Streaming bandas desenhadas

Streaming bandas desenhadas

Um olhar a UltraSayanJedi… de Mao.

Sempre que o homem sonha o mundo pula e avança, escrevia Gedeão. O gaming tem pulado e avançado ao longo das últimas décadas tornando-se uma indústria de grande importância.

Por seu turno, a democratização do acesso à internet e à sua banda larga mudou comportamentos e instituiu hábitos, com a criação de hardware e software para as mais diferentes necessidades. O streaming de música e vídeo criou uma própria cultura em detrimento do CD e DVD, enquanto as plataformas de vídeos online foram roubando o tempo dedicado à visualização de TV – os espetadores passaram a ser utilizadores dos serviços da então denominada Web 2.0.

A internet passou a permitir aos gamers jogarem com outros jogadores, provenientes dos mais diferentes países, em tempo real. E a indústria foi respondendo à vontade dos jogadores quererem realizar tal façanha não com um mas com dezenas de jogadores simultaneamente, em jogos graficamente exigentes.

O fenómeno youtuber rapidamente se cruzou com o streaming de videojogos. Tendo direito ao seu próprio fenómeno, coube mais uma vez à indústria, por um lado, facilitar a que qualquer gamer pudesse realizar streaming sem ser obrigatória a aquisição de hardware e software para tal, enquanto o número de plataformas de streaming em direto (leia-se, ao vivo, live) de videojogos aumentavam, fosse o próprio YouTube, o Mixer ou o Twitch, entre muitas outras.

Para os quais o gaming é algo distante, os estudos indicam que há mais utilizadores a visualizar streaming de videojogos do que o total de visualizadores do conjunto das populares plataformas de streaming de vídeo (Netflix, Disney+, Prime Video, Hulu, etc). Provavelmente, a gratuitidade da visualização destes conteúdos contribui para esse fenómeno e o marketing está extremamente atento ao mesmo. Existem gamers cujo trabalho que desempenham diariamente é precisamente esse, o de realizar streaming ao vivo, sendo extremamente lucrativo para os mais populares.

E a banda desenhada? Também pula e avança, pois então. Parafraseando Pedro Moura na sua rubrica Articulações na 3.ª edição do programa radiofónico Bandas, num texto intitulado “As Ideias Próprias da Banda Desenhada”, a BD tem vindo a explorar as suas dimensões “propriamente artísticas, logo necessariamente disruptivas, experimentais, expansíveis” às fórmulas devidamente testadas e frequentemente utilizadas.

E é uma nova linguagem para a banda desenhada que Mao tenta criar na obra UltraSaiyanJedi is streaming Tactical Arena: Apocalypse, March 11th (Twitch is like the fun side of the military-industrial-surveillance complex). A sua ideia baseia-se numa transmedialização – temática a que Hetamoé, colega de Mao no coletivo Massacre, também se dedicou num artigo que o Bandas Desenhadas publicou, denominando a transposição de um medium para outros media -, mais concretamente uma transposição das plataformas de streaming de videojogos para a banda desenhada.

Esta transmedialização é do meio em si e não propriamente uma adaptação de uma determinada obra de um meio para outro. Deste modo, cada prancha adota um formato similar à disposição clássica das plataformas de streaming de videojogos, nas quais uma coluna de chat surge à direita. A vinheta predominante sobre as outras, de generosas dimensões, representa a janela da plataforma de streaming onde se visualiza o videojogo em tempo real, sendo ladeada por dois pequenos retângulos. O retângulo superior assemelhar-se-ia estruturalmente a um cartucho disposto fora das vinhetas dado só apresentar texto; no entanto, a sua função é distinta daquele. Quanto ao retângulo inferior é uma vinheta que representa a filmagem em tempo real do gamer que está a realizar o streaming – na realidade, esta posição pode ser modificada nas plataformas de streaming, sendo frequente a imagem do gamer surgir sobreposta à janela do jogo no canto inferior esquerdo, por técnica de chroma key ou similar.

A forma de comunicação do gamer com os seus visualizadores faz-se através do som, que se sobrepõe ao do videojogo, enquanto os visualizadores comunicam em tempo real com o gamer por escrito através do chat. Graficamente, na BD, a sobreposição também se dá, com a voz do gamer a ser visualizada através de um balão de fala parcialmente sobreposto à transmissão do videojogo.

Dependendo do tipo de videojogo, o gamer poderá não conseguir estar tão atento ao chat quanto o resto dos utilizadores, uma vez que tem de simultaneamente estar concentrado no videojogo. Isto causa com frequência algum delay sobre quais são os assuntos do chat comentados pelo gamer. Mesmo um gamer que esteja extremamente atento ao chat, dificilmente conseguiria responder a tudo e de forma imediata num chat concorrido com mensagens dos utilizadores a surgir em catadupa.

O leitor da BD também notará esta dificuldade, enquanto visualizador. Por vezes, após a leitura do chat, quando, por fim, lê o balão de fala, nota que o gamer poderá estar a referir-se não ao(s) último(s) comentário(s) mas ao(s) anterior(es).

Acreditamos que o sentido de leitura das 2 vinhetas menores seja intuitivo para o leitor de BD, de cima para baixo (primeiro, chat no cimo; seguindo de balão de fala na última vinheta de cada prancha), mas não temos dúvidas que não haverá nenhuma dificuldade nos espetadores de streaming de videojogos.

Ocasionalmente, surgem vinhetas adicionais, parcialmente sobrepostas à vinheta que transmite o videojogo. Representam as doações. São também uma característica de algumas destas plataformas, incluindo o Twitch – que, de acordo com o título da obra, é o especificamente visado -, através das quais os visualizadores podem doar dinheiro (real) aos gamers que estão a realizar o streaming. Quando tal acontece, o gamer pode ter ativado o surgimento de uma imagem, animada ou não, acompanhada de som ou não, onde é identificado quem doou e quanto, sendo seguido do agradecimento verbal da praxe do gamer ao doador. Na BD, este objetivo de angariação de fundos do gamer de apelido UltraSayanJedi (num trocadilho e clara referência às franchises Dragon Ball e Star Wars, evocando a faceta mainstream da cultura gamer) é inclusivamente omnipresente na legenda em rodapé da vinheta de grandes dimensões, onde consta não só quem são os principais doadores, bem como qual a quantia que tem como objetivo angariar naquele mês. Inclusivamente, dependendo do gamer, é frequente nas suas transmissões explicarem onde vão utilizar o dinheiro, desde a renda do apartamento a qualquer outra questão universalmente bem aceite. Tal como o UltraSayanJedi.

Mao incorpora também outros elementos do medium original, desde os trolls e haters à construção dos nicks (dos humorísticos às evocações culturais, não tendo a banda desenhada sido poupada). Presenteia também o leitor com menus do videojogo que mimetizam com fidelidade menus de videojogos similares.

O foco principal da narrativa centra-se, contudo, numa doação extremamente generosa de um dos visualizadores. Para os que possam considerar tal como algo criado como um elemento fantasioso para efeito dramático, informa-se que existem YouTubers que têm lucro a realizarem vídeos nos quais doam inesperadamente grandes quantias de dinheiro a streamers de videojogos em direto. Com as suas reações em tempo real, constroem os seus vídeos, na esperança de que se tornem virais. Se tudo isto vos soa estranho, pesquisem, por exemplo, vídeos do MrBeast (pseudónimo do norte-americano Jimmy Donaldson), nos quais doa de forma aleatória (ou somente a streamers com 0 visualizadores ou streamers que sejam crianças) grandes quantias de dinheiro.

No que toca ao desenho, Mao introduz também elementos do medium original, como a pixelização ou elementos 3D, numa tentativa de não se apropriar somente de uma linguagem mas criar um novo campo para a banda desenhada.

Não tendo tido oportunidade de visitar a exposição do coletivo Massacre intitulada “Loot Box”, onde o desenho, o vídeo e a instalação foram utilizados em trabalhos concebidos especialmente para a Biblioteca da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, na finissage da qual foi lançada a BD supracitada, nem à mesa redonda moderada por Pedro Moura e com a presença dos três autores (Mao, Hetamoé e André Pereira), intitulada “Game Over: Arte, ‘gamificação’ e o Antropocénico”, interessa-nos, ao invés, terminar esta análise da obra em questão com uma reflexão sobre a experimentação e o público.

Frequentemente, as novas ideias para um meio, as tais forçosamente experimentais e disruptivas dos modelos pré-existentes, dificilmente saem de um círculo fechado, ao largo da maioria de leitores de banda desenhada. Seja este círculo académico ou qualquer outro. Com esta obra, Mao criou uma BD que acreditamos ser facilmente lida – dada a fidelidade com que foi transposta – por quem visualiza streamings de videojogos ou conteúdos similares.

Acreditamos que os menos experimentados nessas lides poderão ter alguma dificuldade inicial em compreender a função que cada elemento da página assume, mas, com a continuação da leitura, não antevemos dificuldade na compreensão do medium e, postulamos também, que facilmente reconhecerão e compreenderão o medium original pela primeira vez se visualizado somente após a leitura desta BD. Será um artificialismo bem-vindo.

Quanto à narrativa principal, que apesar divergências potenciais de qualquer chat, é, ainda assim, linear, haverá certamente aqueles a quem a temática não tocará, em especial se permanecem virgens da “gamificação”.

Independentemente de tal, Mao experimenta uma nova linguagem na BD e torna-a extremamente acessível a qualquer leitor que lhe conceda a sua leitura, independentemente da sua experiência enquanto gamer ou leitor de BD. É um bom exemplo de como criar um novo modelo não gera necessariamente incompreensão no leitor.

Entretanto, a BD pulou e avançou.

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