A compilação da segunda série de Criminal, com Os Mortos e os Moribundos e Uma Noite Má.
Outro dos 5 lançamentos da G. Floy em dezembro é Criminal: Livro Dois – Os Mortos e os Moribundos / Uma Noite Má, da autoria de Ed Brubaker e Sean Phillips. Reúne a 2.ª série norte-americana de Criminal, originalmente publicada em 7 números nos EUA pela chancela Icon da Marvel, entre fevereiro e novembro de 2008, correpondendo atualmente aos volumes 3 e 4 em capa mole editados pela Image.
Se a capa corresponde ao 3.º trade paperback da Image, a reunião da segunda série num único volume, tal como a G. Floy já tinha realizado para a primeira série, é herdeira das prévias compilações em capa dura deluxe editions da Icon. Na verdade, aquelas compilaram a primeira série e metade da segunda série no primeiro volume, seguidas da segunda metade da segunda série, bem como as terceira e quarta séries (que a G. Floy planeia editar em 2020) no segundo volume. Se esteticamente apreciamos mais as deluxe editions da Icon, também editadas nos EUA com o formato 19 x 28 cm, há uma outra razão para fazerem sombra à edição nacional – a existência de extras, que, em Portugal, se resumem às capas das revistas.
As séries e minisséries de Brubaker e Phillips têm obrigado a que os leitores olhem com especial interesse para as revistas norte-americanas de BD, os denominados comic books. Já há mais de uma década, desde que a compilação de revistas em livro passou a ser quase praticamente um dado adquirido ao invés de algo veramente excecional, reservado a poucos títulos, que editores e autores têm-se defrontado com uma percentagem significativa de leitores que não adquire as séries em fascículos e aguarda pelo livro – e, entre estes, também há quem aguarde pela simples compilação em capa mole, por uma edição em capa dura ou por uma edição luxuosa de maiores dimensões e repleta de extras.
Numa tentativa de inverter a tendência dos extras nas edições mais luxuosas e valorizar mais a publicação em curso das séries em fascículos, Brubaker e Phillips têm colocado nas revistas das suas diferentes séries artigos de vários autores não necessariamente diretamente ligados à história narrada naquele número, mas sobre diferentes temáticas ligadas ao género bordado, época retratada ou outros assuntos. Esses artigos não são apresentados posteriormente nas antologias (ou é apenas selecionado um ou outro), para desespero dos seus fãs que anseiam por edições integrais das suas obras, não tendo outra hipótese se não a de adquirir as revistas, caso desejam ter esses artigos na sua posse.
Dito isto, que generosa quantidade de extras é então colocada nas deluxe editions da Icon supramencionadas? São cerca de 50 páginas em cada volume, onde constam histórias curtas da série elaboradas para diferentes contextos, incluindo trailers em banda desenhada da série, bem como as ilustrações de Phillips em todo o seu esplendor para os artigos supramencionados não reproduzidos, um ou outro artigo selecionado, páginas sobre o processo de trabalho, desde o argumento à página final, posfácios…
Para além dos extras, a apresentação das obras de Brubaker e Phillips em diferentes suportes, tem vindo a alimentar periodicamente, em conjunto com muitas outras obras de diferentes autores, a discussão académica sobre diferentes suportes gerarem diferentes experiências e influências na leitura da mesma. Na verdade, quando a arte se cruza com entretenimento, tem sido frequente a existência de diferentes versões para certas obras. Por exemplo, na música, há muito que canções mais longas apresentam uma radio edit mais curta ou com letra censurada, passível de ser transmitida na rádio. No cinema, alguns filmes apresentam diferentes versões, com lançamentos por vezes acompanhadas de hype, outras vezes quase camuflados (versões censuradas para televisão, por exemplo).
Na banda desenhada, por vezes existe a produção de uma nova versão, como também o realizaram Brubaker e Phillips com Bad Weekend, numa versão remasterizada e expandida dos #2-3 da nova série de Criminal para a Image. No entanto, frequentemente as novas versões não estão ligadas aos autores mas sim à própria indústria de edição norte-americana de banda desenhada. As séries são publicadas em revistas agrafadas, lançadas em capítulos, obrigando a uma leitura repartida (com periodicidade frequentemente mensal), com anúncios, como um produto de entretenimento para as massas, descartável. Já a compilação em livro, posteriormente editada, retira quase sempre os anúncios, apresenta mais informação (como, p.e., um prefácio), separa aquela história em capítulos da restante série, tornando-o mais semelhante a uma graphic novel original (leia-se livro de BD não publicado previamente em revistas, para os que não gostam de desnecessários anglicismos e neologismos) e a lombada permite, inclusivamente, uma exposição na livraria que a revista não consegue ter. Existem ainda as edições de colecionador, em capa dura, sem anúncios, frequentemente de maiores dimensões e repletas de materiais extra, como referimos.
Já mencionámos que Brubaker e Phillips utilizaram como estratégia a inclusão de extras nas revistas para valorizar esses produtos per se. No entanto, os diferentes suportes das suas obras geram as mesmas questões que as demais séries de comic books compiladas em livro. Com a retirada de anúncios e/ou formatação dos livros, não é invulgar que os pares de páginas não correspondam entre as diferentes versões. Ou seja, é possível que numa versão tenhamos o par de páginas esquerda/direita A+B, seguida do par C+D, enquanto que noutra versão, encontramos o par B+C (a página A foi reproduzida no anterior par de páginas) , seguida da D+E. Se as páginas duplas, a menos que por erro, são reproduzidas justapostas nesses pares de páginas – o que por vezes obriga os editores a incluir páginas pretas ou outras soluções para não cortarem as páginas duplas a meio – nas obras que não se socorrem da página dupla, estas alternâncias de versões são algo frequentes. Não restam dúvidas que a alteração de quais são as 2 páginas que se encontram presentes no campo de visão do leitor, influencia a leitura, não só o ritmo narrativo da BD como o próprio tempo de leitura que o leitor experimenta. Apesar da orientação da leitura na BD estar extremamente bem definida, há, com alguma frequência, elementos na composição das páginas que obrigam os olhos dos leitores a experimentar uma ordem diferente da da narrativa, sendo momentaneamente atraídos para imagens cronologicamente posteriores antes de regressarem à ordem cronológica da própria narrativa. Tal é diretamente influenciado pelas 2 páginas que estão disponíveis no campo de visão e as experiências serão diferentes se se ler o par de páginas A+B, seguida do par C+D, ou, se pelo contrário, a página B em vez de se encontrar à direita da A, se encontrar à esquerda da C.
Isto levanta diversas questões sobre o controlo dos autores sobre as diferentes edições, dificultando não só as intenções dos autores na apresentação propositada de um conjunto de par de páginas, bem como, na falta de informação, a dos leitores saberem se existia e qual era a apresentação originalmente pretendida pelos autores. Inclusivamente, o próprio processo de colorização das páginas está frequentemente relacionado com as páginas que se encontram justapostas e aquelas que estão distanciadas pelo virar da folha, podendo perder o propósito original nas diferentes versões.
A versão nacional do Livro Um apresenta, por exemplo, uma versão diferente (quais as páginas esquerdas e direitas) da referida deluxe edition da Icon, não acontecendo tal com o recentemente editado Livro Dois.
Quanto a Brubaker e Phillips tornaram-se, no espaço de uma década, um duo criativo extremamente eficaz ao transpor para a banda desenhada norte-americana o crime, mistério e o noir, influenciados também pela própria pulp fiction norte-americana, apesar de ambos aos autores referirem diversas influências europeias nos seus trabalhos, ou não tivesse a indústria norte-americana nas passadas décadas demasiado focada no subgénero de super-heróis para permitir grandes voos a outros géneros. Este género afasta-se claramente do maniqueísmo super-heroístico; os protagonistas de Brubaker e Phillips apresentam virtudes e defeitos, frequentemente reagindo aos acontecimentos que lhes ocorrem num ambiente degradante, uma teia complexa que evidencia a fragilidade humana e onde a vida humana tem pouco valor. Nesse sentido, se no Livro Um, o protagonista da primeira história (Cobarde) era sem dúvida o mais conseguido e original da primeira série de Criminal, no Livro Dois, tal encontra-se na segunda história (Uma Noite Má), facilitado pela experimentação mais ousada com a mistura do noir e da própria banda desenhada referida na série, “Frank Kafka Detective Privado”.
Quanto a esta tira de BD inserida na série, congratulamo-nos que o Livro Dois tenha corrigido o erro do Livro Um, onde o título da tira era Franz Kafka, apesar dos restantes personagens chamarem o protagonista de Frank. É verdade que se trata de uma homenagem dos autores ao escritor Franz Kafka, mas a edição portuguesa levou a homenagem à letra no primeiro volume. Corrigido o problema no miolo do Livro Dois, verificam-se ainda resquícios do problema na sinopse na contracapa do livro, onde o detetive privado é novamente denominado de Franz em vez de Frank.
Mas estas pequenas gralhas e outras semelhantes (as ocasionais palavras não ou mal acentuadas, palavras em falta, palavras mal divididas, etc), são já habituais na G. Floy, a precisar de ser mais cuidadosa na tradução e/ou revisão, bem como uma aparente inclinação para termos mais utilizados no Brasil que em Portugal (“planejar” em vez de “planear”, “chui” em vez de “bófia”, “dupla” com o sentido de “duo”, “chance” em vez de “oportunidade / hipótese / probabilidade”…). Mais importante é o problema de impressão de algumas páginas do Livro Um (desconhecemos se generalizado ou limitado a certos exemplares; cf. pág. 193, 196-197 ou 200-201, p.e.) não surgir no Livro Dois.
Se Bernard Krigstein (1919-1990), Johnny Craig (1926-2001), Alex Toth (1928-2006), Carlos Sampayo (n. 1943) & José Antonio Muñoz (n. 1942) ou Frank Miller (n. 1957) parecem ter sido óbvias influências para os autores, num curto espaço de tempo Brubaker e Phillips tornaram-se dois nomes incontornáveis na história da BD norte-americana, com sucesso junto da crítica e público a cada novo trabalho. Nesse sentido, a aposta da G. Floy na publicação deste duo criativo é de congratular enquanto estratégia editorial, revelando uma qualidade mais equilibrada que os altos e baixo de Millarworld, por exemplo.
Em Criminal, os autores têm a hipótese de construir um universo próprio, onde protagonistas de umas histórias se tornam personagens secundários de outras e vice-versa, onde se avança e retrocede cronologicamente ao sabor das histórias contadas e onde cada arco tem o cuidado de ser fechado, apesar de permitir um entendimento mais macro ao leitor de toda a série. Estas e outras técnicas narrativas têm permitido fazer de Criminal uma série de sucesso, encontrando-se ainda em publicação – com diversas interrupções – após 13 anos.
Quanto à existência de chamadas na capa, em forma de resenha elogiadora, tal como noutras publicações da G. Floy, além da poluição visual, parecem-nos desnecessárias, em especial quando retiradas de sites anglófonos não reconhecidos pela crítica e/ou academia, de fãs para fãs ou de estagiários à procura da sua primeira citação ou valendo-se de técnicas de clickbait.
Eis a sinopse da editora:
No segundo volume de Criminal, Brubaker e Phillips servem-nos um conjunto de histórias que exploram os limites do noir e da narração visual.
Em Os Mortos e os Moribundos, uma mulher que sofreu na pele a crueldade do mundo que a rodeia, regressa à cidade com uma ideia em mente apenas: vingança. E os seus melhores amigos, o filho do mais poderoso senhor do crime da cidade, e um pugilista em ascensão, vão ser apanhados no fogo cruzado da sua raiva. Uma única tragédia, contada de três pontos de vista diferentes.
Em Uma Noite Má, a mais estranha das histórias da série segue um autor de banda desenhada com insónias, Jacob, o criador da tira “Frank Kafka Detective Privado”, que vai ser apanhado num furação auto-destrutivo de sexo, mentiras e violência. Duas vontades de vingança opostas vão colidir numa história com um desfecho surpreendente.
Criminal é a obra maior de dois dos grandes criadores de comics modernos, Ed Brubaker (The Fade Out, Capitão América: O Soldado do Inverno) e Sean Phillips (The Fade Out, Marvel Zombies).
Ed Brubaker venceu cinco vezes os prémios Eisner e Harvey para Melhor Escritor. O seu trabalho com Sean Phillips em Sleeper, Criminal, Fatale, Incognito, Kill or Be Killed e The Fade Out: Crepúsculo em Hollywood (que venceu um Galardão BD do Comic Con Portugal) foi traduzido em todo o mundo, com grande sucesso crítico e comercial. Vive atualmente em Los Angeles com a sua mulher, onde trabalha em comics, filmes e televisão e, mais recentemente, na série da HBO Westworld e na série Too Old to Die Young, que cocriou com Nicolas Winding Refn.
Sean Phillips desenha comics profissionalmente desde os seus quinze anos, tendo vencido vários Eisner e trabalhado para a maioria das grandes editoras. Depois de ter desenhado séries como Sleeper, Hellblazer, Batman, X-Men, Marvel Zombies e The Dark Tower de Stephen King, tem-se concentrado em séries de criação pessoal sua, como Criminal, Incognito, Fatale e Seven Psychopats, entre outras. Sean Phillips vive no Reino Unido com a sua mulher e três filhos.
Criminal: Livro Dois – Os Mortos e os Moribundos / Uma Noite Má
Ed Brubaker & Sean Phillips
Editora: G. Floy
Páginas: 224, a cores
Encadernação: capa dura
ISBN: 978-83-65938-72-5
PVP: 25,00€
Fundador e administrador do site, com formação em banda desenhada. Consultor editorial freelance e autor de livros e artigos em diferentes publicações.