Entrevista a Miguelanxo Prado: O Pacto da Letargia

Entrevista a Miguelanxo Prado: O Pacto da Letargia

Curta entrevista a Miguelanxo Prado, a propósito da edição de O Pacto da Letargia.

A edição da mais recente obra do galego Miguelanxo Prado faz-se conjuntamente em Portugal (Ala dos Livros) e França (Casterman), durante este mês de janeiro. O Pacto da Letargia (cf. sinopse e previews aqui), a primeira parte da “Trilogia do Tríscelo”, foi o mote para uma curta entrevista ao autor.

À conversa com Miguelanxo Prado

Nuno Pereira de Sousa: “O Pacto da Letargia” parece expressar alguma desilusão com a Humanidade e a preocupação com o futuro do ser humano enquanto espécie. É uma alegoria do mundo atual em que vivemos?
Miguelanxo Prado: Creio que nunca fiz uma obra que, de um jeito ou de outro, não tivesse um conteúdo alegórico do mundo em que vivemos. A minha motivação para criar, para fazer banda desenhada, é pensar conjuntamente com o leitor sobre o mundo que construímos. Mas, tal como quando produzi Stratos, tenho de clarificar: não é desilusão, não sou pessimista. Pelo contrário. No entanto, sou realista, porque para resolver os problemas há que reconhecê-los.

NPS: Para os leitores não familiarizados com os tríscelos e sua importância na Galiza, podes explicar sumariamente o que são e qual a sua origem?
MP: O tríscelo é um elemento central da cultura celta, comum a todos os países que têm essa componente céltica na sua história. Conhecemo-los já gravados em pedra desde 3500 a 3000 a.C., mas é especialmente na Idade de Ferro que o seu uso se estende de forma generalizada. Há muitas interpretações que falam dos três tempos – passado, presente e futuro -, do equilíbrio entre corpo, mente e espírito, da evolução e crescimento perpétuo… Seja como for, é claramente um símbolo com significados transcendentes.

NPS: Concordas que na obra há uma crítica implícita ao mundo académico, com mais interesse na carreira e questões particulares do que na descoberta e partilha de conhecimento?
MP: He, he… Não me interessava fazer uma crítica específica ao mundo académico… No entanto, tanto nós, os artistas, como os académicos, somos com muita frequência profundamente ridículos e merecemos que se riam de nós. Disto isto, concordo que o mundo académico peca com frequência de soberba intelectual e acomodação de funcionários públicos. Mas não é um pecado exclusivo da universidade…

NPS: Este é o primeiro livro de uma trilogia, uma “grande fábula sobre o bem, o mal e a culpabilidade”, denominada Trilogia do Tríscelo. Os protagonistas desta obra regressarão nos seguintes livros?
MP: Mmm… Não sei se respondo a esta questão… Bem, sim. As três histórias são independentes, autoconclusivas, mas formam, uma vez ordenadas, uma totalidade coerente. Alguns personagens aparecem de novo noutros instantes da sua existência. Posso adiantar, sem atraiçoar a história, que o livro seguinte fala das origens deste Pacto da Letargia e, como neste livro já se disse a certa altura, do Pacto anterior, o da Custódia.

NPS: A opção por um género de fantasia e aventura deixa menos espaço para a descoberta do eu e os relacionamentos a dois presentes noutras obras tuas. Foi uma opção consciente ou uma consequência da história que querias narrar?
MP: Tinha realmente vontade em explorar o género de aventura e me afastar um pouco dos conflitos psicológicos dos indivíduos e as suas relações “a dois”, como dizes. Interessava-me mais falar de assuntos mais coletivos e, particularmente, do binómio culpa / responsabilidade de uma forma global. A semente da história foi uma cadeia de suposições: quem conta a história, acomoda-a aos seus interesses; o triângulo do bem, o mal e o ser humano no meio está em todas as religiões, em todas as crenças; os seres malignos (os demos, nas nossas culturas) são na realidade os culpados das maldades feitas pelo ser humano; mas isso é o que dizem… os próprios seres humanos! Ergo

NPS: O trabalho gráfico desta banda desenhada é impressionante, com mais de 100 páginas cuidadosamente elaboradas. Quanto tempo demorou aproximadamente cada uma das etapas? Que materiais utilizaste?
MP: Obrigado! O tempo total, entre a escrita do argumento, planificação, desenho e pintura, foi de dois anos e meio. No argumento, trabalhei três ou quatro meses. O restante tempo foi dedicado à realização gráfica. Como o meu argumento fica sempre muito definido no meu sistema de construção da obra, posso ir trabalhando na planificação, no desenho e na pintura por grupos de 8 a 10 páginas. Nunca fiz como muitos dos meus colegas, que primeiro desenham todo o livro e somente depois lhe dão cor. É possível que a diferença seja justamente essa, pois para mim “pintar” não é “dar cor”… No meu modo de trabalhar, desenho e pintura são partes inseparáveis do mesmo processo. O desenho é feito a pluma, com tinta chinesa, e a cor em aguarela acrílica. Eu explico: os pigmentos são acrílicos, os mesmos com que estão pintados Traço de Giz ou Ardalén, mas trabalhados com técnica de aguarela, por transparências.

NPS: És o Diretor do Salão de BD “Viñetas desde el Atlântico”, realizado anualmente em agosto na Corunha. Para os portugueses que nunca o visitaram, o que podes destacar na edição de 2020 para os aliciar a uma visita?
MP: Temos muitos visitantes portugueses – e não só do Norte, com quem naturalmente a Galiza tem uma relação muito forte. Não posso adiantar conteúdos da edição deste ano, mas será, como sempre, uma visão da atualidade da criação na BD dos dois lados do Atlântico através de oito ou dez artistas, com as suas exposições e palestras. Agosto, férias, boa banda desenhada, a Torre de Hércules (Património da Humanidade), aproveitar para fazer uma excursão a Santiago de Compostela, peixe e marisco galegos, alvarinho e godello… Que mais se pode pedir?

Miguelanxo Prado nasceu em La Coruña (Espanha), em 1958. Enquanto estudante de arquitetura, publicou o seu primeiro trabalho de banda desenhada no fanzine ‘Xofre’. Colaborou na década de 80 com diversas publicações e revistas espanholas como ‘Creepy’, ‘Comix Internacional’, ‘Zona 84’, ‘El Jueves’, ‘Cairo’ e ‘Cimoc’. Estes trabalhos viriam posteriormente a ser compilados em álbum. Tendo por base um herói radiofónico, constrói com Fernando Luna o detctive privado Manuel Montano. Publicada pela primeira vez na revista ‘Cairo’ , e posteriormente em álbum com o título “O Manancial da Noite”, seria com esta comédia policial que Prado viria a obter o seu primeiro ‘Alph’Art para Melhor Álbum Estrangeiro’ no Festival Internacional de Angoulême, em 1991. Mas foi com “Traço de Giz” (1992), uma experiência de uma realidade impossível, com narrativa intimista e coloração magnífica, que Prado alcançou o maior reconhecimento pelo seu trabalho, obtendo um segundo ‘Alph’Art’ (1994) e inúmeros prémios a nível internacional.
Das suas inúmeras obras, espalhadas entre outras, pela ilustração, pintura ou cinema de animação, destacamos “Carta de Lisboa” (obra de 1995, que em Portugal conheceu 3 versões bilingues), a qual resulta de uma viagem a Portugal com o escritor Éric Sarner, a adaptação a BD de “Pedro e o Lobo” de Prokofiev (1996), ou, em 1996, a ilustração do livro “A Lei do Amor” de Laura Esquível. Refira-se ainda, em 1998, uma participação na série animada ‘Men in Black’, para a qual desenhou os personagens.
Em 2003, colaborou com Neil Gaiman em “The Sandman: Endless Nights – Dream: The Heart of a Star”. O seu filme de animação ‘De Profundis’, no qual trabalhou durante quatro anos, estreou em 2007 e foi seleccionado para os prémios Goya.
Prado é desde 1998 director do Salão de BD “Viñetas desde el Atlântico” (A Coruña) e em 2009, ingressa na Real Academia Galega de Belas Artes.
A sua banda desenhada ‘Ardalén’, publicada em 2012, volta a granjear-lhe vários prémios. Ardalén é, até à data, a sua obra mais extensa e, segundo o próprio, “é uma história sobre a memória pessoal. A memória como essência da nossa existência, da percepção da nossa própria vida.”
“O Pacto da Letargia” (2020), cuja edição portuguesa da Ala dos Livros é publicada simultaneamente com a edição francesa, é a sua mais recente obra de BD.

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