
A série Fatale de Ed Brubaker e Sean Phillips.
2014. Um ano que figura na história da edição de banda desenhada estrangeira no nosso país. O segundo fôlego de vida da G. Floy em Portugal. Após vários meses desde um aviso informal e o anúncio de um misterioso mas ambicioso plano editorial em outubro – onde apenas a multipremiada série Saga de Brian K. Vaughan e Fiona Staples era mencionada -, em novembro concretiza-se a publicação de 3 primeiros volumes de séries distintas.
É o início da publicação regular de séries de uma renovada Image, muito distante da sua fundação, onde era conhecida pela arte dinâmica e extravagante com que ilustrava histórias do subgénero de super-heróis, centradas em personagens com argumentos fracos. Os leitores portugueses já tinham, por exemplo, saboreado um pouco desta nova Image com a edição de The Walking Dead pela Devir.
Após a anunciada Saga e a publicação de Chew de John Layman e Rob Guillory, é no final que se esconde a cereja no topo do bolo, Fatale de Ed Brubaker e Sean Phillips. Graças à coedição da multinacional G. Floy, o preço final destas pequenas antologias em capa dura, torna-se extremamente competitivo no mercado nacional e gera, sem nenhuma dúvida, dificuldades nas poucas editoras que apostavam ocasionalmente na edição de BD norte-americana, com livros com encadernações em capa mole e preços superiores aos da G. Floy. A mencionada Devir seria um dos exemplos mais óbvios.
Das 3 séries iniciadas pela G. Floy, Fatale seria aquela que mais provavelmente se aproximaria do plano atual da editora, volvidos estes anos – uma narrativa fechada, com um número reduzido de livros a publicar. Todas as compilações das revistas já tinham sido inclusivamente editadas em livro nos EUA quando a publicação nacional se iniciou, não tendo o potencial de originar surpresas futuras à G. Floy quanto a séries colocadas em licença sabática, séries finalizadas a meio e não concluídas ou séries intermináveis sem fim à vista (com a problemática de tal poder vir a gerar perda cumulativa de leitores). A editar somente em 2020 Fatale, a discussão na editora passaria provavelmente por realizá-lo da mesma forma ou equacionando as 2 outras opções com que veio a habituar os leitores – ou a publicação dos 5 volumes mas com dimensões mais generosas (o anglófono oversize) ou a publicação em somente 2 volumes que correspondessem à deluxe hardcover edition, onde para além das dimensões generosas colocassem também os extras dessas edições (como ensaios, cenas dos bastidores, layouts e esboços, entre outros). Provavelmente, caso a G. Floy um dia decida reeditar Fatale, fá-lo-á nesse formato.
E já que mencionamos os extras, iniciemos o nosso olhar relativo à série sobre esta questão. Estes estão praticamente ausentes, o que não é de estranhar, como viremos a abordar. Na prática, tratam-se de versões em capa dura das compilações em capa mole norte-americanas (os trade paperbacks), sendo este um dos principais pontos porque José de Freitas, o editor nacional da G. Floy, constantemente afirma as que as edições nacionais são superiores às originais. Não deixando de lhe dar razão quanto à encadernação, por vezes os erros de tradução, legendagem e revisão, refreiam um pouco estas comparações. No entanto, ao longo desta série, traduzida pelo próprio José Freitas (com exceção do quinto volume) e legendada pelo veterano Rui Alves, os mesmos são escassos e em nada interferem com o prazer da leitura.
Como tínhamos explicado aquando da crítica a Criminal: Livro Dois, a escassez de extras nos trade paperbacks (TPB) norte-americanos das obras de Brubkaer e Phillips tem um propósito. As séries e minisséries do duo têm obrigado a que os leitores olhem com especial interesse para as revistas norte-americanas de BD, os denominados comic books. Já há mais de uma década, desde que a compilação de revistas em livro passou a ser quase praticamente um dado adquirido ao invés de algo veramente excecional que editores e autores têm-se defrontado com uma percentagem significativa de leitores que não adquire as séries em fascículos e aguarda pelo livro – e, entre estes, também há quem aguarde pela simples compilação em capa mole, por uma edição em capa dura ou por uma edição luxuosa de maiores dimensões e repleta de extras. Numa tentativa de inverter a tendência dos extras nas edições mais luxuosas e valorizar mais a publicação em curso das séries em fascículos, Brubaker e Phillips têm colocado nas revistas das suas diferentes séries artigos de vários autores não necessariamente diretamente ligados à história narrada naquele número, mas sobre diferentes temáticas ligadas ao género abordado, época retratada ou outros assuntos. Esses artigos não são apresentados posteriormente nas antologias (ou é apenas selecionado um ou outro), para desespero dos seus fãs que anseiam por edições integrais das suas obras, não tendo outra hipótese se não a de adquirir as revistas, caso desejam ter esses artigos na sua posse. No entanto, as deluxe hardcovers das suas obras têm tido direito a um generoso número de extras, não apresentando, contudo, a maioria dos referidos ensaios.

No caso de Fatale, a série de comic books contou com ensaios de vários autores, incluindo Jesse Nevins, sobre personagens ficcionais e personalidades reais relacionadas com o policial e o noir. Como é apanágio, somente uma seleção destes textos foi reproduzido nas edições deluxe.
No primeiro volume da G. Floy temos direito a um posfácio datado de 2014 de Brubaker. A despedida do autor à série, transforma-se deste modo numa introdução da mesma aos leitores nacionais, principalmente àqueles que desconheciam a série ou os próprios autores. Neste posfácio, Brubaker evoca o comic book #3 da série Criminal (então ainda inédito em Portugal), explicando o quão aquele número o ajudou a encontrar um formato adequado a Fatale, um pequeno projeto que tinha na mente há bastante tempo mas que sempre lhe tinha soado mais a Neil Gaiman que a ele próprio.
Aliás, quiçá tenha sido o fascínio de Brubaker por esse número em especial que tenha originado a obra Bad Weekend, uma versão remasterizada e expandida dos #2-3 de Criminal.
Criminal, um dos expoentes máximos do duo criativo Brubaker e Phillips, demonstrou que estes autores conseguem trabalhar na atualidade o conceito de policial noir como poucos. Quanto a Fatale, cuja protagonista é, como o nome indica, uma femme fatale, Brubaker queria alargar o género com a inclusão da ficção especulativa – o sobrenatural, o misticismo…
A ficção especulativa. Repare-se nos outros 3 títulos iniciais da G. Floy e verifique-se a omnipresença da mesma, seja com elementos de fantasia, ficção científica ou terror. Trata-se de uma área na qual a editora já tinha bastante experiência, inclusivamente no nosso país. Relembra-se que as obras da G. Floy que mais permaneceram na memória coletiva da editora aquando da sua primeira fase no nosso país (2002-2011) foram Orquídea Negra de Neil Gaiman e Dave McKean, Fell – Cidade Selvagem de Warren Ellis e Ben Templesmith ou Hellboy de Mike Mignola.
Se a editora se interrogava como seria a receção dos leitores portugueses quanto a este seu regresso a Portugal após a descontinuação de séries como Hellboy e Fell (esta última não se podendo inclusivamente imputar tal à editora, devido à descontinuação / limbo em que se encontra nos EUA), não o demonstrou. E, 6 anos volvidos, mostrou ser uma aposta claramente vencedora, contrariando a tendência da história da edição de BD estrangeira no nosso país quanto a cancelamentos. Atrevemo-nos inclusivamente a enunciar que é um projeto vencedor, independentemente do que edite, tendo ganho uma legião de fãs que, conheçam ou não os produtos que publica estão disponíveis para lhes dar uma oportunidade. Assim como deram a Saga, Chew e Fatale.

Por vezes, houve uma ou outra questão na edição nacional que pode provocar ao leitor alguma insatisfação quando compara com o respetivo TPB norte-americano, como no volume dois a galeria de capas originais não apresentar as capas em página completa, para se admirar a arte de Phillips em pleno. No entanto, são edições muito próximas dos TPB originais, salutando-se a não inclusão de poluição visual nas capas, cada vez mais recorrente na editora com citações desinteressantes de autores e/ou publicações igualmente desinteressantes, mais próprias de uma contracapa, como, aliás, praticado na série Fatale.
Tendo Phillips realizado capas especiais para os TPB, a G. Floy respeita as mesmas com exceção do último volume, onde opta por utilizar a capa da revista #20. Pessoalmente, concordamos com esta escolha, atendendo a que consideramos a capa do quinto TPB norte-americano a mais desinteressante, sendo a mesma parcialmente reproduzida na contracapa. No entanto, talvez merecesse ter direito a se encontrar no formato completo no interior do volume.
Quanto à série, a mesma corre várias épocas. Logo no primeiro volume, a atualidade e o policial noir dos anos 50 confrontam-se. Os autores tentam ir atualizando o género policial à medida que vão avançando de duas em duas décadas, seja nos anos 70 seja nos anos 90, o que confere narrativa e graficamente um interesse acrescido à história que está a ser contada, enquanto os leitores tentam perceber quem é Josephine, esta aparentemente eterna femme fatale. O arquétipo da mulher fatal, entretanto, é abraçado e, simultaneamente, destroçado pelos autores, sem cair no maniqueísmo, em heróis vs. vilões, nem sequer em anti-heróis. Homens. Mulheres. Uns fatais, outros não.
Como a ilustração da capa do terceiro livro, deixa antever, no meio da saga dá-se uma pausa. Não há nas anamneses lugar a policiais. Os autores exploram o mito que criaram através do tempo. Sem capa, mas com espada na Idade Média. Mas também no Velho Oeste, na Grande Depressão, na Segunda Guerra Mundial. Os autores regressarão a outras épocas quando, mais tarde, evocarem as tentativas de suicídio de Jo.
Mitologia estabelecida, está na altura de apertar os cintos. O projecto, como referimos, era pequeno. Inicialmente pensado para 12 revistas, Fatale “não parou de crescer enquanto a contava, até ter acabado por ter o dobro do tamanho que eu originalmente tinha planeado“, confessa Brubaker. Após um arco na década de 90, de extrema importância para o arco final, Nicholas Lash, o coprotagonista – um entre tantos cuja vida a nossa femme fatale destruiu, física e psicologicamente – encontra finalmente Jo. E o final dificilmente poderia ser outro.
A mestria de Brubaker e Phillips deu as suas provas no nosso país, tendo a G. Floy editado The Fade Out e encontrando-se a publicar a saga Criminal. Mas isso são outras histórias…
Por fim, registe-se a importância da cadência das publicações. Com uma obra já finalizada nos EUA, foi possível à G. Floy programar a edição dos seus 5 volumes, terminando a edição da série 20 meses após seu início. Um bom exemplo de como se deve editar BD estrangeira em Portugal.

imagens: Femmes fatales da autoria de Sean Phillips.

Fundador e administrador do site, com formação em banda desenhada. Consultor editorial freelance e autor de livros e artigos em diferentes publicações.