Fantasia ou ficção científica? Análise aos primeiros 4 volumes de Saga.
Após o enorme sucesso de vendas nos EUA de The Walking Dead, desde 2003, só quase 10 anos depois, em 2012, a Image Comics viria a publicar uma série de potencial quase igualável. É de Saga que falamos neste artigo.
Uma série um tanto atípica, que não desenvolve uma premissa complicada e que sustenta a sua grande base na influência da ficção científica, uma fonte de onde beberam já tantas outras séries de banda desenhada desde há muitos anos.
Mas afinal, o que distinguiu Saga das outras obras? Qual foi o segredo do seu sucesso?
A sua publicação original começou em 2012 nos EUA, tendo chegado a Portugal, por edição da G. Floy, apenas dois anos depois, com o seu primeiro volume. O nome Brian K. Vaughan traz já consigo um legado na banda desenhada contemporânea, facto que atribui a esta série redobrada expectativa por parte dos fãs do autor.
Estava para começar a ler esta série há um ano, talvez dois. Li algures um artigo que referia Guerra das Estrelas como uma das maiores influências do autor para este livro e, perdoem-me a sinceridade, mas se essa era realmente a sua maior influência e se a BD se assemelhasse remotamente a Guerra das Estrelas, eu não tinha o mais pequeno interesse em conhecer. A verdade é que prefiro a referência a “Romeu e Julieta no espaço”, até porque me parece também uma comparação mais fiel.
As capas também nunca foram razão suficiente para me convencer a comprar os livros, embora muito bonitas, de facto. Fui sempre achando que havia séries contemporâneas mais interessantes até que, eventualmente, cheguei ao ponto em que já tinha lido tanto coisa boa e ainda não tinha sequer dado uma oportunidade a Saga. E pronto, decidi que estava na hora de o fazer. Confesso que os preços das edições da G. Floy foram também uma forte influência nessa decisão.
Como é uma série um bocado grande e consta que não viu o seu fim no nono volume, mas apenas o fim da primeira metade, resolvi dividir a primeira metade em duas partes e fazer dois artigos quanto a cada uma das respetivas.
Assim sendo, este artigo é referente aos primeiros 4 volumes da série.
A verdadeira grande diferença entre Saga e as outras bandas desenhadas do género ficção científica e/ou fantasia está no carisma da própria história. Estamos perante um livro de enredo simples, com diferentes espécies alienígenas, quase sempre antropomórficas, e viagens pelo espaço. A verdade é que, à medida que a leitura se desenvolve, toda a questão de que a premissa decorre no espaço e de que lemos um livro de ficção científica/fantasia fica um bocado esquecida. No fundo, temos um livro com todos os aspetos que dão a reputação ao género ficto-científico, mas a base do enredo é, na realidade, bastante humana, bastante “pés-na-terra” se assim o posso dizer.
Deparamo-nos com “criaturas” que podiam vir de contos, como Harry Potter ou As Crónicas de Nárnia, mas que habitam um vasto universo desconhecido, com planetas não muito diferentes do nosso. Com isto, quero dizer que os personagens não aparentam ter conceções superiores ou ideais estranhos ao leitor. Quaisquer espécies alienígenas, com as suas peculiaridades físicas, mantêm as suas crenças, personalidades e diálogos bastante semelhantes aos humanos. Saga trata a história de uma família que luta por prevalecer num universo onde a sua relação e o seu matrimónio não é aceite entre os povos de cada um.
Não existe qualquer menção ao planeta Terra, que parece não existir no universo de Saga, e os planetas explorados são fictícios, tais como as espécies criadas pelo autor (embora na minha opinião tenham um toque mais fantasioso do que ficto-científico). Fiona Staples elaborou um trabalho magnífico com os ambientes criados, que são absolutamente lindos, tal como com as cores e o movimento. O trabalho da artista é irrepreensível e a sua técnica é notável, o que dá a Saga mais uma razão para o seu enorme sucesso.
Os primeiros quatro volumes exploram, de uma forma excecional, as ambições dos personagens e contextualizam o ambiente da história em pouquíssimo tempo. Vaughan demonstra a sua genial capacidade de escrever uma banda desenhada com a medida certa entre tensão e descompressão. A vida entre o casal, Alana e Marko, sofre altos e baixos ao longo da série, mas sempre sentimos a química vibrante entre os dois e a caracterização faz-nos sentir sempre a vontade de torcer por este romance.
Além disso, diferentes momentos do enredo mostram-nos os vários lados do casal, os momentos ternos e mais românticos, mas também os momentos mais ásperos e conflituosos e ainda os mais picantes, que parecem vividos de uma forma casual entre os mesmos, abraçando o lado mais belo e quase ingénuo do casal jovem e recém-formado.
Além dos protagonistas, a série envolve outros personagens, bastante interessantes e com grande potencial no desenvolvimento dos próximos volumes e traça-lhes destinos que, de alguma forma, se cruzam com os dos protagonistas.
A premissa levanta ainda as questões éticas e morais da guerra, do racismo ou da discriminação, mas o foco principal está na celebração do amor acima da sociedade e das “leis universais”.
Uma das bandas desenhadas mais premiadas de que me recordo ter lido, tendo arrecadado 12 Eisners e 17 Harveys entre 2013 e 2017.
Também uma das maiores surpresas que tive nas minhas leituras de 2020 até agora, tendo contrariado todas as assunções menos positivas que tinha quanto à série. Uma obra que vai agradar a muita gente que ainda não a tenha lido.
Uma série de um fantástico clamor e de uma das maiores riquezas carismáticas da banda desenhada, de uma arte contagiante e emotiva e de um universo de personagens que, sendo alienígenas, são, na verdade, tão humanos e palpáveis.
A grande prova de que o que faz um grande autor não tem de ser sempre uma complexa premissa.
Rafael Marques tem 24 anos durante o ano de 2020. É músico em Lisboa e faz disso a sua profissão. A restante parte do seu tempo é dedicada ao sono, ao gaming e à leitura de banda desenhada, que terá descoberto como uma das suas maiores paixões entre 2018 e 2019, quando se envolveu numa relação com uma artista/ilustradora. Rafa é um apaixonado por tudo aquilo em que trabalha. Em segredo, escreve argumentos para banda desenhada, que são executados em belas pranchas pela sua companheira. Ainda sonha um dia vir a ser mordido por uma aranha radioativa…