Isabelle Felix inicia uma nova rubrica periódica no Bandas Desenhadas – resenhas de obras de banda desenhada brasileira. A primeira BD escolhida é O Cramulhão e o Desencarnado, de Lillo Parra e Gilmar Machado.
Por Isabelle Felix
No Brasil, existe uma curiosa relação entre a religião católica e o deboche. Principalmente quando se trata do diabo. Este ser, que deveria ser temido a todo custo, muitas vezes se torna apenas um cobrador de dívidas. E que pode ser enganado no melhor estilo do “malandro”.
Essa é uma das sensações ao se ler a BD O Cramulhão e o Desencarnado, com roteiro de Lillo Parra e arte de Gilmar Machado, lançada de forma independente, financiada com o apoio do ProAC – Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo, num concurso de apoio à publicação de Histórias em Quadrinhos, como as chamamos cá. A edição tem 136 páginas e capa cartonada com orelhas.
No interior de São Paulo, as pessoas falam um português com sotaque específico, meio carregado, no qual se corta o final das palavras. Isto tem um charme todo dele. Mas o que realmente serve de identificação de nascença é a forma como se segura o cigarro e o xingamento proferido em um momento de raiva. Pois é assim que Maria Izabel – ou Izabé – é apresentada. E ela está voltando para sua cidadezinha de nascença por causa de um enterro.
E nessa cidadezinha todo mundo se conhece, sabe e fala da vida dos outros. A reza é decorada na ponta da língua e, entre um avemariacheiadegraça e um painossoqueestaisnocéu, se comenta a chegada de Bartô, o irmão do defunto, o Arcebíade, que nada sabia da morte. Ou talvez tenha só esquecido. Afinal, com a idade chega o esquecimento.
A reza só é interrompida com a chegada de Marizabé. Filha pródiga da cidade, neta de Arcebíade, é um absurdo que tenha voltado logo para o enterro do avô que ela largou, comentam as carolas. Não que seu tio Bartô ache ruim. Pelo contrário, ele gosta bastante.
Mas quem fica mesmo indignado é Odilon, primo de Marizabé, também se sentindo injustiçado pelo abandono e triste pelo evento. Só que tio Bartô já falou em alto e bom som que Arcebíade não morreu foi é nada! E ele pode provar.
Assim, desse reencontro causado por um aparente infortúnio, as lembranças infantis e juvenis são reavivadas, e fatos são desvendados neste conto de realidade fantástica.
Para ler e entender a obra, vale dizer que Cramulhão é uma alcunha do diabo do interior do Brasil. A trama é construída por meio de lembranças e relatos, contados de forma oral, parecendo lendas, mas que podem ser reais, brincando com esse ir e vir, e forçando o leitor a se desprender das regras de uma narrativa linear e comum. As peças vão sendo encaixadas aos poucos e explicam bem como que Arcebíade morreu (ou não), mas de forma leve, engraçada, divertida e deliciosa.
Muito além de falar de morte e diabo, a obra mostra escolhas de vida, de tomar decisões que podem ser arriscadas, dolorosas, solitárias, mas necessárias para se chegar aonde se almeja: na felicidade. Então, tem vezes que se casar com quem se ama é um desafio; em outras, seguir sua natureza é que te completará como pessoa, mas isto poderá trazer dor e separação. Mas a vida é assim. Inclusive, também, por ser composta pela morte.
Quanto à fantasia apresentada, ela lembra muito a da obra Auto da Compadecida, do mestre Ariano Suassuna. Nela, acontece um julgamento da alma de alguns moradores da cidade. O demônio faz o relatório para Jesus Cristo, enquanto julgam se vão para o céu ou inferno, tendo ainda Nossa Senhora para apelar.
Em O Cramulhão e o Desencarnado, o demônio sempre vem para cobrar suas dívidas e se “veste” de muitas pessoas, tratando cada uma da melhor forma que acha para conseguir o que quer: seu pagamento. Esse uso da fantasia católica foi o toque para despertar a aventura com humor, conduzindo o guião para um início em que o leitor se sente perdido, realmente viajando para “onde Judas perdeu as botas” até chegar a um final de redenção. Com direito a cenas de pós-créditos!
Pois além do fim, entre um extra e outro, há curtas continuações que contam o desenrolar da história para alguns personagens específicos, sempre com um toque de humor. Isso mostra um trabalho editorial pensado pelo autores, que remete aos filmes da Marvel.
Quanto à arte, ela segue o fio do humor e da leveza do roteiro. Com um traço estilizado, Gilmar cria personagens com partes dos corpos exagerados, deformados, mas harmoniosos e expressivos, auxiliando na narrativa. As cores são fortes, sem poupar para dar vida a esta família e ao Cramulhão.
Em meio à variedade de corpos criados na estilização, tudo ganha mais movimento: desde o fechar abrupto de uma porta a uma troca de olhar de compreensão e assombro. Inclusive, os olhos dos personagens podem ter muitos traços ou ser compostos de uma simples bolinha, mas sempre com profundidade.
E ainda no exagero da expressão, o leitor reconhece feições humanas que dão peso, som, ritmo, alegria e dor àquilo que está escrito nos balões. Por isso, é como se esta BD tivesse uma trilha sonora própria, e não só de música, mas também com efeitos sonoros.
O Cramulhão e o Desencarnado proporciona uma viagem ao interior do Brasil, a uma família como tantas, meio desajustada, mas com muito amor… e uma visitinha ao inferno.
O Cramulhão e o Desmorto
Lillo Parra & Gilmar Machado
Editora: edição de autor
Páginas: 136, a cores
Encadernação: capa mole com badanas
Dimensões: 205 x 275 mm
ISBN: 9788591943616
PVP: R$ 48,00 (Brasil)
O artigo é escrito na norma brasileira da Língua Portuguesa.
Artigos realizados por colaboradores do Bandas Desenhadas.