Uma análise sobre a transposição do Homem de Ferro para o cinema.
Por Nuno Soler
Uma boa história só é preciso ser contada uma vez.
Ela fica connosco e continua a afetar-nos muito depois de a termos ouvido, ou lido, visto ou experienciado. Uma boa história é muito difícil de esquecer.
Mas se isto é verdade como explicamos o nosso fascínio de vermos a mesma história ser contada vezes sem conta? O que nos interessa em cada iteração de uma velha narrativa, que por si já é contida, acabada e sem precisar de resolução?
O que faz de uma adaptação ser uma nova lufada de ar fresco?
Uma boa adaptação faz exatamente isso; dá a uma conhecida história um sopro novo. Tudo começa com a curiosidade de experimentar, de moldar ou de revisitar o que uma história tem para oferecer. Mas nem todas as adaptações captam a essência do original.
Como sabem, o dom de adaptar uma obra é um dom muito específico. Há várias formas de adaptar um livro, um artigo de jornal, ou uma banda desenhada num guião sólido, com o seu próprio cunho. Para mim há uma adaptação que conseguiu capturar a essência da obra original, contando uma história nova.
IRON MAN (2008) teve a impossível tarefa de começar um universo cinematográfico do zero. O filme não deveria ter funcionado tão bem como funcionou. Sem dúvida, Robert Downey Jr. foi uma inspiração de casting. O ator, com um carisma nunca antes visto num filme de super-heróis, eleva o material a outra dimensão.
Mas é o guião, a adaptação do material de origem que torna este filme num “case study” de como adaptar uma banda desenhada ao cinema. É pura mestria.
Como é que se adapta então uma história de origem com mais de 40 anos de enredo num filme fluído, com um herói empático e um final que carrega peso temático?
Está tudo na estrutura.
Adaptar 40 anos de material para um filme de hora e meia é uma tarefa dantesca, mas neste caso só é bem-sucedida pela forma como o filme está estruturado. Ao invés dos três atos que geralmente se atribuem a guiões de cinema para dividir uma história, os guionistas de IRON MAN decidiram dividir a história em cinco atos.
Esta técnica torna uma história de origem que podia cair na tentação de ser um cliché e abusar da fórmula já vista em dezenas de outros filmes em algo único, e acima de tudo entusiasmante.
Vamos ver como os guionistas estruturaram este guião de modo a nos dar a conhecer o primeiro herói da nova era renascentista da Marvel.
O Ato 1 é a parte da história mais complicada. Geralmente só tem vinte e cinco páginas e nesses supostos vinte e cinco minutos é necessário mostrar; quem é o protagonista, antagonista, o tema da história, o enredo (ou pelo menos o set-up deste) e construir um mundo credível sem esquecer as cenas de ação. Parece muita coisa para fazer em vinte e cinco páginas, certo? Mas estes elementos são necessários para cativar o espectador e pavimentar a estrada que se tem de percorrer ao longo da história.
No primeiro ato temos uma breve introdução de quem é Tony Stark e o pré-conflito que ele tem com o mundo; ele é um playboy arrogante que não se preocupa com ninguém, fornecedor de armas amoral.
O Ato 2 começa quando Tony é capturado e levado para um acampamento terrorista onde ele descobre a dura realidade que as suas armas criam. Aqui vem a pergunta dramática do filme: “Será que Tony Stark quer ser um agente para o bem ou para o mal?”. Com esta nova visão do mundo e face à iminente ameaça à sua vida, Tony decide criar um protótipo que o ajuda a escapar e a entrar no…
O Ato 3 é o ponto de viragem. O Tony volta para casa e toma uma decisão moral. Ele fecha todas as operações dirigidas a construir armamento, e muda assim o rumo da sua vida. Mas Tony não se fica por aí. E decide construir um novo fato. Aqui o protagonista entra em conflito directo com o verdadeiro antagonista da história, Obadiah.
Este personagem revela-se aqui como o mau da fita por detrás do rapto de Tony. Este tipo de revelações é normalmente relegado ao último ato de um guião, mas ao colocar este “twist” a meio da história cria uma maior propulsão narrativa e novos caminhos para o conflito.
É também no terceiro ato que Tony experimenta o seu novo protótipo. Ele ainda não é o Homem de Ferro. Mas estes pequenos desenvolvimentos são vitais para que a história seja credível, baseada na realidade, de modo a criar maior imersão com o espectador. O mundo tem de parecer real para haver uma maior identificação. Isto num filme em que um homem voa dentro de um pedaço de metal é de extrema importância.
No Ato 4, começa a escalada de conflito, tudo o que foi plantado nos últimos três atos começa a dar frutos. Tony Stark usa o fato num ambiente de guerra e tem um discurso moral – ligado à sua questão dramática – com Rhodes, onde admite as suas falhas pessoais e o seu plano para as corrigir. Tudo o que foi plantado no conflito pré-existente do Stark é aqui subvertido. Ele não é mais o personagem arrogante que conhecemos no primeiro ato e está pronto para voar.
É de notar que estes desenvolvimentos de personagem se baseiam nas cenas de ação que o filme tem para oferecer, característico do género cinematográfico que se baseia em efeitos especiais para vender. O importante é que estas cenas de ação informem quem é o personagem e o que o motiva. Não são cenas gratuitas ou desnecessárias. Fazem parte do arco do próprio personagem. É algo que muitos guiões dentro do género se “esquecem” de fazer.
Num guião menos conseguido, estas cenas de ação viriam logo no início do segundo ato numa história com apenas três atos. Isto é indicativo que o autor da história teria receio que o espectador não estivesse interessado o suficiente no protagonista ou nas suas motivações. Mas tal como o Tony Stark nos mostra nesta história, tudo o que precisamos é de carisma e motivações sólidas para nos cativar ao longo do filme.
Como as espetaculares cenas de ação do Tony Stark a usar o protótipo só vêm depois da revelação do verdadeiro vilão, o nosso desejo que o protagonista seja bem-sucedido aumenta. Estamos ativamente a torcer para que o nosso herói consiga superar os desafios que se avizinham. E é nesta altura que sentimos que a história foi bem adaptada. Conhecemos o mundo e mesmo assim não sabemos a sua resolução. Óbvio que sabemos que o herói ganha no fim, mas não sabemos como. O importante é sempre a viagem e não a meta de chegada.
O quarto ato é o mais curto da história. Conciso, directo e fresco, é um momento excitante da história onde o herói pode deitar tudo a perder se não for cauteloso. Ou como no exemplo deste filme, se confiar na pessoa errada.
Ato 5, o climax. Chegamos à conclusão/ resolução. O conflito entre Tony e Obadiah atinge um ponto de ebulição. E como uma boa adaptação deve ser, o conflito final é tanto físico como interno, é um conflito pessoal. Esta é a parte onde todas as peças se juntam para dar uma resolução que satisfaz, mesmo que a luta final seja mais simples que aquelas que estamos habituados a ver dentro do género.
Não é a destruição de cidades inteiras que queremos ver neste final, mas sim o momento em que Tony Stark se concretiza como super-herói. Esta cena de ação até é a menos interessante dos filmes que a Marvel tem produzido mas não importa. Estamos completamente investidos na personagem e na concretização das suas motivações.
E quando Tony Stark quebra o cliché de ter uma identidade secreta é-nos então oferecido um final realmente excecional e memorável.
Em termos de adaptação foi decidido relegar o arco amoroso de Tony Stark com Pepper Potts para segundo plano, o que numa história de “origem” acontece com frequência. A personagem de Potts serve como âncora emocional ao nosso herói, quando Potts oferece a Tony o reactor com a inscrição: “Proof that Tony Stark has a heart.”
E esta é a temática do filme. Um arrogante playboy que olha para além do seu mundo mesquinho e entende que tem um papel crucial para mudar esse mundo para o bem.
E esta é a essência de uma boa adaptação.
Resumir num conceito 40 anos de enredos uma só temática. Onde tudo nos é familiar, mas com uma visão totalmente nova. Uma visão propulsiva e orgânica, onde cada cena tem como objetivo mover a história para a frente, sempre com as motivações dos personagens focadas no centro. Uma adaptação não tem de ser fiel à obra original, mas sim à própria história que quer contar. É ser-se honesto na visão e no conceito. E é essa honestidade que faz desta história difícil de esquecer.
Como todas as boas histórias são.
Artigos realizados por colaboradores do Bandas Desenhadas.