Assassino de Whitechapel no clássico de Moore.
Depois de Batman: A Piada Mortal e Watchmen me terem conquistado, em grande parte, pela escrita argumentativa, decidi conhecer outro dos maiores romances gráficos de Alan Moore, Do Inferno.
Originalmente publicado entre 1989 e 1996, em série, Do Inferno, foi compilado pela primeira vez em 1999. Uma publicação Top Shelf Productions nos EUA e Knockabout Comics no Reino Unido, com 572 páginas, o clássico de Alan Moore viu a sua edição em português, pela Devir, em novembro de 2017.
Andei às voltas com este livro durante coisa de um mês. É uma obra complicada, um tanto técnica e, obviamente, pesada, com muita leitura e interpretação a ser feita. Tendo um argumento maduro e tão extenso, foi uma obra que abordei com um certo receio inicial, mas com uma vontade tremenda.
Quando peguei no livro pela primeira vez (sem ter conhecimento do tema ou sequer do “fenómeno Jack, o Estripador”), Do Inferno pareceu-me um livro aborrecido e monótono, em grande parte devido à arte que apresenta. Simultaneamente, era um livro que parecia pedir para ser lido. Quero dizer, com um nome como este e uma temática de mistério à volta de um dos mais mediáticos assassinos de todos os tempos, como não? Já para não mencionar a referência do nome Alan Moore.
Do Inferno é uma obra completamente genial. A arte, que inicialmente me pareceu desinteressante, assenta com o estilo da época retratada de uma forma soberba. Fui apanhado de surpresa e, se nas primeiras páginas estava a tentar entender o que estava realmente a ler, ao fim de um ou dois capítulos estava completamente agarrado pelo mistério. Às tantas, acabei por fazer a minha própria pequena pesquisa e começar a tecer as minhas próprias teorias quanto a Jack, o Estripador e os assassinatos de Whitechapel.
Que se entenda que se trata de uma obra ficcional, de intuito especulativo, mas onde Moore apresenta um rigoroso trabalho de pesquisa, não só quanto à época e à geografia de Londres de 1888, mas também quanto aos personagens impactantes nos casos, direta ou indiretamente, além, claro, dos próprios acontecimentos presentes.
Como justifiquei acima, a arte funciona estranhamente bem e Eddie Campbell tem um trabalho maravilhoso na medida da arquitetura da cidade e da anatomia dos personagens. Apesar de parecer um traço, atrevo-me a dizer, muito rascunhado, quase passa a plena sensação de que estamos a ler um livro com ilustrações de época, o que torna o ambiente extremamente interessante e envolvente.
Uma das questões que referi, já também quanto a Watchmen, é a estrutura que Moore dá às páginas. A simetria das vinhetas, a ordem de disposição e a sua repetição página após página de uma forma quase contínua, é um aspeto que me faz sentir, em parte, fechado no espaço da página. Um aspeto fortemente associado à escrita de Moore em banda desenhada.
Se este é um aspeto negativo, não posso afirmar. Não me revejo nessa opção e não sou fã dessa mesma organização de vinhetas, mas não consigo apontar o dedo a Moore além daqui.
A escrita de No Inferno é concisa e precisa. Quanto à seguinte questão, e peço desde já desculpa pela minha falta de informação, fica a minha análise. Tendo lido apenas a versão original da obra, e, por isso, desconhecendo a tradução que lhe terá sido dada para a versão portuguesa, aponto que o diálogo e seus maneirismos estão apontados à época e cidade em questão de forma muito precisa. Por vezes menos fácil de entender, as diferenças nos vários tipos de diálogo são claríssimas, como nos casos de membros da classe baixa do povo, ou até mesmo do calão usado entre as prostitutas de Whitechapel, em oposição aos diálogos da realeza e de membros das classes mais altas. Este é o tipo de detalhes que fortalecem tanto o argumento de Moore.
Nesta obra encontrei uma das minhas leituras favoritas até então. Não creio que tenha de existir um termo de comparação para as várias obras de Alan Moore, mas esta foi para mim, até agora, a sua obra que mais me fascinou. A conclusão, mais uma vez, fictícia e proposta por Moore, demonstra uma maturidade e inteligência espetaculares ao desfecho do tema.
William Gull pode bem não ter sido o homem por detrás do personagem Jack, o Estripador, visto não ter sido sequer um suspeito apontado durante a investigação dos casos, mas Moore deixa tudo minuciosa e detalhadamente explicado e, com a sua fidelidade à época, aos detalhes históricos e até aos acontecimentos historicamente registados, com ou sem esse objetivo, convence-nos muito bem que Gull é o assassino. A sua teoria pode ser meramente conspiratória, mas desde os acontecimentos datados aos aspetos maçónicos traçados na obra, Moore demonstra uma virtuosidade e conhecimento exímios.
A atribuição de delírios fantasiosos dada ao assassino Gull é de uma enorme ambição. As visões que tem do futuro século, a sua própria pretensão divina que motiva os homicídios que comete e os minutos finais da sua vida, são de um brilhantismo excecional.
Rendo-me completamente a este enorme trabalho de Moore e Campbell e aponto até como um dos romances gráficos que mais seriamente devem ser tidos em conta na história da nona arte.
Não seria, certamente, a minha primeira sugestão para um leitor iniciante ou juvenil, mas se o que procura é um livro enigmático e metódico, complexamente estruturado, mas que dê luta, Do Inferno é uma ótima escolha.
De uma enorme virtude do autor, Moore demonstrou saber trabalhar com a realidade para manipular a ficção e Do Inferno é, muito possivelmente, o mais pretensioso livro de ficção histórica no campo da banda desenhada. A genialidade de Alan Moore jamais será igualada, mas é certo que no mundo da nona arte não queremos duas obras iguais.
Rafael Marques tem 24 anos durante o ano de 2020. É músico em Lisboa e faz disso a sua profissão. A restante parte do seu tempo é dedicada ao sono, ao gaming e à leitura de banda desenhada, que terá descoberto como uma das suas maiores paixões entre 2018 e 2019, quando se envolveu numa relação com uma artista/ilustradora. Rafa é um apaixonado por tudo aquilo em que trabalha. Em segredo, escreve argumentos para banda desenhada, que são executados em belas pranchas pela sua companheira. Ainda sonha um dia vir a ser mordido por uma aranha radioativa…