Dois Irmãos numa mistura de normas da língua portuguesa

Dois Irmãos numa mistura de normas da língua portuguesa

A edição nacional da obra de Moon e Bá, baseada no romance homónimo de Hatoum, mistura as normas europeia e brasileira da língua portuguesa.

A G. Floy parece ter-se esmerado na edição portuguesa de Dois Irmãos, um dos seus 5 lançamentos deste mês de dezembro, que consiste na adaptação de Fábio Moon e Gabriel Bá para banda desenhada do romance homónimo de Milton Hatoum. Apesar da edição nacional não apresentar, tal como a brasileira, nenhum tipo de material extra, a opção da editora pela capa dura e maiores dimensões – que permitem apreciar de melhor forma a planificação das pranchas e respetivos desenhos – tem como resultado uma edição mais agradável que a publicação original pela chancela Quadrinhos na Cia. da editora brasileira Companhia das Letras em 2015, em capa mole e com dimensões mais modestas. A apontar somente se teria a impressão da edição nacional, em que o preto não se apresenta tão escuro como na edição original.

A edição brasileira foi constando, desde julho de 2015, das melhores leituras dos diversos membros do site Bandas Desenhadas. Entretanto, foi galardoada com vários prémios – desde o Eisner para Melhor Adaptação Literária ao Harvey para Melhor Argumento Estrangeiro ou o Troféu HQ Mix para Melhor Adaptação. No entanto, há que o referir, não faz esquecer a obra-prima de Moon e Bá Daytripper (cuja edição brasileira da Panini foi inicialmente distribuída nos pontos de venda de periódicos portugueses em 2013, antes de vir a conhecer a edição nacional pela Levoir 3 anos mais tarde), uma das nossas leituras recomendadas para uma bedeteca ideal, mas é uma eficaz transposição do romance de Hatoum (recomendado pelo Plano Nacional de Leitura português) para a BD num delicioso contraste entre o preto e o branco. Aliás, esta não é a primeira vez que os gémeos realizam a adaptação de um romance para banda desenhada (em 2007, foi publicado a adaptação de O Alienista de Machado de Assis), tendo a própria obra original Daytripper sido influenciada, entre outras, pelas obras de Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás Cubas) e José Saramago (Ensaio sobre a CegueiraIntermitência da Morte).

Se tínhamos ficado desgostosos com a edição portuguesa de Daytripper apresentar a norma europeia da língua portuguesa ao invés da norma brasileira, apesar dos autores serem brasileiros e a banda desenhada ter lugar no Brasil, não houve outra hipótese para os leitores que não tinham adquirido a obra brasileira nos quiosques 3 anos antes do que aceitar a decisão da editora, devido à obra ter sido originalmente publicada em língua inglesa na Vertigo (DC Comics), não tendo sido negociados com a Panini os direitos do texto brasileiro da sua edição.

No nosso entender, as transposições de obras literárias originais de uma norma para outra da mesma língua – seja em prosa, poesia ou em banda desenhada – não só é desnecessária, como causa uma perda inevitável na apreciação da riqueza das variantes da mesma língua e, por muito que se tente evitar, altera sempre a experiência do leitor com a narrativa e/ou o próprio estilo do autor.

Deste modo, a nossa apreciação inicial de uma edição portuguesa mais luxuosa da BD Dois Irmãos enquanto livro-objeto, foi rapidamente manchada quando nos defrontámos com uma série de decisões editoriais das quais discordamos.

A primeira foi a transposição da norma brasileira para a europeia do texto da narração. Saliente-se que a editora tem o cuidado de referir que esta alteração foi feita com a autorização e aprovação do próprio Hatoum. De qualquer modo, o leitor nacional, sem alternativa e acesso à edição brasileira, ter-se-à, mais uma vez, de resignar com esta decisão editorial, concorde ou não com a mesma. A verdade é que o trabalho foi entregue ao argumentista André Oliveira, com experiência prévia na adaptação da norma brasileira para a norma europeia da língua portuguesa nos mangas editados pela JBC Portugal no nosso país. Comparem-se os dois textos e verifica-se o extremo cuidado que teve nesta adaptação. Essa função ingrata descaracteriza, porém, a voz do narrador, trazendo inclusivamente um tom mais formal à mesma.

No entanto, este formalismo nem sempre foi possível de manter, pois, simultaneamente, lutava-se contra algo inexistente numa eventual adaptação de um texto em prosa. O espaço que os caracteres ocupam em cada vinheta é limitado e soluções têm de ser encontradas quando não é suficiente. Deste modo, certamente que se estranha, a título de mero exemplo, a palavra original “mestres” ser substituída por “profes” para designar professores, numa narrativa passada em Manaus na década de cinquenta do século passado.

Mais inexplicável que realizar a transposição de uma norma para outra foi a decisão editorial em realizá-lo somente nas legendas, mantendo a norma brasileira nos balões de fala, “para preservar o «sabor» da língua portuguesa no Brasil” (sic). Esta mistura de normas numa única prancha não só não beneficia a leitura da banda desenhada, como é desprovida de qualquer sentido se nos lembrarmos que o narrador é o filho e/ou sobrinho de Omar e/ou Yaqub, os dois irmãos a que se refere o título.

Quanto à existência das notas explicativas para termos e expressões com as quais o leitor português eventualmente esteja menos familiarizado (quer nas legendas quer nos balões de fala), é, na era da informação, algo paternalista e, inclusivamente, sujeito à subjetividade de quem decide que termos merecem ter nota explicativa ou não. Criam a artificialidade de pausas na leitura não pretendidas pelos autores, estivessem as notas no rodapé – como acontece – ou estivessem alocadas em páginas no final do livro. Por outro lado, numa banda desenhada, ao contrário de um romance, uma nota na margem de uma prancha introduz mais um elemento visual, não pretendido aquando da criação da banda desenhada.

Por tudo o que foi dito, a expressão “less is more” do arquiteto Ludwig Mies van der Rohe é a que nos ocorre quando nos confrontamos com a edição portuguesa de Dois Irmãos. Ou com qualquer edição de uma obra literária brasileira em Portugal.

Eis a sinopse da editora:

Omar e Yaqub são irmãos gémeos mas, embora partilhem as mesmas feições, são completamente diferentes um do outro. E o amor possessivo de Zana, a sua mãe, vai agitar ainda mais o conflito entre ambos, até ao evento que irá desencadear o drama no centro deste relato… Yaqub, o “filho bom”, é enviado do seu Brasil natal para viver com familiares no seu Líbano ancestral, regressando cinco anos depois, transformado, a um país que para ele já é estranho, e a um irmão que ele continua a detestar. Estes segredos de família irão mergulhar o leitor numa saga sobre identidade, amor, perda, enganos e a destruição de laços familiares, ambientada em Manaus, na década de cinquenta.
Um dos livros mais importantes da literatura brasileira contemporânea, Dois Irmãos tem vindo a conquistar gerações de leitores desde a sua publicação. Foi com o mesmo entusiasmo desses leitores que os premiados autores de banda desenhada Fábio Moon e Gabriel Bá, também eles dois irmãos, embarcaram na missão de adaptar a obra de Milton Hatoum como romance gráfico. Ao mesmo tempo que preserva a força narrativa de Hatoum, esta adaptação evidencia o talento artístico de Bá e Moon. A partir do seu traço, a vida dos gémeos Yaqub e Omar ganha novos contornos épicos. A Manaus de Bá e Moon. feita de um jogo de luz e sombras, acolhe este drama que cruza gerações e, seja nos grandes planos ou nos mais ínfimos detalhes, instila no enredo original de Hatoum uma energia e vitalidade novas.

Milton Hatoum, nascido em Manaus em 1952, estudou arquitetura. Estreou-se na ficção com Relato de um Certo Oriente, publicado em 1989 e vencedor do prémio Jabuti de melhor romance do ano. O seu segundo romance, Dois Irmãos, em 2000, mereceu outro Jabuti e foi traduzido para oito idiomas. Com Cinzas do Norte, de 2005, Hatoum ganhou os prémios Jabuti, Bravo!, APCA e Portugal Telecom. Em 2008, publicou a sua primeira novela, Órfãos do Eldorado; em 2009, o livro de contos A Cidade Ilhada; e, em 2013, viu as suas crónicas reunidas em Um Solitário à Espreita. Em Portugal, estão editados pela Penguin Ramdom House/Companhia das Letras os seus romances Dois Irmãos, Relato de um Certo Oriente e A noite da Espera.

Fábio Moon e Gabriel Bá são irmãos gémeos e nasceram em 1976, em São Paulo. Publicaram o seu primeiro fanzine de BD em 1993. Formados em Artes Plásticas, criaram em 1997 o fanzine 10 Pãezinhos, que recebeu o prémio HQ Mix de Melhor Fanzine e de Artistas Revelação em 2000, ano em que lançaram o seu primeiro livro, O Girassol e a Lua. Em quase vinte anos, os dois têm produzido banda desenhada para o mercado brasileiro e internacional, e os seus trabalhos já foram publicados em doze idiomas. Em 2008, O Alienista, a sua adaptação do trabalho de Machado de Assis, recebeu o prémio Jabuti. O seu último livro, Daytripper (editado em Portugal pela Levoir), estreou em primeiro lugar na lista dos mais vendidos do New York Times, foi escolhido como uma das melhores Graphic Novels de 2011 pela revista Publishers Weekly e pela Amazon, ganhou os prémios Eisner e Harvey (Estados Unidos), o Eagle (Reino Unido), o prémio de melhor BD no festival Les Utopialles, em Nantes, e entrou na seleção oficial do Festival International de la Bande Dessinée d’Angoulême 2013 (França).

Dois Irmãos (baseada na obra de Milton Hatoum)
Fábio Moon & Gabriel Bá
Editora: G. Floy
Páginas: 232, a preto e branco
Encadernação: capa dura
Dimensões: 20,5 x 28,5 cm
ISBN: 9788365938756
PVP: 22,00€

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