“Origens Secretas” de Black Hammer e o seu autor.
Desta vez, peguei num dos livros de um dos maiores talentos emergentes dos últimos anos. Jeff Lemire é já um dos nomes mais populares no meio da banda desenhada, facto não injustificado. Os últimos anos parecem ter sido de ouro para o multipremiado canadiano e a obra que fui conhecer foi aquela que lhe garantiu o seu primeiro prémio Eisner, o primeiro volume de Black Hammer, intitulado Black Hammer: Origens Secretas.
Tendo começado a sua publicação original em junho de 2016, pela editora Dark Horse Comics, foi em abril de 2019 que a Levoir publicou este primeiro volume na versão portuguesa. Black Hammer: Origens Secretas compila os primeiros seis números da série.
Esta foi uma série que manteve guardada durante uns bons anos desde que viu o seu processo de criação começar até ter sido finalmente publicada. Lemire tinha intenção de a publicar assim que terminasse a produção Essex County, mas a verdade é que, com vários percalços pelo caminho, a série acabou por vir a público apenas em 2016 (cerca de oito anos depois de ter sido originalmente criada).
Black Hammer terá sido a tentativa de Lemire de escrever uma BD de super-heróis, fugindo ao estigma das grandes editoras e, portanto, mantendo um certo paralelismo com as produções independentes com que trabalhava na altura. Como o próprio refere, estes não eram super-heróis “a sério” – mal sabia que lhe viriam a valer um dos mais importantes prémios na nona arte.
Escrever uma BD de super-heróis que seja interessante e original nos dias de hoje, em que estamos assolados por, já tantos, personagens originais e diferentes no género, não é tarefa fácil. Lemire abordou esta obra com essa consciência e, por isso, o seu foco prendeu-se nas relações pessoais entre personagens, ao invés dos focos mais típicos nas lutas pela justiça.
Com cinco personagens principais tão distintos entre si, Lemire encontrou aqui forma de balancear cinco perspetivas diferentes e é disso que o primeiro volume trata. Uma introdução aos personagens, cada qual com a sua própria história, o seu próprio número (sendo o primeiro dedicado a uma introdução geral e os restantes cinco, então, dedicados aos heróis). Apesar de todos terem características bem díspares, quer seja fisicamente quer seja quanto às suas personalidades, Lemire juntou-os a todos numa espécie de família disfuncional, onde vão ter de aprender a lidar uns com os outros.
Uma das mais importantes questões a evitar numa nova história de super-heróis é, a meu ver, o uso de clichés. Lemire não quis saber da minha opinião e clichés não faltaram em Origens Secretas. O uso dos clichés é, todavia, uma clara demonstração da sua capacidade argumentativa. Manipulando os clichés, Lemire apresentou em Black Hammer um mundo totalmente novo e diferente, onde esses mesmos clichés são sempre secundários e, geralmente, atribuídos a situações das vidas passadas dos personagens. A grande era de ouro dos super-heróis já passou e os heróis em Black Hammer, embora pareçam não ter exatamente consciência disso, sabem-se “ultrapassados” e, portanto, mantêm uma presença discreta no mundo. Neste volume, não sabemos exatamente o que se passou e Lemire vai alimentado a curiosidade aos poucos, enquanto vai também desvendando alguns dos mistérios.
Apesar do argumento ser consistente e a arte também, o primeiro volume em si não me pareceu uma obra tão genial quanto esperava. Não deixa de ser uma obra bastante divertida, com os subtis toques de humor a cortar alguns dos momentos mais pesados e sérios, mas não é, ainda assim, uma história fenomenal. O suspense construído no final do volume também não me suscitou uma enorme curiosidade para saber o que acontecerá a seguir, mas a escrita de Lemire e o universo aqui criado são pontos suficientes para querer conhecer o seguimento do livro que, como disse, entretém. Espero, claro, que o segundo volume se revele mais inspirado e que Lemire me convença de que valeu a pena continuar a ler a série e, conhecendo já um pouco do seu trabalho, acredito, sinceramente, que me venha a surpreender ainda muito.
Não podia terminar o artigo sem referir o trabalho de Dean Ormston e Dave Stewart na arte do livro. Confesso não ter ficado o maior fã da arte de Ormston, mas o primeiro volume foi bastante agradável e, como tal, não posso desconsiderar o seu traço. Quanto a Stewart, nada a apontar senão coisas positivas. Um dos coloristas que mais tenho em referência na banda desenhada moderna, responsável por inúmeros números de algumas das mais fantásticas séries de Mike Mignola na Dark Horse Comics como: Hellboy, B.P.R.D., etc. Vir-se-ia a juntar novamente a Jeff Lemire, e dessa vez também a Andrea Sorrentino, na equipa criativa do aclamado e premiado Gideon Falls, sem dúvida um dos mais soberbos trabalhos por si desenvolvidos.
Rafael Marques tem 24 anos durante o ano de 2020. É músico em Lisboa e faz disso a sua profissão. A restante parte do seu tempo é dedicada ao sono, ao gaming e à leitura de banda desenhada, que terá descoberto como uma das suas maiores paixões entre 2018 e 2019, quando se envolveu numa relação com uma artista/ilustradora. Rafa é um apaixonado por tudo aquilo em que trabalha. Em segredo, escreve argumentos para banda desenhada, que são executados em belas pranchas pela sua companheira. Ainda sonha um dia vir a ser mordido por uma aranha radioativa…