A Gradiva iniciou a publicação nacional da Pequena Bedeteca do Saber, a série de banda desenhada correspondente à franco-belga Le Petite Bédétheque des Savoirs, editada Le Lombard desde 2016, que tem como público-alvo adolescentes e adultos.
A série franco-belga tem 22 números publicados, estando previsto chegar em novembro aos 28 volumes. Sob a direção de David Vandermeulen, a série tem como editora Nathalie Van Campenhoudt e conta com o grafismo de Elhadi Yazi. O seu principal objetivo é associar um ensaísta de renome na sua área a um autor de BD, tendo, ao longo da série, sido abordadas temáticas relacionadas com a história, filosofia, técnica, ciência, cultura, natureza e sociedade.
A correspondente portuguesa mantém as dimensões das edições franco-belgas, tendo começado a série pelos números 2 e 16 da coleção original, apostando em 2 títulos que a editora acredita terem o potencial de cativar os leitores portugueses, para que possam prosseguir a mesma.
Por um lado, O Universo – Criatividade Cósmica e Artística, além da temática interessante da astrofísica, tem como cartão de visita o nome do canadiano naturalizado francês Hubert Reeves no argumento, com mais de uma dezena de livros de divulgação científica publicados pela Gradiva. Na verdade, o texto tinha sido escrito para o espetáculo Mozart et les étoiles, concebido por Reeves com o Ensemble Calliopée, com a direção artística de Karine Lethieque:
Quiça devido a tal facto, estamos perante uma BD que não exagera na quantidade de texto presente nas legendas e balões, como acontece com frequência na BD de caráter didático. O tom é bastante informal e com uma atitude otimista, pretendendo transmitir conteúdos e questões interessantes a leigos, adotando Reeves o papel do narrador que derruba a quarta barreira, enquanto discursa sobre a temática em causa, realizando analogias palpáveis quando os conceitos são mais abstratos.
Com o francês Daniel Casanave a traduzir o discurso de Reeves para a linguagem gráfica, a obra tem a sua leitura ainda mais facilitada, graças à redundância das mensagens contidas no binómio texto/imagem. Casanave é, inclusive, exímio numa linguagem imagética de fácil leitura a todas as idades. Quer Reeves, quer Casanave têm direito à devida apresentação no texto introdutório de David Vandermeulen, o qual permite situar quem são os autores ao leitor ocasional.
Os Direitos do Homem – Uma Ideologia Moderna é editada numa altura em que o mundo ocidental está particularmente atento a alguns dos atuais atritos internacionais. Como é referido ao longo da obra, é na altura dos grandes conflitos bélicos, ou melhor, após a sua consumação e as atrocidades cometidas, que a questão dos direitos humanos é mais valorizada… Para se seguir o período em que, pouco a pouco, tudo se vai erorindo e esquecendo.
Para esta obra, Vandermeulen escreveu um vero miniensaio sob a forma de prefácio. São 10 páginas que merecem ser lidas e que, per se, já justificariam a edição do livro. Ao longo delas, resume-se a história dos conflitos intraespécie e as sucessivas tentativas de salvaguardar os direitos de todos os (ou alguns) seres humanos.
Quanto à BD, conta com o argumento do belga François de Smet, filósofo, autor de obras sobre a democracia e diretor de Myria, um organismo belga encarregado de garantir os direitos fundamentais dos estrangeiros. De Smet define a Declaração Universal do Direito dos Homens como o narrador que se dirige ao leitor, tratando-o por tu, ou não fosse “a sua melhor amiga”. Se é verdade que o leitor tem contacto com a génese da Declaração, o argumento é muito mais ambicioso, levantando uma série de interrogações ao longo da sua leitura, que espicaçam a reflexão do leitor sobre as diversas questões enunciadas. Ou a Declaração não se tratasse de um documento escrito a várias mãos, repleto de compromissos políticos.
A arte do belga Thierry Bouüaert expressa-se sem a ternura da de Casanave, com tons mais sombrios e traços mais realistas, não permitindo que haja dúvidas sobre esta narrativa ser parte integrante da História da Humanidade. Tal como expresso no argumento de De Smet, também nos desenhos não há espaço para um futuro otimista da nossa espécie. Poucas obras de BD editadas em Portugal têm o poder de gerar reflexão como esta.
Em suma, estas primeiras bandas desenhadas da Pequena Bedeteca do Saber dificilmente poderiam ser considerados somente objetos ludopedagógicos ou qualquer outra designação que alie entretenimento e didatismo. O público-alvo adoadulte (designação que foi criada pelo marketing franco-belga para que os adultos que leem a BD maniqueísta de laivos adolescentes dos seus “heróis de sempre” não se sentirem excluídos), neste caso, é realmente apropriado; podem ser considerados quer adolescentes quer adultos como os seus leitores potenciais, que, dependendo da obra em causa, poderão realizar leituras diferentes. Apesar do registo de De Smet e Bouüaert ser mais adulto – pela seriedade do tema? – os autores apostaram numa narrativa cativante que não afasta os adolescentes. Já Reeves e Casanave, tiveram como foco que qualquer adolescente que lesse a sua obra pudesse tratar alguns princípios da astrofísica por tu. No entanto, neste tipo de série, em última instância, cada obra acaba por ter a função que cada leitor lhe permite.
Discretas, devido ao formato reduzido, estes duas bandas desenhadas merecem que o público as descubra nas livrarias. E, se são uma amostra representativa da qualidade da série, fazemos votos que estes dois volumes sejam um sucesso, para que a Gradiva prossiga a publicação de mais volumes da Pequena Bedeteca do Saber.
Fundador e administrador do site, com formação em banda desenhada. Consultor editorial freelance e autor de livros e artigos em diferentes publicações.