de BD entre os dois países está aparentemente mais facilitado no que toca à publicação de autores brasileiros em Portugal do que autores portugueses no Brasil?
JA: André não ostenta, mas ele é um desbravador em diversos sentidos. Iniciou webcomics antes das plataformas atuais, encarou o desafio de uma editora autoral independente antes que eu ousasse fazê-lo também e agora fixou residência em Lisboa para se lançar para o mundo. Ele é inspiração a toda a nossa geração de autores, pelo menos a parte que não tem um olho no mercado de heróis norte-americanos. Iniciar o selo brasileiro da Polvo é mais um item em seu currículo que promete nos surpreender sempre. Na minha opinião, o intercâmbio artístico/cultural entre Brasil e Portugal ainda está engatinhando. Em parte, por causa das particularidades do mercado brasileiro, que cresce horizontalmente, mas não tão verticalmente como gostaríamos. A produção, diversidade temática e a qualidade aumentaram, mas ainda enfrentamos o problema da distribuição e divulgação. Eu lamento muito que aqui no Brasil tenhamos acesso a tão poucos autores lusos. Essa relação praticamente unilateral não faz sentido entre nações irmãs que partilham o mesmo idioma!
NPS: Em 2004 e 2005, a editora suíça Paquet publicou 2 volumes da série Ernie Adams, com argumento de Wander Antunes, no mercado de BD franco-belga. Fale-nos dessa publicação europeia.
JA: Foi uma tremenda escola para mim. Eu já havia colaborado com Wander em algumas BDs curtas e ele enviou uma proposta e meu portfólio para diversos editores franceses por volta de 2002 e 2003. Recebemos um aceno positivo da Paquet e logo assinamos contrato para uma trilogia de álbuns. Foi um tremendo desafio para mim pois era um projeto de encomenda. A história era ambientada nos EUA dos anos 30 e o editor queria algo na linha clara e ao mesmo tempo “acadêmico”. Precisei adaptar meu traço e, quando finalmente estava encontrando o tom correto no terceiro volume, Wander rompeu com a editora e a série foi interrompida. Em 2006 tive o prazer de fazer minha primeira turnê europeia para a divulgação do volume 2, passando por Paris, Dijon, Orleans e Genebra. Eu havia há pouco tempo rompido com os trabalhos publicitários para me dedicar integralmente ao meu ideal de viver da arte da BD. Ernie Adams, mesmo não sendo um sucesso comercial, foi um tremendo passo nesse sentido.
NPS: Que pode contar aos leitores portugueses sobre os 2 volumes de Vigor Mortis Comics?
JA: É uma grande experiência transmídia, em parceria com o Paulo Biscaia Filho, cocriador do Cena HQ comigo. Ele tem um trabalho muito importante na cena atual do teatro brasileiro, com a sua companhia teatral Vigor Mortis, que tem como fonte inspiradora o Grand Guinol, o cinema e, claro, as BDs. Então nossas histórias são recheadas de humor doentio, sexo, sangue e homenagens ao gênero terror. Nessa série, nós brincamos com o transmídia, ao elaborar um “universo expandido” a partir de suas obras teatrais. Ele e eu escrevemos juntos histórias que seriam muito complicadas de levar aos palcos ou às telas, mas que deram sobrevida aos seus personagens. Eu revezo nos desenhos com os amigos DW Ribatski e André Ducci. O primeiro volume é composto de oito histórias que interligam o universo de quatro espetáculos e do filme Morgue Story – Sangue, Baiacu e Quadrinhos. O segundo é o “capítulo do meio” da trilogia iniciada na peça Seance – As Algemas de Houdini e concluída no longa Nervo Craniano Zero, longa-metragem com atores, disponível para ser assistido no iTunes Store e Vimeo.
NPS: Fale-nos das tiras Folheteen e Nada Com Coisa Alguma.
JA: Eu comecei minha carreira nas tiras de jornal aos 14 anos. É para mim o formato mais desafiador das BDs pela dificuldade em ser conciso. Folheteen começou em 2001 e já tem publicados uma antologia de tiras e dois álbuns com histórias longas. A série é sobre o cotidiano ordinário de Malu, adolescente que vive em Curitiba. Filha de pais separados, estuda e trabalha para ajudar a mãe com as despesas de casa. Tem um irmão extremamente chato e precisa lidar com questões quotidianas com seu senso crítico exacerbado e sua incapacidade de colocá-la em prática, devido a sua imaturidade. A série já foi premiada no I Concurso Internacional de Quadrinhos do Senac-SP/Devir em 2005 e me valeu indicação de melhor roteirista no Troféu HQMIX pelo álbum Folheteen- Direto ao Ponto em 2014.por É um projeto onde falo do adolescente que fui e dos que vejo por aí, personificados na Malu. Já Nada Com Coisa Alguma é um experimento de linguagem. Sou eu tentando extrapolar os limites do “pequeno” espaço das tiras. Sem personagens fixos, eu posso falar do que quiser sem amarras, inclusive de formatação, o que extrapolei na antologia publicada em 2015 via financiamento coletivo. Nela, eu peguei o material original, rediagramei, fragmentei e explorei a tira e o objeto livro como elemento da narrativa. É um projeto que me traz grandes desafios e prazer, justamente por me levar caminhos que eu não poderia seguir em Folheteen, que pede mais “formalidade”.
NPS: Apresente aos leitores o webcomic A Infância do Brasil.
JA: Creio que, no momento em que meu país se encontra, talvez este seja meu trabalho mais relevante por ser um convite à reflexão. Trata-se da nossa história revisitada em 06 capítulos que iniciam no século XVI, com as primeiras ocupações portuguesas, mas sempre dialogando com o presente. Não através de eventos ou figuras históricas, mas pela ótica da infância. Afinal, o que entendemos como ser criança mudou muito ao longo dos séculos. Com este trabalho, quero instigar a questão sobre o que mudou e o que permanece de infâncias passadas. Abordo temas como machismo, abandono, abuso, trabalho e escravidão para assim refletir, com o leitor, o nosso presente, a partir do nosso passado. Eu entendo que, metaforicamente, o Brasil passa por um momento de “fim de infância”. Vivemos muito tempo sob tutela de Portugal, da família real que aqui se instalou, de regimes ditatoriais e, há poucas décadas, começamos a engatinhar uma democracia, hoje titubeante e insegura em dar os passos certos. Vivemos sob a sombra de um golpe político que compromete nosso amadurecimento enquanto nação. Trata-se da minha primeira webcomic e, dentro do meu interesse de buscar novas possibilidades para as BDs, inclui uma versão comentada e paratextos sobre o contexto histórico de cada época retratada. O projeto está concluído e online, incluindo traduções em inglês, francês e espanhol, para expandir o alcance a discussão, e agora busco os meios para viabilizar versões impressas da obra. Enquanto isso, convido a todos a lerem e compartilharem www.ainfanciadobrasil.com.br.
NPS: O José Aguiar participou no primeiro volume MSP 50 – Maurício de Sousa por 50 Artistas. Na sua opinião, essas publicações conseguiram que o público que consome principalmente BD norte-americana recolocasse a BD brasileira na equação, fosse a BD produzida pela editora de Maurício de Sousa, fosse a mais independente?
JA: Foi uma honra ser um dos selecionados para a obra que abriu esse novo momento no cenário brasileiro. Por muito tempo, meus colegas viam Mauricio de Sousa como um universo à parte, que não se importava com o restante do mercado. A partir desse projeto, que ramificou em uma série de álbuns especiais com releituras dos personagens dele, essa visão mudou. Muito graças ao olhar aguçado do editor e mentor do projeto, Sidney Gusman, que catalogou e deu espaço a grandes nomes espalhados pelo país, que não tinham espaço em uma grande editora como a Panini. Com a força da marca MSP, colocou em evidência alguns desses nomes na Graphic MSP, que se tornou o talvez maior sucesso comercial da BD brasileira. Mauricio mudou a visão da classe a seu respeito e ajudou a fortalecer a cena como um todo. Essa série fez com que toda uma geração que ignorava a existência de autores brasileiros além do Mauricio, descobrisse que o Brasil tem sim grandes artistas a serem lidos.
NPS: Apresente aos portugueses a personagem O Gralha.
JA: Eu costumo brincar que, de todos os projetos errados que participei, o Gralha foi o que deu mais certo. O personagem nasceu da falta de espaço na edição da revista comemorativa dos 15 anos da Gibiteca de Curitiba em 1997. Haviam mais autores do que páginas e nove se aglutinaram para tentar criar algo em conjunto. O resultado foi o Gralha, uma brincadeira com os estereótipos dos super-heróis com roupagem local. A gralha é considerada a ave-símbolo do Paraná, nosso estado e, talvez por isso, já de início, tenha chamado a atenção dos leitores devido a carência de ícones locais. No ano seguinte, conquistamos espaço semanal no maior jornal da região e o Gralha se tornou uma oportunidade de trabalho para parte de uma geração sem espaço para publicar. O personagem continuou anárquico, com cada autor – trabalhávamos em rodízio – criando sua versão dele. Peculiaridade que lhe deu um charme único. Conseguimos viabilizar uma antologia que foi premiada e foram feitos até curta-metragens e uma peça de teatro baseados nas BDs. Com o tempo, o grupo dispersou e paramos de produzir suas histórias. Mas o personagem continuou por conta própria, aparecendo em fanzines e webcomics sem autorização ou conhecimento dos criadores. O Gralha se difundiu pelo país e, lentamente, o grupo foi se aglutinando de volta, para colocar ordem na casa. Em 2014, lançamos o álbum Tão Banal Quanto Original, que marca minha última contribuição ao projeto como coeditor e coroteirista. O grupo já lançou um Artbook, recapitulando os primeiros 18 anos dessa saga e dois volumes focados no “ancestral” do herói, o Capitão Gralha.
NPS: Conte-nos como o imaginário autor Francisco Iwerten acabou por ser agraciado com um Troféu Angelo Agostini.
JA: Quando da publicação original, tivemos a ideia de fazer um “prefácio”, contextualizando de onde vinha aquele herói inédito chamado “Gralha”. Ele seria bisneto do “Capitão Gralha”, fictício personagem pioneiro das BDs locais. Edson Kohatsu criou o visual retrô e Gian Danton escreveu a introdução que contextualizava Francisco Iwerten como criador do personagem: um gênio “perdido” da BD brasileira, que criou o personagem na década de 1940. Eu desenhei a capa e uma página de uma dessas edições perdidas, que apresentava a origem do Capitão Gralha, que inventei misturando clichês de Flash Gordon com Superman. Achávamos todos que a brincadeira era óbvia, que a falsidade dos meus desenhos era descarada, mas não foi o que ocorreu. Sem querer, criamos uma lenda urbana e pesquisadores começaram a caçar as revistas perdidas de Iwerten. Com o grupo disperso após 2001, não demos a devida importância à questão e Iwerten acabou sendo premiado anos depois como “Mestre do Quadrinho Nacional”, uma das mais importantes categorias do tradicional prêmio Ângelo Agostini, que homenageia justamente o patrono das BDs brasileiras. Evento que foi catalisador para a nova reunião do grupo, que decidiu contar a verdade e pedir desculpas publicamente no álbum inédito publicado em 2014. Mesmo assim, surgiu quem nos contestasse, achando que queríamos nos apossar da obra de Iwerten. Algo insano, visto que ele nunca existiu.
NPS: Reisetagebuch – Uma viagem ilustrada pela Alemanha é o resultado da sua vivência de 6 meses em Leipzig. Fale-nos dessa experiência.
JA: Minha esposa foi cursar, por meio de uma bolsa sanduíche da Universidade Federal no Paraná, um semestre na Universidade de Leipzig. Eu simplesmente a acompanhei pois não queríamos ficar separados tanto tempo. Lá, ela me apresentou um mundo diferente, pois eu nunca havia saído do Brasil. Foi um período muito contemplativo, onde pude escrever e desenhar. Experiência que mudou minha visão de mundo e, inclusive, me fez olhar com mais carinho para minhas raízes brasileiras. O livro é um caderno de viagem, uma edição bilingue onde narro essas primeiras experiências e de uma segunda viagem, feita em 2008, quando fui artista bolsista do Goethe-Institut. Essa relacão com a Alemanha e com o Goethe já rendeu outros projetos, como a vinda de autores alemães para a Gibicon e a minha coordenação editorial no intercâmbio bilateral Osmose – Brasil e Alemanha em Quadrinhos. Outra alegria do livro, minha primeira publicação que não é uma BD, mas sim um diário ilustrado, é que o mesmo foi finalista do troféu Jabuti, o mais importante prêmio literário brasileiro.
NPS: Em 2008, a HQM editou uma BD intitulada Quadrinhofilia, composta por histórias curtas. Qual é o fio condutor das mesmas?
JA: O nome Quadrinhofilia surgiu em minha coluna no site de cultura pop Omelete. Eu batizei o álbum com esse nome, que viria a ser o nome do meu selo independente de BDs a partir de 2009, por ser um neologismo próprio em alusão ao ato de colecionar BDs, ou Quadrinhos, como chamamos no Brasil. No caso, o livro colecionava, ou reunia, uma série de histórias curtas que ficaram “na gaveta” por cerca de uma década. Fora essa ligação, não há um fio condutor entre elas. São todas de gêneros e propostas visuais variadas. Experimentos que fiz em meu começo de carreira.
NPS: Coisas de Adornar Paredes, publicada em Portugal pela Polvo, é o seu livro de BD mais recente e o primeiro publicado em Portugal. Na verdade, a sua génese remonta a 1999, com a publicação de 2 episódios numa antologia. Enquanto autor de banda desenhada, que diferenças existem entre o José Aguiar de agora e o de então?
JA: Entre os fanzines que publicaram as HQs “piloto” da série e a edição do livro, temos um José que vivenciou todas as coisas que conversamos nesta entrevista e além. Em 1999, eu achava que viver de BDs era um sonho impossível, jamais havia cogitando ter a possibilidade de morar em outro país, publicar em outros, falar novos idiomas ou produzir eventos culturais e publicar eu mesmo minhas obras. No meio de tudo isso, Fernanda e eu também vivenciamos o desafio e as alegrias de ter duas crianças. Naquela época, eu era alguém em busca de perspectivas. Hoje sou alguém que busca diversificá-las sem esquecer quem sou, de onde vim e como cheguei neste momento. Coisas de Adornar Paredes foi um livro maturado lentamente ao longo desses anos e culminou num momento de autorreflexão pessoal. É o meu olhar para meu ambiente original, minha cidade natal e a volta a maneiras antigas de ilustrar. Sou eu dialogando com minhas origens e angústias atuais na figura do personagem Chico. Sou eu buscando novas perspectivas para uma nova fase. Publicar na Polvo simboliza justamente o início dessa fase.
NPS: Com esta obra, regressou aos pincéis e ao preto e branco, após alguns anos dedicados à colorização digital. Como a obra lucrou com essa opção?
JA: Ganhou em espontaneidade. Em paralelo, eu estava trabalhando em A Infância do Brasil, projeto virtual ao extremo, pois era publicado na web e com recursos interativos. Cansado de monitores e tablets. Com saudades do pincel, textura do papel e casualidade da aguada, que não exercitava há anos. Muitas páginas eu produzi num momento delicado, ao lado do meu pai adoecido e internado. Foi um desafio dentro dessas circunstâncias, mas que me trouxe conforto num período difícil, pois pude mergulhar em mim mesmo. Me focar diante da página em branco e dela extrair resultados orgânicos e sinceros.
NPS: Sendo um livro ambientado em Curitiba, acredita que os portugueses que conhecem a cidade, ou a visitem no futuro, a reconhecerão?
JA: Em todos os meus trabalhos que retratam Curitiba eu nunca fiz questão de ser “turístico”. A cidade eu busco retratar mais na atmosfera do que na arquitetura. Na época do Gralha, a Curitiba que desenhava era descaracterizada pela exacerbação dos seus ícones, projetando uma metrópole retrô futurista. Em Folheteen, eu busco a “aura” do que é ser curitibano nos personagens. Em Coisas de Adornar Paredes eu foquei nos detalhes que remetem aos bairros citados e que têm alguma importância em minha trajetória. Eu acredito que o local pode ser universal se você cria personagens e tramas que sustentem uma boa história. Há sutilezas que nos distinguem, mas creio que cada um dos contos escritos pelo personagem Chico poderiam se passar em qualquer lugar do mundo. Lisboa, Tóquio, Nova Iorque, Londres, Berlim, todas essas localidades têm infinitas ficções compreensíveis a diferentes culturas. Porque Curitiba não poderia também?
NPS: Quais as semelhanças entre o processo criativo de Chico e José Aguiar? A obra pretende dar a conhecer o trabalho invisível por trás de um livro?
JA: Creio que Chico está mais para aquele José de 1999, que fez as histórias curtas que deram origem ao livro. Inseguro, sem saber direito para onde ir. Mas com a certeza de que deve fazer o que faz. Que aquilo pode ser bom e que pode vir a encontrar quem aprecie. Quando ele reclama de suas dificuldades para se inserir no mercado editorial, estou, sim, falando de situações que vivencio até hoje. Aquela sensação que o artista, especialmente o independente, tem de estar sempre começando. No início de carreira, eu tinha uns poucos colegas que opinavam sinceramente sobre o que eu fazia; então, creio que o Chico tem até ligeira vantagem, pois ele parece viver num mundo ligeiramente diferente do meu, que cresci numa época onde publicar era algo praticamente impossível e os editores inacessíveis. É uma leitura que pode passar invisível para alguns leitores mas que, espero, pode vir a acrescentar uma camada a mais ao trabalho.
NPS: Revele-nos algumas coisas que adornam as paredes de José Aguiar.
JA: Ótima questão! Acredite, minha residência tem menos coisas as adornando do que deveria! As estantes e caixas com minhas publicações ocultam as paredes de meu escritório. Depois da última pintura, o apartamento não foi devidamente “readornado”. Tem coisas que eu sonho colocar nelas um dia, como fotos de familiares, desenhos meus, um retrato autografado do Lou Ferrrigno como Incrível Hulk, meu cartaz do filme do Homem-Aranha de 2002 e de outros filmes que amo. Ironicamente, no momento estou um péssimo “adornador de paredes” fora das páginas do meu livro!
NPS: Sempre tive a ideia que Curitiba tem uma forte componente cultural, a diferentes níveis, como o literário, cénico ou musical. Concorda com este ponto de vista?
JA: Sim, neste século a cidade se diversificou e ampliou seus horizontes culturais. Eu vivi em minha adolescência uma realidade onde a cultura acessível era praticamente morta. Hoje, temos opções variadas em todas as linguagens possíveis. A cidade se tornou referência em muitos segmentos como os citados, incluindo a BD. O Brasil tem uma tradição de olhar especialmente para as produções do eixo Rio-São Paulo, e minha cidade se fortaleceu como uma das alternativas, graças a diversas iniciativas de artistas locais em diferentes áreas. Ainda há muito a melhorar, pois temos ainda resquícios fortes de provincianismo por aqui. Mas Curitiba, seguramente, é um polo criativo nacional.
NPS: E como se relaciona a banda desenhada curitibana com a restante cultura do município?
JA: Especialmente desde a Gibicon número zero, realizada em 2011, a cena local tomou corpo, se organizando inclusive politicamente. Criou-se o Setorial de Ilustração, formado em grande parte por pessoas ligadas a BD, que tem conseguido importantes vitórias para a classe. A multiplicação de selos editoriais, de cursos, eventos locais e internacionais colocou essa linguagem artística em destaque na mídia e nas agendas de política cultural do município.
NPS: Na sua opinião, que tendências ou caminhos para o futuro da banda desenhada brasileira estão a ser traçados, quer nas vias mais mainstream, quer nas mais alternativas?
JA: Infelizmente, as perspectivas não andam animadoras, politicamente falando. O ilegítimo governo federal não tem interesse em continuar investindo em políticas culturais como se fazia anteriormente. Chegaram a extinguir o Ministério da Cultura, refeito graças a pressão popular. Contexto que afeta as BDs diretamente. Estamos num momento de tomada de poder por segmentos ultraconservadores, com visões bem restritas sobre o que é e qual a função da arte em nossa sociedade. Mas diferentes de outro momentos históricos em que nossas BDs iam bem e foram obliteradas por reveses políticos e econômicos, hoje temos artistas com outra consciência de seu papel dentro de nossa cultura. Em melhores e recentes anos, muita gente descobriu o gosto pela leitura das BDs, em especial pela nacional. Se o mercado mainstream pode vir a ter uma estagnação, com receio do que a economia nos reserva nos próximos anos, o alternativo diversificou e multiplicou em eventos de diversos portes por todo o país. Os autores se tornaram mais pró-ativos e menos dependentes de editoras que, inclusive, reconhecem que muitas vezes produzem obras com menos qualidade que os autores independentes. Creio que estamos melhor equipados para lidar com um cenário menos propício. Estamos também num momento em que se esboça um mercado que pode vir a ser saudável, mesmo ainda faltando muito para que seja auto sustentável. Ainda assim, consigo olhar com otimismo, pois o perfil geral dos artistas mudou e a BD brasileira ganhou muito com isso. Diminuiu o discurso derrotista em prol de uma geração de autoras e autores que se importam em se expressar de maneira original, fazer seus trabalhos chegarem a seus público e sem medo de ousar. Acredito que, se tomarmos os devidos cuidados, em alguns anos a BD brasileira será mais reconhecida internamente e também mundo afora.
NPS: Resta-me agradecer ao José Aguiar a entrevista.
JA: Aproveito e agradeço ao generoso espaço para esta conversa! Fomos longe e espero que tenhamos nos divertido juntos! Convido a todos a lerem minhas BDs. É um prazer enorme dialogar com todos através de minhas histórias! Um grande abraço a todos!
GALERIA
nota 1: respeitaram-se respetivamente as normas europeia e sul-americana da língua portuguesa de entrevistador e entrevistado.
nota 2: imagens gentilmente cedidas pelo autor.

Fundador e administrador do site, com formação em banda desenhada. Consultor editorial freelance e autor de livros e artigos em diferentes publicações.
O José Aguiar apareceu no CAOS ainda antes de ser Kb. Nessa altura venderam me o JA como artista. Sabendo que era alguém cuja expectativa nunca poderia ser recompensada por iniciantes, sugeri que fizesse as capas. Foi uma pena mas ficamos com recordações e capas fantásticas.
Olá, Fernando!
Obrigado pela tua contribuição, que esclarece ainda mais a participação do José Aguiar no C.A.O.S.
Abraço,
Nuno