Em outubro de 2018, a revista de banda desenhada italiana Julia completa 20 anos de publicação ininterrupta. Esta série criada pelo multipremiado Giancarlo Berardi para a Sergio Bonelli Editore (SBE) já teve o cunho de cerca de 4 dezenas de profissionais, entre coargumentistas, desenhadores e ilustradores de capas, contando sempre com a atenta supervisão de Berardi.
Os autores de Julia
Giancarlo Berardi (n. 1949, Génova) iniciou a sua atividade enquanto argumentista de BD nos anos 70. No Studio Bierrecì, fundado por Luciano Bottaro, Carlo Chendi e Giorgio Rebuffi, teve a oportunidade de colaborar com material para as revistas Tarzan, Gatto Silvestro e Topolino. Também oficiosamente, realizou o argumento para 2 bandas desenhadas de Diabolik.
Após a sua formatura com uma tese sobre a sociologia do romance policial, criou, com desenhos de Ivo Milazzo – com quem já tinha produzido outras bandas desenhadas – Ken Parker, um western baseado no filme As Brancas Montanhas da Morte de Sidney Pollack. Nesta série de BD para a SBE, manteve a fisionomia do protagonista do filme, interpretado por Robert Redford. A dedicada investigação histórica, as preocupações sociais e a atenção dada à construção das personagens secundárias não passaram despercebidas aos leitores, rapidamente transformando Ken Parker num personagem de culto da BD italiana, tendo sido a série de Berardi publicada num maior número de países.
Na década de 80, Berardi continuou a escrever argumentos para as editoras SBE e Comic Art. São deste período obras como Tom’s Bar, Marvin il detective e Sherlock Holmes. Em 1989, fundou com Milazzo a Parker Editore, destinada a publicar a obra integral de Ken Parker, projeto que finda em 1998. Nesse mesmo ano, após escrever uma BD para Nick Raider e outra para Tex – que estreia a série MaxiTex – criou a série Julia.
Tal como já tinha acontecido com Ken Parker, Maurizio Mantero tornou-se um colaborador frequente enquanto coargumentista de Julia. Mais tarde, juntar-se-iam à equipa Giuseppe De Nardo e Lorenzo Calza, para além de outros colaboradores mais ocasionais.
Se Berardi é um nome omnipresente na série enquanto argumentista, os desenhadores da mesma oscilam entre uma equipa recorrente e aqueles com poucas incursões, tal como sucede noutras séries da SBE.
Contando com mais de três dezenas de desenhadores ao longo dos seus 20 anos de existência, os doze que mais vezes contribuíram com o seu trabalho para a série foram Laura Zuccheri, Claudio Piccoli, Steve Boraley, Federico Antinori, Enio, Roberto Zaghi, Antonio Marinetti, Valerio Piccioni, Luigi Pittaluga, Ernesto Michelazzo, Mario Jannì, Thomas Campi e Marco Soldi. São nomes importantes na história de Julia – e não só -, cada um deles contribuindo para o seu sucesso.
Julia, As Aventuras de uma Criminóloga
No que toca às possíveis razões que demos para que Ken Parker se tivesse tornado uma série de culto, todas elas são exacerbadas em Julia, ou não estivéssemos perante um autor mais maduro e rodeado por colaboradores que não deixam nada ao acaso.
Se as planificações das pranchas se poderão considerar mais próximas do tradicional, com um número fixo de tiras por página, sem alterações das dimensões das margens nem elementos que se desenham para além dos limites das vinhetas, qualquer uma das bandas desenhadas de Julia apresenta uma forte linguagem cinematográfica.
Para além das veras lições quanto aos planos e a sua sequência, o “realizador” Berardi revela ainda a sua faceta de director de casting omnipotente, escolhendo atores da sua preferência, retirados de qualquer linha temporal, para os papéis que cria.
Para protagonista, Berardi escolheu Audrey Hepburn, sinónimo da elegância, a inteligência, a sensibilidade e a coragem necessárias a Julia, a professora universitária de criminologia, que presta consultoria à polícia de Garden City, uma cidade ficcional do estado de Nova Jérsia, a menos de 1 hora de viagem de Nova Iorque. O leitor tem acesso aos seus pensamentos mais íntimos através dos registos que Julia vai fazendo no diário, sejam os seus pesadelos, reflexões sobre questões sociais ou a constante necessidade de melhorar o seu autoconhecimento.
Um jovem Nick Nolte interpreta Leo Baxter, o detetive privado que auxilia Julia, muito a contragosto de Alan Webb. Webb e Ben Irving são os polícias com quem Julia contracena, interpretados respetivamente por John Malkovich e John Goodman.
Solteira, Julia reside sozinha na casa da sua avó Lillian (interpretada por Jessica Tandy), socorrendo-se do apoio da sua empregada – e amiga e confidente – Emily Jones (Whoopy Goldberg). Órfã desde muito cedo, uma das suas preocupações frequentes é a ausente irmã mais nova Norma, que prossegue a sua carreira de modelo, com um historial de toxicodependência.
Os personagens secundários da série, dos ocasionais aos recorrentes, são também, por vezes, interpretados por conhecidos atores. Mas, para além do casting, as aventuras da criminóloga, contêm inúmeras referências ao cinema, bem como à literatura e à música, nos diferentes argumentos.
Apesar de facilmente podermos situar a série nos géneros mistério e/ou policial – ou outros subgéneros que estes englobam –a verdade é que Berardi classifica a Julia como uma investigadora da alma, se tal profissão existisse. O foco de Julia é a compreensão das motivações dos criminosos e, em última instância, da natureza humana.
A interdisciplinaridade das ciências comportamentais e sociais dá a Julia os instrumentos necessários para o seu poder dedutivo durante as investigações que realiza, o qual, aliado à sua intuição, gera geralmente bons resultados.
Graças a tal, na própria banda desenhada, o estereótipo destas ações origina a criação de uma série televisiva com o seu nome, baseada nas suas colaborações com a polícia local. Tal produto comercial, não controlado pela criminóloga, desvirtuado e de puro entretenimento torna-se uma das primeiras críticas de Julia aos conteúdos televisivos.
Se a vida profissional a parece satisfazer em pleno, a vida pessoal é bastante mais complicada, dado almejar encontrar alguém com quem partilhar a sua vida. Ao longo da série, não é rara a sua intuição falhar no que toca à avaliação das pessoas com quem inicia relacionamentos, enquanto evita constantemente os avanços e retrocessos de uma possível relação com Webb, que mais facilmente expressa ciúmes dos flirts de Baxter do que assume o seu interesse romântico em Julia. Tal como acontece no que toca à sua irmã Norma, as análises que tão bem realiza enquanto consultora, revelam-se de pior qualidade no que toca aos afetos.
Por tudo o que expusemos, não será de estranhar que cada um dos números desta série da SBE tenha 132 páginas, um número superior aos das demais séries da editora, uma exigência realizada por Berardi para poder aprofundar mais cada uma das narrativas.
As capas de Julia
Outra característica que contrastava com as demais propostas mensais bonellianas era a abordagem das capas. Marco Soldi (n. 1957, Roma), que tinha frequentado a Escola de Banda Desenhada de Eugenio Sicomoro, trabalhara para diversas publicações na década de 80 do século passado, antes de iniciar a colaboração com a SBE, em 1993, com o desenho da BD Oltre Morte para a revista Dylan Dog #88 (janeiro de 1994). Regressaria em 1998 para ilustrar a totalidade das capas da revista Julia, bem como uma dezena de bandas desenhadas. Soldi realizou a ilustração das capas durante cerca de 15 anos, até ao n.º 157 (outubro de 2011), momento em que passou o testemunho a Cristiano Spadoni.
As pinturas de Soldi para as capas de Julia – que tiveram, inclusivamente, direito a diversas exposições – distinguiam-se das demais capas da editora, nas quais era frequente uma simples aplicação de cores sem gradações de tom. Após o lápis e tinta-da-china, Soldi recorreu a diversas técnicas de pintura, como a têmpera ou a utilização de diferentes tipos de aguarelas. O resultado era uma revista que facilmente se diferenciava do género de aventuras mais maniqueístas e infantojuvenis da editora, procurando um público-alvo mais diferenciado.
Os spin-offs
O sucesso editorial de Julia permitiu a Berardi explorar o passado de Julia e a construção de relações pré-estabelecidas numa segunda série de periodicidade anual, intitulada Almanacco del Giallo, entre 2005 e 2014. Em 2015, esta série foi substituída por Julia Speciale, que se foca no período da vida universitária de Julia. No entanto, tal como tinha sucedido nos números 100 e 200 da série original, as bandas desenhadas desta nova série anual são coloridas.
A Julia com sotaque brasileiro e os leitores portugueses
Iniciada em novembro de 2004, a série Júlia (com o acento agudo para aportuguesamento do título) da brasileira Mythos Editora, chegaria no ano seguinte aos pontos de venda de periódicos portugueses via importação. Na altura, a editora volvia esforços na internet para dar a conhecer as diferentes publicações bonellianas que eram exportadas todos os meses para Portugal.
Assistia-se nas amigáveis discussões a algum preconceito por parte da maioria dos leitores portugueses de banda desenhada, que, com exceção dos fãs de Tex, olhavam de lado e resistiam a experimentar a leitura de Tex, Zagor, Martin Mystère, Dylan Dog, Mágico Vento e as propostas mais recentes, Dampyr e… Júlia.
Sendo provavelmente alicerçado em diferentes características da apresentação das diferentes séries – p.e., capas anacrónicas, fraca qualidade do papel, dimensão reduzida do formato original, temáticas de algumas revistas centradas no então menos popular género western –, aquele preconceito estendia-se ao receio da simplicidade e desinteresse dos argumentos, desenhos e/ou planificação de pranchas, uma vez que o produto era fisicamente mais aproximado das ingénuas revistas de BD de reduzido formato de décadas passadas do que dos então predominantes álbuns de capa dura franco-belgas ou as coloridas compilações de comics em trade paperbacks ou hardcovers.
A estas questões, Júlia adicionava outras. Não só a protagonista e título da série eram os únicos do género feminino, como o próprio título estava fortemente associado a outro tipo de publicação presente nas bancas destinado a um público-alvo distinto, a série de romances cor-de-rosa homónima Júlia (congénere das séries Sabrina e Bianca). Inclusivamente, devido a tal facto, para evitar questões legais, a Mythos viu-se obrigada, a partir do 5.º número, a alterar a designação italiana da série de BD para o seu subtítulo Aventuras de uma Criminóloga, antecedido na capa por um modesto J. Kendall.
As vendas portuguesas das séries importadas Dampyr e Júlia foram superiores ao esperado, fruto do trabalho de divulgação realizados pelos 2 ou 3 sites sobre banda desenhada de então e a possibilidade dos leitores poderem acompanhar desde o início uma série bonelliana. A nível de géneros, Dampyr resultou ligeiramente melhor do que Júlia no nosso país, ao contrário do Brasil, o que originou que Dampyr fosse cancelado ao fim de 12 números. Talvez a ficção especulativa dos vampiros não tenha convencido os leitores texianos e demais apreciadores de westerns, que, quiçá, deram uma oportunidade a Júlia devido à autoria de Berardi, ou não fosse Ken Parker uma série muito estimada entre os mesmos.
Responsável por uma pequena proporção das vendas da tiragem da revista, a importação portuguesa dependeu sempre, obviamente, da própria existência de Júlia no Brasil. Ao longo dos anos, foram várias as campanhas brasileiras realizadas para salvar a revista do iminente cancelamento, bem como as diferentes ações da editora na demanda da viabilidade da série, como a publicação de 2 números italianos em cada um dos números da revista brasileira a partir do n.º 106. Apesar de todos os percalços, a série brasileira, a caminho dos 14 anos, já publicou mais de 150 bandas desenhadas de Julia Kendall, sendo uma das séries bonellianas mais longas publicadas no Brasil, ininterruptamente.
Não tivesse sido a dificuldade dos leitores portugueses localizarem pontos de venda que comercializassem a revista, dado o número reduzido de exemplares importados, bem como os diferentes períodos de interrupção de importação – como aquele que se vive atualmente, sem solução a médio prazo – e poder-se-ia considerar privilegiada a acessibilidade do leitor português à série Julia.
Com O Eterno Repouso, o 11.º número da série italiana, Julia tem finalmente direito à sua primeira edição em português europeu, pela via da Colecção Bonelli, editada pela Levoir, em distribuição com o jornal Público.

Fundador e administrador do site, com formação em banda desenhada. Consultor editorial freelance e autor de livros e artigos em diferentes publicações.
“As vendas portuguesas das séries importadas Dampyr e Júlia foram superiores ao esperado, fruto do trabalho de divulgação realizados pelos 2 ou 3 sites sobre banda desenhada de então e a possibilidade dos leitores poderem acompanhar desde o início uma série bonelliana. A nível de géneros, Dampyr resultou ligeiramente melhor do que Júlia no nosso país, ao contrário do Brasil, o que originou que Dampyr fosse cancelado ao fim de 12 números. Talvez a ficção especulativa dos vampiros não tenha convencido os leitores texianos e demais apreciadores de westerns, que, quiçá, deram uma oportunidade a Júlia devido à autoria de Berardi, ou não fosse Ken Parker uma série muito estimada entre os mesmos.”
Tendo em conta que são sobras é que a quantidade nunca foi revelada a quantidade enviada do Brasil,mas não devia andar muito longe dos números das sobras panini actuais é sempre lucro.Entre vender em saldos no Brasil e mais caro aqui,