
Presas Fáceis: Genuinidade e sinceridade do autor.
Em 2003, foi editada em Portugal uma coleção da Panini, intitulada de Os Clássicos da Banda Desenhada. Era uma interessante compilação de vários livros dedicados a autores ou personagens clássicos e marcantes no panorama da banda desenhada internacional.
Terá sido a partir desta coleção, que me foi oferecida por volta da mesma altura em que foi lançada, que fiquei apresentado a vários grandes nomes da banda desenhada. Foi no número 14 que pude conhecer um pouco do trabalho de Miguelanxo Prado, o único autor ibérico presente na mesma.
Imagine-se um miúdo com aproximadamente uma década de vida, encantado a vislumbrar o traço único e tradicionalista de Prado, em cenas de conteúdo erótico inseridas em Traço de Giz e Tangências. Claro que, para um rapaz curioso e relativamente perto de alcançar a puberdade, poucas coisas poderiam ser tão intensas como as páginas de Prado, folgo o anterior número 12, do clássico Milo Manara…
Esta coleção foi um dos meus primeiros e ingénuos contactos com a banda desenhada, juntamente com coleções de Tintin, Lucky Luke e uns Astérix pelo caminho. Mas, pela diversidade nesta presente, foi ela que me abriu a um leque de diferentes possibilidades no meio, aquém e além-mar.
Escusado será dizer que, com 10 anos, nada em Prado me despertava mais a curiosidade que os voluptuosos corpos femininos e as cenas de sexo. As tramas de Prado eram complicadas e incompreensíveis para um miúdo de 10 anos, mas não deixava de manter o meu foco no seu trabalho artístico. E, ao contrário dos leitores mais experientes, não me importunava na altura o reduzido formato com que as bandas desenhadas europeias foram publicadas.
Foi por isso que, agora com 24, com um pouco mais de experiência de vida, um maior conhecimento da nona arte e um significativo abrandamento nas hormonas, decidi dar uma vista de olhos àquilo que Prado fora continuando a fazer durante os anos em que me afastei da banda desenhada.

Presas Fáceis foi a minha escolha para começar.
O terceiro volume da Novela Gráfica (Série II) da Levoir é uma publicação de 2016, com argumento e arte pelo autor galego. Esta obra valeu a Prado o prémio de “Melhor Livro Estrangeiro” no Amadora BD do mesmo ano.
Folhear o livro e rever o traço de Prado, tornou-se uma experiência nostálgica. É um traço muito tradicional que torna as suas bandas desenhadas únicas e interessantes, de uma enorme sinceridade artística. Apesar de ter optado pelas tonalidades de cinzas ao invés de cores, o livro não ficou menos interessante por isso.
Em Presas Fáceis, há aspetos que não passam despercebidos. Existe uma clara maturidade criativa e profissional no trabalho de Prado. É um livro sem pontas soltas, um livro que nos faz sentir garantia desde início. Garantia de que está estruturado de forma sólida.
Não é um livro difícil, de trama complicada e complexa, muito pelo contrário. Prado apresenta-nos o ponto que tenta passar na obra, neste caso, a injustiça (ou não) das preferenciais e deixa-nos também espaço suficiente para que tenhamos a nossa própria opinião quanto a isso. Está aqui a apresentar-nos os criminosos e os seus pontos de vista, quase como “justiceiros” ao invés de vilões, deixando que o lado mais racional de cada leitor decida por si quem quer “defender”, se é que o deva sequer fazer.
Apresenta-nos um grupo de idosos, cúmplices num padrão de crimes de homicídio a colaboradores da banca. Nunca deixa o caso muito misterioso. Na verdade, a própria capa parece ter a maior revelação do livro quanto aos culpados por estes crimes. Todavia, a questão parece ser exatamente essa. Esta obra não se trata de um típico enredo criminal, em que a resolução do caso é o grande clímax da obra.
O autor leva-nos a descobrir tudo aos poucos, não deixando muito espaço para o mistério, mostrando-nos que o que queremos realmente saber são as razões que motivaram estes homicídios.
O desenvolvimento da história tem um progresso estupendo e o enredo nunca estanca. Ao invés disso, cada página traz uma novidade que acrescentamos à próxima. Ler este livro é como descer uma escada. Se saltarmos degraus podemos chegar mais rapidamente ao fim, mas corremos o risco de cair e descer é sempre bem mais gratificamente do que subir… Terá sido uma analogia fraquinha?
Quanto à tradução para a versão portuguesa, além de uma ou outra coisa superficial, houve apenas um dos erros, a que não pude evitar dar importância. Deixou-me até um pouco confuso quanto ao nome de uma das vítimas que, ora aparecia como Juan Taborda, ora Juan Taboada. Acabo o livro sem saber qual dos apelidos seria, de facto, o original. Mas uma pesquisa na internet revela ser o sobrenome Taboada o correto.

Terminando a obra, fica novamente o reconhecimento do artista, que não deixa dúvidas à razão que o faz ser conhecido como um dos maiores autores e artistas de banda desenhada europeia. O impacto das suas obras transcende o seu país e, até, o seu continente e o melhor de tudo é a sua capacidade de o fazer, mantendo-se fiel ao seu estilo, muito próprio, e às suas tramas elaboradas. Não estamos perante mais um autor de comics igual ao anterior, estamos perante um autor singular que nunca será confundido.

Rafael Marques tem 24 anos durante o ano de 2020. É músico em Lisboa e faz disso a sua profissão. A restante parte do seu tempo é dedicada ao sono, ao gaming e à leitura de banda desenhada, que terá descoberto como uma das suas maiores paixões entre 2018 e 2019, quando se envolveu numa relação com uma artista/ilustradora. Rafa é um apaixonado por tudo aquilo em que trabalha. Em segredo, escreve argumentos para banda desenhada, que são executados em belas pranchas pela sua companheira. Ainda sonha um dia vir a ser mordido por uma aranha radioativa…