Perspetivando os dois volumes de O Xerife da Babilónia.
Enquanto leitor, sempre procurei, maioritariamente, a ficção e a fantasia, mas fugir da zona de conforto pode ser, muitas vezes, uma opção bastante enriquecedora. E quando falamos de banda desenhada nos dias de hoje, podemos analisar um enorme espetro de géneros, desassociando a ideia de que a mesma se trata já de um género isolado, mas reconhecendo que é, na verdade, um meio para a difusão de vários e diferentes géneros.
Um bom exemplo de banda desenhada com âmbito literário, de caráter sério, realista e maduro é O Xerife da Babilónia.
Foram dois os volumes que completaram a curta série de Tom King e Mitch Gerads, publicada originalmente pela Vertigo entre 2015 e 2017. Em setembro de 2018, a portuguesa Levoir publicou a sua edição do primeiro volume e no mês seguinte deu-se o lançamento do segundo e último volume, ambos incluídos na coleção comemorativa dos 25 anos Vertigo, sob a forma de adenda aos primeiros cinco volumes da coleção.
Os dois volumes foram, respetivamente, intitulados de Bang.Bang.Bang e Boom.Boom.Boom. (originalmente Pow.Pow.Pow. no segundo caso).
Após o 11 de Setembro de 2001, Tom King juntou-se à unidade antiterrorista da CIA e, mais tarde, viria a ser destacado para o Iraque. Foi esta experiência, por si vivida, que viria a inspirar a escrita da obra.
O Xerife da Babilónia é uma banda desenhada madura, de leitura pesada e realista, que aborda uma temática sensível e polémica, que cruza ideais políticos e religiosos numa guerra estranhamente difícil de entender. É verdade que podemos afirmar que todas as guerras são difíceis de entender, ou que os alegados motivos não são razoáveis, mas das questões políticas entre EUA e Iraque sempre entendi muito pouco. Com a obra de King fiquei a entender um pouco mais, confirmando ainda mais que parece um conforto, muitas vezes, desentendido pelos próprios participantes.
Na nona arte, muitas vezes temos a arte dada como garantida e procuramos apenas no argumento a essência completa de uma obra. Creio que, quando uma banda desenhada, como esta, nos dá essa garantia e a arte nem sequer é examinada em primeira instância, então o artista terá, certamente, feito um bom trabalho. Claro que, como apreciadores deste campo da literatura e arte, devemos absorver a obra como um todo, mas esmiuçá-la separadamente pode ser também um exercício bastante interessante.
Se o desenho que Mitch Gerads nos apresenta não é instantaneamente analisado, é porque mau não pode estar e, consequentemente, tem de ser bom.
Todavia, falar apenas no argumento não pode bastar numa análise como esta e, embora a arte desta obra pareça, então, uma garantia quase dada, é porque o trabalho do artista está muito bem firmado.
O traço é realista e fortemente fotográfico, dando a O Xerife da Babilónia a imagem e ambiente exatos que esta quer passar. Se Gerads fez um bom trabalho com o traço e a arte-final, a cor foi, para mim, o ponto alto das suas páginas. Um aspeto que passa, mais uma vez, fortemente despercebido por estar tão compacto e bem conseguido é a cor ser muito sólida e os padrões usados recorrentemente darem um ambiente único e agradável. Quase podemos sentir o árido calor do Iraque.
A arte aqui não será extraordinária ou, extremamente criativa, ou até complexa, mas é muito consistente e profissional.
Quanto à premissa, esta banda desenhada apresenta-se crua e pesada, como referi anteriormente. Tom King mostra-nos o lado mais chocante deste confronto, apresentando o lado político e o lado religioso e envolvendo vários personagens do lado americano e do lado iraquiano.
Começando com o assassinato de um dos recrutas treinados pelo protagonista (ou antes, um dos protagonistas) da história, a trama desenvolve-se por entre vários aspetos referidos acima. Quando o culpado parece ser já conhecido e, aparentemente, um tanto óbvio e desmotivador para a resolução da obra, King inverte os planos do leitor e tece uma nova possibilidade. Acabamos por seguir vários caminhos e, entretanto, o foco já é muito maior que o que nos é dado inicialmente.
Certas referências nos diálogos e, até, alguns maneirismos por mim desconhecidos, toldaram-me parcialmente a perceção do que acontecia em algumas das cenas, mas, em geral, a obra tem um discurso acessível e fácil de acompanhar, embora maduro e pesado como tenho referido.
Em O Xerife da Babilónia, King utilizou uma característica que foi recebida muito positivamente pela crítica e pelo público. Refiro-me ao uso geral, por página, de esquemas de nove painéis de iguais proporções. Fortemente influenciado por Alan Moore, o seu uso é claríssimo durante o decorrer da obra.
Tom King e Mitch Gerads criaram aqui uma banda desenhada mais virada para o campo cinematográfico, com uma abrangência realista e com pontos interessantes. Uma leitura chocante, mas bem conseguida, com personagens palpáveis e tridimensionais, com as suas crenças e as suas moralidades.
Apesar do final deixar mais questões do que respostas, isso não é necessariamente mau num livro como este e, com a pesquisa, que a curiosidade me levou a fazer (quanto a questões políticas do regime de Saddam Hussein e ao confronto americano, entre outras), termino esta obra com, nada menos que um saldo cultural mais positivo.
Emotivo e empolgante. Para fãs de obras sérias e maduras e para fãs de literatura em geral. Dois volumes que valem bem a pena ser lidos e analisados.
Rafael Marques tem 24 anos durante o ano de 2020. É músico em Lisboa e faz disso a sua profissão. A restante parte do seu tempo é dedicada ao sono, ao gaming e à leitura de banda desenhada, que terá descoberto como uma das suas maiores paixões entre 2018 e 2019, quando se envolveu numa relação com uma artista/ilustradora. Rafa é um apaixonado por tudo aquilo em que trabalha. Em segredo, escreve argumentos para banda desenhada, que são executados em belas pranchas pela sua companheira. Ainda sonha um dia vir a ser mordido por uma aranha radioativa…