Ilustrações: Pedro Morais
Sábado, 6 de Outubro
Hoje foi o dia em que terminei o estúpido do livro que a editora me encomendou. O pior é que não recebi nenhumas felicitações. E não foi por já o dever ter acabado há muito… Foi por quase ninguém saber que o finalizei. Nem irão saber, graças à hipocrisia da existência dos escritores-fantasma que este mundo criou. Acabaram-se as aventuras juvenis por uns tempos.
A resposta da Dora chegou mais tarde! Deve ter-me querido dar a entender que também trabalha aos fins-de-semana.
“Caro Júlio: Vou reenviar à autora. Ela deve entrar em contacto consigo em breve, para trocarem impressões. Remeto também este artigo em anexo, que me pareceu ser do seu interesse. Abraço, Dora”
Acho que preferia os melhores cumprimentos aos formais abraços da minha editora. O artigo elogia os livros narrados na terceira pessoa em detrimento da primeira, afirmando que ninguém quer ler quatrocentas páginas sobre as lamúrias insignificantes de um homem quarentão nem focalizados no choramingar de uma adolescente. Fiquei sem perceber se é uma menção indirecta quanto ao número de páginas do meu manuscrito ou de este ser narrado na primeira pessoa. Ela que se atreva a não publicar o meu livro após eu ter transformado as anotações incongruentes da Rute num verdadeiro livro juvenil.
Telefonei ao João Bento. Não me atendeu. Deve estar no milionésimo workshop a explicar como se consegue publicar um texto sobre os devaneios de uma adolescente quanto ao uso dos ganchos de cabelo, ao longo de duzentas páginas e escrito na primeira pessoa. Eu resumiria tudo a uma palavra: contactos.
Tive de sair do apartamento. O tapete da minha vizinha não estava virado ao contrário. Fiz-lhe uma visita. Ainda estava na cama. Devia ter-se deitado tarde. Passados dez minutos e ela ter tido duas cascatas de orgasmos em duas posições diferentes, eu já estava de volta a casa, com a desculpa de ter de terminar o livro. Estava ainda menos inspirado. Ninguém quereria ler sobre uma mulher que se vem rapidamente.
Telefonei à Penélope. Ela tinha atendido ontem dois casos que talvez me interessassem. Um deles era sobre um doente que acreditava que lhe tinham disparado um raio para o envelhecer rapidamente. Gracejei que isso é o que nos acontece a todos, ao nascer, mas ela não se riu. O outro era um doente cuja filha toxicodependente e protagonista de filmes pornográficos tinha falecido. Coloquei na minha agenda uma nota para investigar mais sobre a produção de filmes para adultos no nosso país.
O meu filho telefonou-me a contar que tinha visto um velho episódio de uma série de animação em cujo argumento participei. Quando lhe perguntei o que tinha gostado mais, respondeu que foi quando um herói pegou num pau e matou muitos maus. Preciso de comprar um livro infantil sobre a não-violência para lhe ler.
A Rute enviou-me um e-mail, comunicando que fez algumas alterações no primeiro capítulo. Ao comparar as versões, concluí que a única diferença entre elas foi o ter emendado erradamente a palavra “digladiava-se” para “degladiava-se”.
Resolvi acalmar com um pouco de jazz. Já que não podia fazer explodir um big bang na cabeça da Rute, ouvi a big band de Fletcher Henderson. Adormeci no sofá.
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Domingo, 7 de Outubro
Hoje foi o dia em que fiz o telefonema mais estranho dos últimos anos. O João Bento finalmente atendeu mas só havia sons 4G, isto é, gritos, gemidos guturais e golpes. Como não respondia aos meus apelos, coloquei o telemóvel em alta voz e fui olhando para a página vazia no portátil. Cronometrei pelo relógio e de 3 em 3 minutos repetia “Está lá?”, apesar de não obter resposta além dos 4G.
Optei por escrever no final da página “um romance de – parágrafo – Júlio Durão” mas essa técnica também não me inspirou as páginas seguintes nem um título para o bestseller que (ainda) não escrevi. Decidi que desta vez não será na primeira pessoa.
No vigésimo sexto “Está lá?”, o Bento respondeu intrigado. Ao que parece, o telemóvel tinha sido atendido durante uma sessão terapêutica de guerra de almofadas que a psiquiatra lhe tinha prescrito. Coloquei uma nota na agenda para mencionar esta técnica à Penélope. De qualquer modo, o Bento necessitava de conferir o preço da sessão com a terapeuta e ficou de me telefonar mais tarde.
Pensei na minha vizinha e rapidamente fui dar uma olhadela ao seu tapete. Estava convidativo, pelo que entrei. Encontrava-se a beber café com leite e a mordiscar torradas na cozinha, ainda em roupão. Devia ter ido para a noite novamente pois não estava com humor suficiente para se rir quando lhe disse que aquela gordura lhe ia entupir as artérias.
Arrastei-a para a cama, e fizemos um bis do dia anterior, apesar de ter variado as duas posições. Confessou-me estar a pensar em realizar umas doações a instituições de caridade para valorizar a sua beleza interior num plano que envolve a conquista de um rapaz cujo nome não decorei. Devido ao seu humor, não brinquei com qual é o interior que o género masculino aprecia. Com aquela conversa pós-coito, demorei ao todo doze minutos. Se continuar assim, ainda lhe devolvo a chave.
Quando estava quase a entrar no meu apartamento, o velhote que mora em baixo apareceu, exibindo um enorme sorriso quando me viu. Estava a fazer um abaixo-assinado para entregar ao presidente da junta, de modo a que ele sorteasse em praça pública dez famílias da nossa freguesia para serem remetidas para o estrangeiro durante um ano, de modo a não terem de vivenciar a crise que atravessamos. Aconselhei-o a aumentar o tempo do exílio e sugeri a Grécia como destino.
Também recebi um SMS indescritível da Roberta, onde se lia “Quando paro o antibiótico?”. Como não sabia a que se referia e não estava com grande vontade de consultar o meu oráculo privativo não lhe respondi.
A Dora remeteu-me um e-mail no qual me transmitia ter lido o livro da Rute em apenas uma hora e que estávamos perante uma leitura extremamente fluída, tendo adorado o título dos capítulos e as transições repletas de suspense entre os mesmos, enquanto a tensão ia crescendo em contínuo. O único senão tinha sido não ter ficado encantada com o final. Respondi-lhe que tinha sido ela própria a dizer-me mais de uma vez para não alterar o final e que me incomodava que se dirigisse à obra como o “livro da Rute”. Perguntei-lhe se queria tomar café comigo no dia seguinte para discutirmos o meu manuscrito, o qual a editora tinha em seu poder, bem como o novo livro que tinha começado a escrever na terceira pessoa. Coloquei “terceira pessoa” a negrito, para dar mais ênfase.
Aquele e-mail deixou-me a transbordar de energia. Li mais uma vez tudo o que tinha escrito no meu novo romance, “um romance de (parágrafo) Júlio Durão”, e concluí que realmente estava na terceira pessoa. Aquele fluxo energético fez-me fechar o processador de texto e planear um projecto recreativo na internet. Dos vários que me têm periodicamente assombrado, optei por elaborar um blog dedicado à ilustração de livros e revistas. Fiz bastante pesquisa e descobri inclusivamente que poderia ganhar alguns cêntimos em programas de filiação de grandes lojas de retalho internacionais online. Planeei cuidadosamente como colocaria o projecto em prática.
O Couto ligou a perguntar-me se tinha conhecimento de algum curso de escrita criativa que começasse em breve. Lembrei-lhe o que tinha acontecido da última vez que ele tinha frequentado um curso de verão dedicado ao conto. Tinha-se apaixonado pela Sabrina, uma rapariga francesa a realizar intercâmbio no nosso país, e aquela situação não tinha corrido muito bem, terminando com ele a desistir do curso depois de o seu cunhado ter tentado violar a Sabrina. As relações entre os dois países tinham inclusivamente esfriado. Desligou-me o telefone na cara. Há pessoas que têm grande dificuldade em se abstrair da sua vida para a analisar de modo objectivo. Talvez lhe dê o contacto da Penélope.
Desisti de iniciar o blog dedicado à ilustração.
A (pequena) história de bastidores do Diário de Júlio Durão
Em 2013, decidi participar num zine que compilava inéditos de banda desenhada, prosa e poesia. Já não colaborava num zine que fosse editado em formato físico há bastantes anos e acreditei que era altura de dar um contributo. Infelizmente, a crise da dívida pública europeia da altura tinha outros planos para o editor do zine, não tendo este chegado a ser publicado. Foi o próprio editor que me reuniu com o Pedro Morais, o qual ilustrou o texto de forma exemplar.
Quanto ao texto, teve dois propósitos. Um regresso à minha escrita humorística e um exorcizar do formato de simulação de diário, após uma leitura dedicada e detalhada de tudo o que era editado no nosso país nesse formato, muito popular na altura entre diversas editoras, aquando da escrita de um ensaio dedicado ao tema. Sendo raras as leituras boas e medianas, foi a forma que encontrei para dar um sentido criativo às horas convividas com péssimas leituras.
Animado pelo feedback recebido então dos poucos que leram o texto previamente à sua (suposta) edição, cheguei a dar continuidade ao Diário de Júlio Durão, onde tanto tinha ficado em aberto, estando hoje tais escritos em parte incerta. Sete anos depois, apresenta-se a obra ilustrada, inédita até este momento.
Fundador e administrador do site, com formação em banda desenhada. Consultor editorial freelance e autor de livros e artigos em diferentes publicações.