História de uma infância e adolescência no Médio Oriente dos anos 70.
Médio Oriente. A que associamos o lugar? Quase que aposto que uma das primeiras associações a saltar à cabeça da maior parte de nós será “guerra”. Lembro-me de fazer esta grotesca associação desde tenra idade. Ainda não sabendo, exatamente, quais os países pertencentes ao Médio Oriente ou, sequer, onde ficava, exatamente, este lugar no globo.
Crescer num dos países mais seguros do mundo, na Europa, um país de privilégios que, são na maior parte das vezes, tidos como garantidos, dificilmente faria um miúdo questionar o que há para além.
Marjane Satrapi conta-nos exatamente o que era a vida num país onde a liberdade tinha um alto preço e a guerra se tornara um dado adquirido. Viver a infância no Irão, durante os anos 70 e 80, só podia ter sido uma das mais pesadas e injustas experiências de vida para uma criança no mundo.
Persépolis conta-nos a história da autora iraniana até ao fim do seu primeiro casamento e à data em que abandona definitivamente o seu país de origem, para se instalar na Europa, mais especificamente, em França.
Originalmente editado em nome próprio pela L’Association na sua coleção Ciboulette, após a estreia na revista Lapin da editora, Persépolis dividiu-se em 4 fascículos, sendo comummente agregados em duas partes, A História de Uma Infância e A História de Um Regresso.
A versão portuguesa chega-nos, pela primeira vez, em 2004, numa publicação de 4 fascículos, iniciada pela Polvo, que veria a descontinuação após a publicação do primeiro número. Em 2012, finalmente, a Contraponto edita a versão integral da obra. E é em 2015 que, após uma reformulação no seio do Grupo BertrandCírculo, à qual a Contraponto pertence, se dá a reedição da obra, desta vez com a chancela da Bertrand Editora, que tem reimprimido a obra até à atualidade.
Persépolis foi adaptado ao cinema, resultando numa obra bastante consagrada pela crítica e pelas audiências, numa versão original francesa, posteriormente adaptada à língua inglesa.
A banda desenhada de Satrapi é muito modesta e simples. Sem extravagância na arte ou, sequer, na narrativa. É mesmo como estar a ler um romance, neste caso, autobiográfico, mas em formato de banda desenhada. A sensação é diferente de tudo o que já li antes. Não existe o suspense e a ação antecipada, como nos livros de ficção, e não há uma expectativa quanto à personagem principal. Em vez disso, há uma clara consciência de que se trata de uma biografia e de que as coisas são contadas como aconteceram e não como gostaríamos que tivessem acontecido.
A arte de Satrapi é simples, quase infantil, até. Preto e branco, sem escalas de cinza, num formato artístico que podemos considerar simples e modesto. Apesar desta simplicidade, a autora consegue criar situações, propositadamente cómicas, em cenários onde não parece haver espaço para tal faceta. De uma forma brilhante, apresenta-nos um ambiente opressivo com uma certa leveza, que parece tranquilizar o leitor, evitando um ambiente pesado e constantemente depressivo. Acredito que o mundo de uma criança será sempre mais “colorido” que o de um adulto, por mais que a situação se demonstre igualmente complicada.
Foi esse, para mim, um dos principais aspetos na obra de Satrapi. A sua capacidade de nos envolver no ambiente de um país sobre constante ameaça de guerra e constante opressão por parte do regime, ainda assim, descomprimindo o pesado ambiente vivido.
Costumo abordar biografias, ou pelo menos, autobiografias, como material literário, quase garantidamente, aborrecido. Toda a gente pensa que a sua vida daria um livro interessante e acabamos por ter milhares de autobiografias que não acrescentam nada de novo. Em Persépolis, a autora não se limitou a escrever a sua autobiografia. Deu-nos uma visão divertida, interessante e cativante da mesma. Cativante, sem dúvida. Uma leitura extremamente cativante, com um ritmo muito bem compassado. Acontecimentos únicos, alguns pouco esperados, outros divertidos, alguns injustos e outros dececionantes, mas, no fim de contas, tudo está lá e, com mais ou menos ficção, são momentos reais.
Eu, que não conhecia a autora, fiquei automaticamente rendido à sua experiência de vida. Marjane Satrapi tornou-se, para mim, um símbolo fortíssimo para a humanidade e, principalmente, não só para a mulher iraniana, mas para a mulher contemporânea.
De uma perspetiva positivista, Marjane parece ter tido uma família completamente de louvar. Uma família que teve uma enorme influência para a pessoa em que a vamos vendo tornar-se ao longo do desenvolvimento da sua juventude. Pais “rebeldes”, que nunca se conformaram com o regime e que sempre apoiaram as decisões da sua filha, dando-lhe tanta liberdade quanto pudessem alcançar.
Esta é uma história de opressão que nos faz querer procurar o melhor que há em cada um e a ter uma visão diferente sobre o mundo. Uma visão menos materialista e facilitista, talvez.
Questões como a discriminação e a diferença cultural são fortes aspetos nesta obra. Notamos desde cedo uma enorme semelhança ética e moral entre a iraniana família Satrapi e a “típica família ocidental”; aponto como principais diferenças, e estas sim, de grande impacto e importância, a integridade e a valorização dada à liberdade individual, social e expressiva, para a primeira.
Chego ao fim do livro com uma atitude positivista, pensando na sorte que tive em crescer num país como Portugal durante a primeira década dos 2000. Ao fim de mais de 300 páginas, fico um tanto melancólico, com vontade que a história de Marjane não terminasse, eternamente grato por que esta senhora tenho partilhado aqui a sua história ao mundo, a sua cultura e a sua visão, e me tenha deixado mais rico. Uma leitura, deveras, muito enriquecedora, que fica guardada num canto especial da minha memória.
Persépolis
Marjane Satrapi
Editora: Bertrand
Páginas: 352, preto e branco
Encadernação: capa mole com badanas
Dimensões: 15 x 23,5 cm
ISBN: 9789722531177
PVP: 19,90€
Rafael Marques tem 24 anos durante o ano de 2020. É músico em Lisboa e faz disso a sua profissão. A restante parte do seu tempo é dedicada ao sono, ao gaming e à leitura de banda desenhada, que terá descoberto como uma das suas maiores paixões entre 2018 e 2019, quando se envolveu numa relação com uma artista/ilustradora. Rafa é um apaixonado por tudo aquilo em que trabalha. Em segredo, escreve argumentos para banda desenhada, que são executados em belas pranchas pela sua companheira. Ainda sonha um dia vir a ser mordido por uma aranha radioativa…