A adaptação cinematográfica de Como Falar com Raparigas em Festas estreia no dia 24 de maio. Livre de spoilers, segue-se a crítica pós-visionamento de imprensa.
Apesar de ser admirador de anteriores projectos do realizador John Cameron Mitchell, não estava à espera que este filme fosse grande coisa. Nada me fazia adivinhar, porém, que fosse tão medíocre.
Preocupado em preparar-me mentalmente antes de ver o filme na sua estreia para a imprensa, e indeciso se deveria enveredar por um instrumentário semiótico à la David Bordwell, uma perspectiva cognitivista à la Noël Carroll ou antes mergulhar no charco lacaniano de um Slavoj Žižek para analisar o filme, acabei distraído pela galeria de t-shirts afectas à banda desenhada mais popular das outras pessoas que participaram nesta sessão. Desabituado que estou neste papel de jornalista, o ritual era-me desconhecido, mas diverti-me a identificar as tribos a que pertenceriam os restantes convidados: para além dos bedéfilos, atraídos pela glória gaimanística que exsudaria seguramente do ecrã, encontravam-se pessoas de ar compenetrado e sóbrio que escreverão sobre O Cinema em plataformas sérias e prestigiadas, e jovens a twittar promessas e notas aos seus seguidores fiéis a ritmos certeiros em momentos-chave do filme. Não se preocupem, nenhum daqueles instrumentos críticos serve a este novelo de intenções goradas. Mais, não apresento spoilers de maior, se bem que o (pouco) sumo que o filme terá não está no que se desvenda durante a história, mas antes na maneira como vai sendo construído.
Bruxo: eu, de alfinete na gravata, sapatos de pele engraxados, óculos de massa e a caminho de uma barba mosaica, e de bloco e notas na mão, estou livre de pertencer a qualquer categoria fácil. Mas crítico de cariz académico pseudo-hipster não deve andar longe da verdade…
A importância desta categorização tribal vem da forma como o filme penetra num imaginário precisamente dedicado à identificação de sub-culturas do final dos anos 1970 em Londres. O filme quer estar sob o signo do punk. Quer. Não quer dizer que esteja. O trio de rapazes cujas aventuras nocturnas seguimos são “punks” por descrição própria, no dealbar desse movimento no seu cadinho de origem, e torna-se a própria matéria que tematizará as conquistas individuais dos protagonistas. A indumentária, as práticas, a música, a agressividade fácil, as danças e a rebeldia generalizada são os ingredientes tornados desde logo claros e centrais no tratamento do ambiente. Porém, desenganem-se aqueles que esperariam uma visão social ou sequer imaginativa à la Quadrophenia (real. Franc Roddam, 1976) ou até mesmo This is England (real. Shane Meadows, 2006), apesar do grito da personagem Boadicea parecer querer assumir alguma ligação com essas outras visões. Os elementos são colocados à disposição do olhar – a classe trabalhadora, as pequenas esperanças dos desfavorecidos, linhas raciais, a autoridade escolar e social, a subserviência ao poder simbólico da monarquia cuja experiência é totalmente desfasada da vida dos súbditos mais pobres -, mas nunca trabalhados e muito menos tornados em arma. Pior ainda, quase tudo é passado por uma sanitização que reescreve a história, ficando-se na dúvida se a conversa sobre o “punk genuíno” é para ser levada a sério.
A razão de me ter vindo sentar na sala para ver Como falar com raparigas em festas é, naturalmente, o facto de ser uma adaptação de um conto de Neil Gaiman, celebrado autor de banda desenhada, que penso não precisar de revisitar. Tendo escrito sobre a adaptação deste mesmo conto para banda desenhada pelos autores brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá (sobre a qual o site Bandas Desenhadas também se tinha debruçado aqui), competente mas desapaixonada, esperar-se-ia que houvesse uma qualquer exploração dos melhores ingredientes de que Gaiman se consegue servir para a sua escrita. Não que veja na sua lavra o suprassumo da criação literária, considerando-o na verdade um mais exímio autor de contos do que de romances, e um melhor inventor de personagens do que de construções sociais. Mas a adaptação de Mitchell não encontrava na estrutura do conto a matéria necessária para criar uma longa-metragem e resolveu transformá-lo no ponto de partida para algo maior. Maior, não melhor. Atentem ao número de espaços que são visitados (casa de Enn, casa da árvore, clube de Boadicea, casa de Zan, prédios suburbanos, etc.) e vejam como não se compreende a sua coalescência espacial. Não há “mundo” neste filme, apenas locais desligados entre si para que as acções possam decorrer.
O conto original passa-se somente durante uma noite, em que dois amigos se confrontam numa festa com uma série de mulheres, misturando a complicada e pouco elegante descoberta sexual e social dos adolescentes com a confusão de estarem a falar com criaturas alienígenas, só se apercebendo no fim. O conto é contado em retrospectiva, pelo narrador e protagonista, Enn, décadas mais tarde. A versão cinematográfica reduz toda essa matéria no seu segundo acto, para depois desenvolver uma estrutura mais próxima a uma clássica comédia romântica. Todos os itens são confirmados: rapaz conhece rapariga, rapaz conquista rapariga, rapaz perde rapariga por conflito interno, confirmado por conflito externo, e depois rapaz reconquista rapariga… ou quase…
O filme tem essa estrutura, mas parece não se decidir sobre o quer fazer, o que quer contar nem sequer o que quer ser. Filme de laivos documentais/realistas sobre a cultura musical e o seu papel de rebeldia social não será. A função de comédia romântica é preenchida, mas de modo sofrível. Chamar-lhe de “ficção científica” é apenas indicar um assunto, que não é explorado de forma alguma. Tratar-se-á de um filme sobre a cultura adolescente? Se sim, não tem nem o charme ou a vivacidade dos filmes de John Hughes nem muito menos a corrosividade de Les Beux Gosses (real. Riad Sattouf, 2009; sobre o qual também escrevi, aqui).
Enn é um adolescente que se revê na cultura punk – a cena inicial no interior do quarto, varrendo os posters, discos, cadernos rabiscados, a colecção de autocolantes com o A de anarquia para bombar pelas ruas (uma forma de street culture que não existia na época – talvez o realizador não soubesse como mostrar de uma forma cinematográfica interessante miúdos a coser patches à máquina em casacos velhos), a forma como ele se vai vestindo e preparando para o dia, numa espécie de vídeo, sublinha-o de maneira explícita. O seu propósito de vida é dedicar-se a um fanzine, no qual publica a sua banda desenhada e resenhas de música, sobretudo punk, com os seus amigos Vic e John, cada um deles cumprindo o papel de um “tipo de punk” (Vic é aquele que mais abraça o visual e está interessado em miúdas, John é o gordinho genuinamente interessado em compreender as dimensões musicais, compositivas e poéticas do género, Enn é o idealista, que acredita que os ideais do punk são uma solução para os problemas sociais, dos mais pessoais aos mais estruturais). Numa noite depois de um concerto, acabam por ir dar à casa errada, entrando no que pensam ser uma festa mas, mais tarde perceberemos, são os rituais de um conjunto de raças alienígenas que veio à Terra não se sabe lá muito bem porquê.
Seja como for, os três amigos vão “libertar a franga” nessa festa, cada um à sua maneira. Enn acaba por conhecer uma rapariga, Zan, que cumpre também todos os itens necessários ao papel de “manic pixie dream girl” e, aos 15 minutos do filme, podemos começar o romance.
Sendo alienígenas, é natural que todos os representantes dessas várias raças façam referências a realidades e comportamentos que não têm tradução imediata à realidade dos humanos. O mesmo pode ser dito dos humanos, que se referem a várias banalidades, incompreendidas pelos outros. Tudo isto permite a que se levantem uma série de mal-entendidos e diálogos cruzados cujo objectivo, presumimos, seja o humor, já que o público entende todos os sentidos e encontrará no falhanço de comunicação a fonte do humor. Presumimos, pois não apenas os diálogos são dolorosamente previsíveis como divertirão, talvez, quem ainda se pautar com clássicos supernos da comédia intelectual como Com Jeito Vai ou Eu Show Nico. Informação vital que ajudaria à construção da narrativa e adensamento das personagens não é nunca dita, mas quando ela é óbvia é gritada em momentos de “grande tensão emocional”. Enfim, a gravidade das lições pretendidas, se é que as há, não provêm nem das palavras nem dos actos, mas da sua mais que óbvia declaração nas nossas caras (Hedwig também sofria disso, mas o glamour e o humor corrosivo salvava-lhe a pele, pun intended). Não há lógica narrativa, mas uma sucessão de quadros que o autor junta, esperando que uma magia qualquer surta algum efeito junto ao espectador. Não surta nem desurta.
Precisamente para evitar a necessidade de criar diálogos convincentes ou que ajudassem a moldar as personalidades de cada personagem e, consequentemente, as suas relações e desenvolvimento, o realizador opta antes por ir espalhando, ao longo da diegese, pequenas “montages” que explicariam essas mesmas relações – “os chavalos a fazer merda”, “o casal a descobrir-se enquanto andam de bicicleta e se riem pelas ruas”, “o duo de rock que os faz ascender ao transe”, etc. Aliás, enquanto via o videoclip de Enn e Zan a “conhecerem-se”, compreendemos porque é que mesmo um filme terrível como The Naked Gun (real. David Zucker, 1988), sim, com o Leslie Nielsen e a mulher do Elvis, é redimível por ter uma das mais brilhantes e hilariantes montagens românticas do cinema moderno (“I had a wonderful day, Frank. I can’t believe we just met yesterday”). No caso presente, todos esses momentos apenas confirmam que o filme tem pouco a dizer. Muito estilo e fanfarra, pouco sumo. Aliás, toda a cinematografia (planos e ângulos estilosos sem qualquer substância, péssimo trabalho e/ou uso do som e música fora dos concertos em directo, etc.) e trabalho de edição é constrangedor.
Quer Hedwig and the Angry Inch quer Shortbus foram filmes absolutamente arrasadores de um certo cómodo moral para com a sexualidade humana e a sua liberdade de expressão. Hedwig tinha uma atitude punk celebratória e divertida, e Shortbus era uma espécie de freak flag com muita verve, exploração e profundidade. A verdade sexual era explícita e positiva. Mas mesmo os episódios de descoberta sexual neste filme (jogos anais, fisting) são quase diminuídos a anedotas à custa da confirmação heteronormativa. Esta adaptação parece querer conformar-se a uma certa domesticidade das relações amorosas e emoções simplificadas para consumo imediato que não fazem qualquer favor ao espaço que os anteriores títulos do realizador tinham conquistado.
Quando descobrimos as várias raças, todas elas estão a cumprir rituais impenetráveis, vestidos com trajes de vinil e em estranhas performances. Mas todos esses gestos e modos de comunicação são de um mau gosto atroz. Em vez de haver um qualquer valor de produção que estudasse um pouco o catálogo da Marquis.de ou se desse ao trabalho de visitar uma qualquer galeria de arte contemporânea, fazem-se meia-dúzia de ideias mal-cozidas do que parecem ser descrições de performances contadas em terceira mão, sendo uma dessa pessoas bêbada, a outra ignorante e nenhuma delas testemunha da performance original. Digno de um espectáculo de escola secundária a “gozar” com as performances e pouco mais…
Mesmo os concertos punks e a cultura associada não ficam a ganhar muito, como vimos. Até parece beber de uma espécie de nostalgia distorcida de duas atitudes: a do “deve ter sido assim apesar de não ter testemunhado” e do “deveria ter sido assim”. O que não falta são vários momentos em que a acusação de selling out é lançada, o que parece mais servir a um humor banal e pedante (“eu gostava de x quando eram desconhecidos”) e que em nada abona à consolidação das personagens. Por exemplo, no início do filme, vemos a Queen Boadicea (interpretada por Nicole Kidman, o que não aquece nem arrefece, ou é uma penitência qualquer) a querer empurrar o seu protegido para um contrato discográfico, depois mais tarde queixa-se de ter sido abandonada pelos amigos agora famosos… e lá segue um chorrilho das personagens-chave desta cultura, de Vicious a Ramone a Westwood). Diria mesmo que os vários High School Musical são muito mais eficientes e competentes a mostrar a energia vital dos concertos, as frenéticas danças e as relações criadas entre as personagens graças às culturas respectivas do que o triste pastiche do que vemos neste filme…
Saltem este parágrafo se não quiserem que estrague uma parte do filme. Descobrimos – mas é tão expectável! – que cada uma das tribos alien identificáveis representam uma parte da totalidade humana: razão, força, sexo, etc. Desenha-se até um esquema de um corpo humano, colocando os símbolos num esquema muito parecido com as chacras… Eles são seis, e agora Zan, graças ao seu contacto com Enn, tornou-se algo diferente e novo. Um sétimo factor. Adivinham qual? O amor. Nem mais. Se já no Quinto Elemento (real. Luc Besson, 1997), isto me tinha feito dobrar do ridículo que é, não se compreende como em 2018 ainda há pachorra para estes choradinhos.
O tema principal do filme, que nada tem a ver com o conto de Gaiman, está escarrapachado nos elementos apresentados: as relações entre pais e filhos. Está tudo lá: a forma como Enn idolatra o pai que se pirou, a forma como trata a mãe, que apenas quer uma nova oportunidade de ser amada (o filho acha que o homem com quem ela quer sair é “imbecil”, e nós devemos acreditar na palavra dele? Eu apenas o vejo como um puto a cheirar a cueiros incapaz de compreender a mãe e imaturo), os Pais/Professores alienígenas que querem comer os filhos mas depois descobrem novas formas de relacionamento. Mas tudo isso é deitado fora porque se tem de responder às fórmulas expectáveis, cansadas e fracas do romance entre as duas estrelas principais: Alex Sharp, que parece uma versão miniatura e desanxabida do charmoso Tobias Menzies e Elle Fanning no seu papel de sempre: carinha laroca e caga-na-saquinha.
Haverá pessoas a rir das piadas do filme (durante a apresentação, houve umas gargalhadas de outros convivas). Haverá pessoas que provavelmente acharão que as lições de “resistência” do filme são profundas. Haverá pessoas que até acharão que a forma como a música e as performances são exploradas são “edgy” e “woke”. Aliás, a representação étnica, etária e sexual está aqui num ponto de equilíbrio maximal, de acordo com os interesses da sua recepção alargada, preocupação bem mais clara do que a da consistência e coerência do projecto. Até há um epílogo final que cria um salto temporal e serve de referência “molhada” para os fãs de Gaiman (é ver para perceber). Haverá pessoas que se excitam com esse tipo de referencialidade básica. Haverá. Eu não serei uma delas.
Autor, crítico, curador e docente de banda desenhada…