Por João Mascarenhas
Resumo – “Ce qui est admirable, ce n’est pas que le champ des étoiles soit si vaste, c’est que l’homme l’ait mesuré.” Anatole France
A Aventura na Lua de Tintin, publicada inicialmente no jornal belga “Tintin” sob o título “On a Marché sur la Lune” e mais tarde em dois álbuns “Objective Lune” e “On a Marché sur la Lune”, é talvez a obra de Banda Desenhada que mais conhecimento científico encerra na sua génese. Baseando-se em obras de referência à altura, Hergé fez-se assessorar de alguns dos maiores especialistas na área. De tal modo exacta em termos científicos, que uma observação atenta dos elementos presentes nas várias vinhetas permite determinar com exactidão diversos detalhes, como por exemplo o tempo de viagem, velocidades do foguetão, o percurso das várias personagens sobre o solo lunar ou altura do ano em que terá decorrido.
Pretende-se com este trabalho, mostrar a cientificidade e o rigor científico colocado na génese e realização desta aventura, questões que poderão passar despercebidas ao leitor menos atento, baseando-me em referências bibliográficas que inspiraram Hergé (de Méliès a von Braun), assim como em trabalhos posteriores de vários investigadores.
Introdução
A aventura na Lua de Tintin, mais concretamente o segundo álbum Explorando a Lua, faz parte das minhas primeiras memórias da Banda Desenhada, já que foi um dos primeiros livros que o meu pai me ofereceu quando aprendi a ler. Sempre me fascinaram todas aquelas vinhetas em que Hergé desenhou o foguetão lunar e as paisagens do nosso satélite natural. De tal forma que ao longo dos anos recolhi literatura que outros autores foram escrevendo a propósito do tema, no sentido de saber mais sobre esta aventura que tanto me tocou. Este bíptico de álbuns (ou a aventura original) até nem consta das preferências da maior parte dos leitores de Tintin, argumentando alguns com o espaço claustrofóbico do foguetão onde se desenrola grande parte da aventura, ou com a falta de uma trama mais complexa como se verifica em vários outros álbuns. Contudo, fui-me apercebendo que na génese da aventura na Lua de Tintin, estavam conhecimentos científicos muito profundos, tendo-se feito Hergé rodear de bons conselheiros em áreas específicas do Conhecimento, de forma a tornar credível esta narrativa. Não se tratava de fazer ficção científica, mas sim uma narrativa científica plausível, à qual Hergé misturou o seu humor literário e visual.
A Génese
Hergé, visionário, tinha já decidido nos finais dos anos 1940 que a Terra era demasiado pequena para o seu herói, e achou que ele seria o primeiro terráqueo a pisar a Lua. A primeira versão da aventura, de que foram desenhadas apenas 15 vinhetas em 1948, tinha argumento concebido pelo jornalista e pintor Jacques Van Melkebeke e a consultoria científica do cronista científico do Le Soir, Bernard Heuvelmans (L’Homme parmis les étoiles). Nesta versão, desenrolada nos E.U.A., o vilão, o Professor Hyppolyte Calys (Estrela Misteriosa) vendia os planos secretos do foguetão lunar de forma a financiar a compra de um diamante gigante para a actriz Rita Hayworth. Não sendo propriamente uma trama à la Hergé, este rapidamente a abandonou, conservando apenas as cenas do whisky a flutuar pela cabine da nave e a de Haddock, embriagado, a flutuar fora do foguetão.
As Referências Gráficas e Bibliográficas
Hergé assume então a autoria do argumento da viagem de Tintin à Lua, cruzando o Atlântico deixando os E.U.A. e centrando-se nas montanhas da Sildávia, país imaginário dos Balcãs. A história final tem por base científica vários livros que fizeram parte da biblioteca de Selenologia que Hergé foi formando, tendo este afirmado que “ Creio ter lido ou visto tudo o que toca este tema”. Livros como L’Homme parmis les étoiles de Bernard Heuvelmans, Entre Terre et Ciel do professor Auguste Picard, L´humanité devant la navigation interplanétaire de Albert Ducrocq, Notre amie la Lune de Pierre Rousseau fizeram parte dessa biblioteca. Neste último, Hergé pôde consultar mapas das crateras lunares, em especial o do circo Hiparco. Mas o livro do então presidente da Sociedade de Aeronáutica Francesa, Alexandre Ananoff, de título L’Astronautique, Figura 1, tem o papel principal.
Este livro figura inclusivamente, de forma discreta, na capa da revista Tintin de 11 de Maio de 1950. São deste livro as descrições da fissão nuclear, da produção de plutónio, o carburante do motor auxiliar, do modelo do escafandro espacial, o foguetão, as torres de montagem, do posto de comando do foguetão, Figura 2, do periscópio estroboscópico, das couchettes individuais dos cosmonautas, Figura 3, por exemplo.
Existe um outro livro de 1947 que, embora não seja muito referido na génese da aventura lunar de Tintin, tem nela um papel muito importante: German Research in World War II, de Leslie E. Simon, Figura 4.
Na sua capa é representado um foguetão tipo bomba voadora V-2, em tudo semelhante ao foguetão que Tryphon Tournesol concebeu. Este livro acaba por ter maior protagonismo na aventura seguinte – O Caso Girassol – onde Hergé o desenha no interior da casa do Dr. Müller (suprimindo contudo a cruz suástica que o avião da capa ostenta), assim como a Figura 69 da página 182, onde aparece uma foto de uma arma ultra sónica em desenvolvimento pelos nazis, Figura 5.
Em termos gráficos, uma das inspirações de Hergé (e de Bob de Moor, seu colaborador, logicamente), terá sido o trabalho do artista Chesley Bonestell, Figura 6, no que concerne sobretudo às paisagens lunares.
O trabalho de Bonestell era vastamente publicado em livros e revistas da altura (e.g. Collier’s Magazine). Ainda em termos gráficos, no início da publicação da aventura na Lua, a capa da revista Tintin belga, a 30 de Março de 1950, homenageia o filme de 1902 de Georges Meliès, Le Voyage dans la Lune.
O Foguetão
O design do foguetão parece ter sido repartido entre as sugestões mais técnicas de Ananoff e a aerodinâmica das V-2 concebidas por W. F. von Braun. Eventualmente, também o trabalho gráfico de Bonestell poderá ter tido alguma influência, já que as suas representações de astro naves também se assemelham muito às das bombas voadoras alemãs.
Na disposição do interior do foguetão é evidente a influência de Ananoff, ao qual Hergé escreveu uma carta solicitando-lhe algumas informações sobre esses (e outros) aspectos. O motor nuclear auto propulsor a que Ananoff se refere no seu livro, e que inclusivamente o director científico do Comissariat à l’Energie atomique, L. Kowarski, se refere na sua intervenção de 17 de Abril de 1946 no Congresso Nacional da Aviação Francesa, como “pilha atómica” (uma vez que a energia das reacções atómicas pode ser controlada) destinada à propulsão por reacção, é também a solução adoptada por Tournesol, embora este não revele praticamente nada sobre ele. Os problemas de materiais apontados por Ananoff e Kowarski, devido às elevadas temperaturas desenvolvidas pela pilha atómica, parecem ter sido resolvidos por Tournesol, ao inventar um novo material à base de silicone – tournesolite – capaz de lhes resistir. Contudo este motor/pilha tem alguns problemas de contaminação ambiental e dos próprios cosmonautas devido aos isótopos radioactivos do combustível, urânio-235 ou plutónio, que Ananoff contorna através de sugestões que também elas são adoptadas no projecto de Tournesol, conforme este explica em Rumo à Lua. A saber, aquando da descolagem e aterragem (ou alunagem) o foguetão é propulsionado por um motor auxiliar à base de combustíveis não-nucleares, anilina e ácido nítrico, segundo Tournesol. Por outro lado, a protecção da cabine habitável da astronave é isolada do motor atómico através de um escudo protector, por exemplo de chumbo. Em Rumo à Lua, a explicação que Wolff dá ao grupo sobre o fabrico do plutónio que servirá de combustível ao foguetão, é, também, obra de Ananoff. Neste mesmo álbum, a validação de todas estas soluções técnicas adoptadas, em particular o bom funcionamento do motor atómico, é realizado pelo teste do foguetão de ensaio, X-FLR 6 (flaire), dando um excelente “aroma” do que estaria por vir.
Os círculos laranja que existem no piso dos vários andares do foguetão são também eles uma “dica” de Ananoff: o “gás carbónico” (dióxido de carbono), como lhe chamava Ananoff, é um produto da respiração, e o seu excesso no ar, pode tornar-se perigoso para o ser humano. Como o dióxido de carbono é mais pesado que o ar, Ananoff sugere no seu livro que sejam colocados dispositivos (os círculos laranja) no piso das astronaves, Figura 2, de forma a este gás ser recolhido, o que Hergé (ou Tournesol) também adopta(m).
Rumo à Lua
Apesar de não serem visíveis quaisquer treinos específicos para o voo espacial, Tintin, Haddock, Tournesol, Wolff e Milu tomam lugar a bordo do foguetão lunar. Todos sabem que o foguetão partiu da base/centro atómico de Sbrodj, na Sildávia. Hergé confidenciou em Abril de 1972, em Nova York, que “Sbrodj não é mais que a cidade de Brod”, na Croácia, Figura 7.
Aliás, isto poderia, em parte, justificar o padrão de xadrez vermelho e branco (idêntico ao escudo nacional deste país) com que Hergé decorou o exterior do foguetão, não fosse a ilustração da capa do livro de Leslie Simon. Ficamos na dúvida. Contudo, a Croácia, ao sul do lago Balaton que se vê claramente na página 61 de Rumo à Lua, parece ser incompatível com a trajectória ascensional do foguetão. Na página 58 de Explorando a Lua, no regresso à Terra, o foguetão parece contudo apontar ao sul do lago Balaton. Esta aparente discrepância é justificada por C.V. Goldwater pelo facto de na obra de Hergé, e por diversas vezes, locais reais trocarem de nome ou de localização. Assim aconteceu e.g. com o castelo de Cheverny que se tornou no castelo de Moulinsart.
A estratégia de voo adaptada por Tournesol é completamente diferente da que a NASA utilizou para as missões Apollo. Nas missões Apollo, a viagem até à Lua durava cerca de três dias. Após o lançamento, a nave era colocada em órbita terrestre e aí era accionado o motor durante alguns minutos de forma a atingir-se a velocidade de escape (11 km/s ou 40.000 km/h) de forma à mesma sair da atracção terrestre. O resto da viagem era realizado de forma balística, ou seja de motor desligado. O motor só voltava a ser ligado perto do destino, de forma a desacelerar o movimento da nave até esta se colocar em órbita lunar. A partir daqui o módulo lunar descia até à superfície da Lua. No regresso, a desaceleração da cápsula era realizada através do atrito da atmosfera terrestre. Este atrito desenvolve altas temperaturas na superfície da cápsula, cerca de 2.700oC, embora no seu interior a temperatura não ultrapassasse os 40oC.
No caso do foguetão concebido por Tournesol, determinados detalhes são suprimidos. Após a descolagem efectuada com o motor auxiliar, que se revela muito violenta, já que leva à perda de consciência dos cosmonautas (o que pode significar acelerações superiores a 6 g), o motor atómico é ligado até cerca de metade do percurso, incutindo ao foguetão uma aceleração constante. Esta aceleração destinava-se a criar um efeito de gravidade semelhante à terrestre, de forma a permitir aos cosmonautas a sua livre deslocação no interior do foguetão de forma semelhante à que fariam na Terra. Quando a velocidade de escape da atracção terrestre é atingida, ouve-se no altifalante do foguetão alguém da base a dizer que o foguetão se encontra a 8.000 km da Terra e que a velocidade é de 11 km/s (Explorando a Lua, página 3) e duas páginas depois a base anuncia a velocidade de 13 km/s. Portanto, não há dúvida de Hergé sobre este detalhe importante, sublinhando-o por duas vezes. A posição adoptada para os lançamentos (e pouso) pelos cosmonautas na aventura de Tintin é a indicada por Ananoff no seu livro e seria, segundo ele, a melhor forma de evitar a “visão negra” resultante das grandes acelerações a que são sujeitos os cosmonautas nestas alturas. A “visão negra” resulta da falta de sangue na cabeça, pelo facto do coração não ser capaz de bombear sangue suficiente de forma a compensar o fluxo para a parte inferior do carpo, quando este se mantém na posição de “sentado”. Este efeito pode levar à perda de consciência, sabendo-se que uma pessoa não treinada poderá suportar acelerações de 5 g, daí o valor de 6 g que acima apontei.
A meio do percurso o motor foi desligado de forma ao foguetão proceder à manobra de inversão, e ligado novamente de forma a travar o movimento até à aproximação da Lua. A viagem de retorno foi em tudo simétrica à de ida. Neste caso foi o motor auxiliar do foguetão e não a atmosfera terrestre, como no caso Apollo, que assegurou a sua desaceleração antes da aterragem.
Nas missões Apollo, a velocidade das naves era elevada nas vizinhanças da Terra e da Lua e mais baixa no percurso intermédio. Contrariamente, o foguetão de Tournesol impulsionado pelo seu motor atómico acelerava constantemente (aceleração igual à gravidade terrestre para o conforto dos cosmonautas) até cerca de meio percurso, onde atingia a velocidade máxima de cerca de 60 km/s ou seja mais de 200.000 km/h! Esta missão realizou o trajecto Terra-Lua em apenas três horas e meia, a uma velocidade média superior a 100.000 km/h. Roland Lehoucq e Robert Mochkovitch, com base nos dados fornecidos na narrativa, chegam inclusivamente a elaborar o plano de voo da viagem com destino à Lua, que de seguida se mostra:
Plano de voo da viagem de ida | ||||||
Etapa | Hora Terrestre | Tempo de Voo | Velocidade do foguetão [km/s] | Distância à Terra [km] | Distância à Lua [km] | Evento |
1 | 1h 34m | 0h 00m 00s | 0 | 0 | 376.200 | Partida |
2 | 2h 04m 00s | 0h 30m 00s | 11,00 | 8.000 | 368.200 | Descoberta dos Dupondt a bordo |
3 | 2h 06m 49s | 0h 32m 49s | 12,66 | 10.000 | 366.200 | Tournesol, Tintin e Wolf contemplam a Terra |
4 | 2h 07m 24s | 0h 33m 24s | 13,00 | 10.447 | 365.753 | Base anuncia ”13 km/s”;Dupont corta o motor |
5 | 2h 09m 24s | 0h 35m 24s | 13,00 | 12.007 | 364.193 | Reinício do motor; Volta da gravidade |
6 | 2h 14m 24s | 0h 40m 24s | 15,94 | 16.348 | 359.852 | Corte do motor por Haddock |
7 | 2h 24m 24s | 0h 50m 24s | 15,94 | 25.914 | 350.286 | Regresso do capitão a bordo |
8 | 3h 13m 46s | 1h 39m 46s | 45,00 | 116.171 | 260.029 | Base anuncia “45 km/s” |
9 | 3h 39m 17s | 2h 05m 17s | 60,02 | 196.579 | 179.621 | Velocidade máxima; Inversão do foguetão |
10 | 3h 52m 09s | 2h 18m 09s | 52,45 | 240.000 | 136.200 | Base comunica distâncias (pag.18) |
11 | 4h 25m 57s | 2h 51m 57s | 32,55 | 326.200 | 50.000 | Base comunica distâncias (pag.18) |
12 | 4h 47m 28s | 3h 23m 28s | 14,01 | 370.200 | 6.000 | Base comunica distâncias (pag.19) |
13 | 5h 04m 26s | 3h 30m 26s | 9,90 | 375.000 | 1.000 | Arranque do motor auxiliar |
14 | 5h 07m 48s | 3h 33m 48s | 0 | 376.200 | 0 | O Foguetão faz a alunagem |
Deslumbrado pela visão da Lua, Dupont chama Dupond para a ver. Inadvertidamente, desliga o motor atómico, eliminando assim o efeito da gravidade provocada pela aceleração constante de 1g. Segue-se uma sequência de vinhetas espectaculares, onde podemos ver os elementos da tripulação a flutuar pelo habitáculo do foguetão. Estas cenas são tanto mais incríveis se nos lembrarmos que na altura ainda não tinha havido nenhum voo espacial tripulado que permitisse testemunhar este efeito. Inclusivamente os primeiros voos espaciais (cerca de dez anos depois) dispunham de espaço tão exíguo no interior das naves que era quase impossível ver os astronautas em tais situações. Hergé retoma então a cena da primeira versão da aventura em que o whisky de Haddock (guardado preciosamente no seu Tratado de Astronomia), livre do efeito da gravidade, abandona o copo onde estava e forma uma esfera líquida flutuante, Figura 8.
É então que Adonis faz a sua aparição. A visão do asteróide com cerca de 700 m de comprimento parece não ser novidade para Tournesol, já que este o identifica à primeira vista. Adonis existe de facto, tendo sido descoberto em 12 de Fevereiro de 1936 por Eugène Delporte, do Observatoire Royal de Belgique em Uccle, no local onde Hergé tinha a sua residência. Este asteróide pertence à classe dos que potencialmente poderão chocar com a Terra, contudo a sua órbita é bem diferente da narrada em Explorando a Lua. A aparição deste corpo sideral dá azo a uma série de acontecimentos, alguns deles um pouco à revelia das leis científicas. O cruzamento do foguetão com Adonis, parece ter sido (secretamente) preparado por Tournesol, já que o alarme contra asteróides não soa, contrariamente ao que acontece mais tarde com a aparição de um segundo corpo celeste. Digamos que terá sido um bónus que Tournesol ofereceu aos seus companheiros de aventura. Quando aparece, Adonis está a cerca de 60 km do foguetão, já que aparece em face da Lua (da qual se conhece o diâmetro), e se sabe que o foguetão está a cerca de 35.000 km da Lua. Um cálculo trigonométrico permite então determinar esta distância.
É então que Haddock, inebriado pela “leitura do seu Tratado de Astronomia” decide fazer um passeio espacial de retorno a Moulinsart. Uma nota para os fatos espaciais, que são de igual modo “recomendação” de Ananoff. Contudo, Hergé adaptou o capacete, tornando-o completamente transparente, de forma a permitir ver quem se encontra no interior, mesmo quando as personagens são desenhadas de costas. De notar ainda que Hergé segue um pouco na linha de Georges Meliès no tocante ao vestuário dos cosmonautas: além do escafandro e do macacão azul, os vários elementos da tripulação vestem as suas roupas do dia-a-dia. Tournesol anuncia então à base que Adonis tem um novo satélite de nome Haddock. Dada a grande diferença de massa entre o foguetão e o asteróide, Haddock foi atraído para a órbita deste último. Olhando para a órbita de Haddock em torno de Adonis, ela parece ser circular com um raio cerca de duas vezes o tamanho maior do asteróide, logo cerca de 1,4 km. Aqui existe uma gaffe do autor, já que dada a geometria irregular de Adonis, o seu campo gravitacional será forçosamente heterogéneo. Assim, a órbita do capitão deveria ser mais complexa, fruto das variações do campo de gravidade do asteróide. Outra gaffe prende-se com a velocidade a que Haddock se desloca na órbita em torno de Adonis. Esta velocidade pode ser estimada através das leis de Newton, a partir do raio da sua órbita e da massa de Adonis. Esta velocidade é de cerca 10 ou 20 cm/s, ou seja, inferior a 1 km/h. Como comparação poder-se-á referir que alguns satélites artificiais terrestres se deslocam a 8 km/s e a Lua percorre a sua órbita a 1 km/s. A baixa velocidade a que Haddock se deveria deslocar deve-se à baixa gravidade de Adonis (cerca de 20.000 a 50.000 vezes inferior à da Terra – este grau de imprecisão deve-se ao facto de se desconhecer a densidade exacta do asteróide). Assim sendo, o tempo que Haddock levaria a percorrer a meia órbita desenhada na vinheta, era cerca de 8 horas. A própria órbita de Haddock, considerando a massa do asteróide, a proximidade da Terra e outras incertezas, talvez fosse possível, embora muito perto do limite de instabilidade. Compreende-se então que Hergé tenha ignorado as leis da Física, de forma a garantir um mais vibrante relato da cena, que na versão original publicada na revista Tintin n.º 50 de 10 de Dezembro de 1952, envolvia além do capitão e Tintin, também Wolff, todos no exterior do foguetão.
Uma outra gaffe relativa ao resgate do capitão é quando Tintin, preso por uma corda ao foguetão, que voa com o motor ligado perto de Haddock, grita para Tournesol o desligar. Se se tratasse de um automóvel na Terra, o corte do motor, o atrito dos pneus com o solo e a acção dos travões, com certeza que o parariam. No espaço, onde não existe atrito, o foguetão acelera ou desacelera, em função da acção do motor. Quando o motor é desligado, o foguetão mantém-se à mesma velocidade que tinha aquando do corte, o que provocaria um distanciamento deste em relação ao capitão, logo o resgate seria impossível. De facto, o resgate de Haddock poderia ter sido feito com muito mais calma, mas isso com certeza não teria no leitor o mesmo impacto das cenas do álbum.
Uma cena que também foi suprimida para a versão em álbum, foi uma cena que se passa já com o foguetão em fase de desaceleração para a Lua. Cerca das 4h 20m (hora de Sbrodj), e depois de ter cortado um volume imenso de cabelo aos Dupondt, que tinham tido uma recaída do efeito sofrido em No País do Ouro Negro, Haddock pega em todo aquele cabelo e atira-o por uma vigia. O que aconteceu foi que juntamente com o cabelo estava Milou, que assim é atirado “borda fora”. Tintin, apercebendo-se desta situação, debruçou-se perigosamente pela vigia, de forma a conseguir apanhar ainda Milou pela cauda, já que este corria o risco de ir parar não se sabe bem onde. A discussão tem sido “se aquela vigia comunicava directamente com o espaço sideral” ou “se comunicava para um compartimento interior no foguetão”. Apercebendo-se com toda a certeza da ambiguidade das imagens desta cena, Hergé decidiu retirar toda a sequência da versão em álbum.
Alunagem
A representação que Hergé faz da superfície lunar onde o foguetão pousa, é de facto brilhante. Inclusivamente, o autor teve a oportunidade de a observar por telescópio, no Observatório perto de sua casa.
O foguetão pousa então na superfície lunar, bem no centro do circo Hiparco. O local de pouso ficou entre duas crateras, o que sugere que Tournesol poderá ter desenvolvido um potente sistema de navegação, que permitiu ao foguetão não tombar no relevo acidentado, principalmente se nos lembrarmos que a tripulação estava inconsciente.
Tintin tem então a honra de ser o primeiro a pisar o solo lunar, quase vinte anos antes de Neil Armstrong. A chegada fez-se no quarto crescente da Lua, e estando o circo Hiparco situado ao centro da face visível da Lua, à medida que o tempo foi passando, essa região foi ficando cada vez mais iluminada, correspondendo à passagem para Lua Cheia. Este efeito iria beneficiar a tripulação, caso a estadia na Lua tivesse sido a inicialmente programada de quinze dias terrestres. São exactamente as sombras projectadas pelos elementos da tripulação, que permitiu a Yves Horeau elaborar um plano de deslocação dos vários cosmonautas sobre a superfície lunar. Uma descrição detalhada destas movimentações é dada na revista Les Amis de Hergé n.º39 (2004).
Nessa descrição, o percurso de regresso dos Dupondt ao foguetão faz-se por Oeste e não sobre o percurso de ida, que tinha sido por Este. Isto deve-se ao facto de Hergé ter retirado um episódio publicado na revista, em que os Dupondt se perdiam, e ficavam com falta de oxigénio. O capitão e Tintin iam em seu socorro com oxigénio extra. Após a colocação das novas garrafas de oxigénio nos equipamentos dos Dupondt, Dupont, devido ao débito mal regulado do oxigénio, ficou como louco e apoderou-se de um revólver que Tintin (assim como o capitão) trazia num coldre, e aponta-lhe a arma dizendo que vai disparar sobre ele. Felizmente a arma encravou e não provocou danos maiores além do susto. Hergé, além de retirar esta cena aquando da publicação do álbum, “apagou” de igual modo os coldres que Tintin e o capitão traziam à cintura.
O capitão, assim como Milou ou os Dupondt experimentam todos, quando pisam a superfície lunar, o efeito de uma gravidade seis vezes inferior à terrestre, situação sublinhada por Tintin. Aliás, Tintin toma a acção de um pedagogo ao enunciar igualmente a dimensão do disco terrestre, quatro vezes maior que o lunar, quando este último é visto da Terra, e também ao explicar a razão porque não se ouviu o impacto e a explosão de um meteorito contra o solo lunar bem perto deles, dada a ausência de um meio onde o som se pudesse propagar. Mais adianta a diferença desta situação ocorrer na Terra, onde a fricção da atmosfera leva ao rubro e na maior parte das vezes destrói os meteoritos que penetram na atmosfera terrestre, originando as chamadas “estrelas cadentes”.
Tournesol também não deixou de montar alguns aparelhos na superfície lunar, de forma a realizar algumas experiências e medições. Esta actividade ocupa os cosmonautas durante os dias 3 e 4 de Junho, tal como Tournesol escreve no seu diário: “Wolf e eu consagrámos o nosso dia ao estudo dos raios cósmicos e à observação dos planetas mais próximos.” Tirando partido da ausência de atmosfera, Tournesol mede, na manhã de 6 de Junho, a constante das radiações solares (corresponde à potência recebida do Sol por um metro quadrado de superfície) e faz a determinação dos limites do espectro solar no ultravioleta.
A 6 de Junho, três dias após a partida da Terra, Tintin, Haddock, Wolff e Milou partem à descoberta do circo Ptolomeu, situado a cerca de 100 km do local onde estava o foguetão. Apercebendo-se da existência de uma gruta, logo decidem explorá-la. O capitão e Tintin aventuram-se no seu interior. Vislumbram-se estalactites e estalagmites, o que supõe a existência de três elementos para a sua formação: água líquida, calcário e dióxido de carbono. Não existe calcário na Lua, no entanto, quanto à água a história é diferente. Tintin acaba por cair por um precipício no interior da gruta e encontra gelo – água no estado sólido. A sonda espacial Luna Prospector que pousou na Lua em Janeiro de 1998, tem enviado alguns dados que tem alterado o conhecimento dos cientistas acerca da Lua. Um deles é de que a Lua poderá ter até seis biliões de toneladas de gelo nos pólos. Isto é cerca de dez vezes superior ao que anteriormente se estimava. Não se encontrou água directamente, mas encontraram-se traços consideráveis de hidrogénio nos pólos lunares. No nosso sistema solar a presença deste elemento no solo indica a presença de água. Assim sendo, Hergé poderá ter razão. Na figura seguinte pode-se ver uma análise do hidrogénio na superfície lunar, efectuada pela sonda Lunar Prospector.
Finalmente, e após cerca de sete dias na superfície lunar, e Tintin ter lá deixado uma mensagem “destinada a outros homens que, talvez um dia, consigam aqui chegar”, o foguetão abandona a Lua. “E no astro sombrio, no qual voltou a deixar de haver vida, algumas pegadas testemunham que, pela primeira vez, O HOMEM EXPLOROU A LUA”.
Referências Bibliográficas:
- On a Marché sur la Lune, Journal Tintin, Bruxelles, 1950-1953
- Objectif Lune, Casterman,1953
- On a Marché sur la Lune, Casterman, 1954
- L’Austronautique, Alexandre Ananof, F.Brouly, J. Fayard et Cie, Paris, 1950
- Entre Terre et Ciel, Réalités- Visions d’avenir, Auguste Piccard, Editions D’ouchy, Lousanne, 1946
- Notre Amie la Lune, Pierre Rousseau, Librarie Hachette, Paris, 1943
- L’Homme parmi les Étoiles, Bernard Heuvelmans, Gérard Delforge, 1944
- Hergé, Pierre Assouline, Gallimard, 1998
- German Research in World War II, Leslie E. Simon, John Wiley & Sons, Inc, New York, 1947
- Mais où est donc le temple du Soleil?, Enquête Scientifique au Pays d’Hergé, Roland Lehoucq et Robert Mochkovitch, Flammarion, Paris, 2002
- Les Amies de Hergé, n.29, Juin, 1999
- Les Amis de Hergé, n.39, Novembre 2004
Comunicação realizada no dia 23 de setembro de 2011 nas 1.as Conferências de Banda Desenhada em Portugal, realizadas no Institut Français du Portugal, sob organização de Pedro Moura.
Artigos realizados por colaboradores do Bandas Desenhadas.