O primeiro ciclo de Os Passageiros do Vento

O primeiro ciclo de Os Passageiros do Vento

Uma releitura da obra de F. Bourgeon à luz do tema do esclavagismo.

Com a tão esperada publicação do tomo 8 de Os Passageiros do Vento –  O Sangue das Cerejas: Livro 1que inaugura o 3.º ciclo desta série, achei necessário falar do 1.º ciclo da mesma, onde a história toda começa, sobretudo para quem não conhece François Bourgeon. Este autor impressionou-me pela sua mestria, não só no desenho rigoroso, mas também pelo estudo que efectua para dar um realismo ao período que retrata (indo a pormenores como a descrição de um navio em detalhe), assim como as “camadas” de emoções e sentimento que imprime às personagens e como estas interagem, sobretudo as femininas, que são sempre retratadas pela sua independência, luta, desenvoltura e uma recusa permanente do domínio masculino vigente na época.

Foi esta a ideia que fiquei quando embarquei pela primeira vez nos primeiros 5 livros de Passageiros do Vento, estava o século XX a queimar os seus últimos cartuchos.

Cerca de vinte anos volvidos, enquanto assistia à vandalização de monumentos associados ao esclavagismo, vieram-me à ideia as imagens dos livros de Bourgeon e decidi “reembarcar” neles.

O inicio desta Viagem começa pelo livro A Rapariga no Tombadilho. É nele que, logo pelas primeiras páginas, percebemos que estamos em 1780, em plena guerra anglo-francesa, num navio francês, no mar alto, onde viajam secretamente duas mulheres – ISA e AGNES – e HOEL, um marinheiro cuja curiosidade é a porta que Bourgeon usa para o início de toda esta aventura.

Neste tomo, o leitor mergulha na infância da nossa heroína, Isa, e descobre a razão da sua maneira de ser e agir, bem como o início da sua paixão por Hoel, que… (não vou ser spoiler).

Resumindo, há uma batalha naval de um realismo brutal, em todos os sentidos, na qual Hoel, Isa e o médico-cirurgião a bordo, o dr. Michel de Saint –Quentin, caem ao mar e são resgatados por uma fragata inglesa que leva os dois homens  como prisioneiros e Isa como náufraga.

É em Inglaterra que inicia o segundo tomo deste ciclo denominado O Pontão. Isa está livre, mas opta por ficar em Inglaterra, conseguindo mesmo um lugar de explicadora de francês a Mary, filha de uma família aristocrática inglesa, que vive na mesma localidade onde o navio prisão de Hoel e Saint-Quentin está. É com Mary que elabora um plano para a fuga de Hoel e Saint-Quentin da prisão, e depois, a evasão de Inglaterra para França.

É neste enredo tragicómico que Bourgeon volta a dar cartas na ilustração e o texto sublime transmite uma fluidez que nos transporta para dentro do navio. Sem mais delongas, porque prefiro que seja o leitor a buscar essa viagem, apenas digo que chegam a França, Nantes, mais precisamente, todos, sãos e salvos graças ao facto de Saint-Quentin ainda manter algum status e ter amigos influentes, conseguindo que todos, exceptuando ele, prossigam a fuga, desta vez para as costas africanas. Saint-Quentin incumbe Isa de uma missão: a de recolher testemunhos sobre o tráfico de escravos, para a emancipação dos mesmos. É com esta deixa que Bourgeon nos convida a embarcar no Marie-Caroline e entrar num mundo muito sombrio.

Chegamos ao terceiro tomo – A Feitoria de Judá. É a partir deste tomo que esta obra ganha uma nova dimensão. De facto, se nos tomos anteriores acompanhámos as aventuras de Isa, vibrámos com as batalhas e viajámos pela sua história atribulada, agora entramos num mundo mais denso e profundo, despertando-nos para um tema complexo: o da escravatura e, por analogia, o do racismo. Foi difícil, por isso, escolher como começar a falar deste livro, pois é tão duro e belo ao mesmo tempo…

Vou destacar a discussão entre Isa e os oficiais na cabine do capitão a bordo do navio sobre a escravatura, onde Bourgeon nos mostra porque Isa foi escolhida por Saint-Quentin para observar as condições em que se estabelecia o trágico negreiro. Aqui vemos como Isa se afirma entre homens e surge como uma voz da consciência, demonstrando como a escravatura era errada quando todos à sua volta a acham correta.

Voltando à história, a chegada destes novos europeus à feitoria, sobretudo a beleza de ambas as mulheres, causa um certo… burburinho, digamos assim, mas essa é só uma parte da história. A outra começa aquando na negociação em si, pois começamos a perceber que não há uma captura de negros pelo branco, mas sim um negócio do homem branco com poderosos chefes tribais negros, que detêm o monopólio do tráfico e com todo o negócio negreiro, sendo uma questão de oferta e procura que na altura se processava. Bourgeon, nesta altura, já nos tinha habituado ao estilo, era só embarcar na viagem e sentir. E sente-se: desde uma inspeção médica aos escravos a uma realidade de cariz sexual, a homens a querer separar mães de filhos para vender os mesmos separadamente, embora fosse ilegal, tudo dentro de uma aldeia em África, cheia de escravos, negros, brancos, onde abunda igualmente a intriga que nos leva a seguir Isa e uma comitiva a visitar um poderoso chefe negro. Aproxima-se A Hora da Serpente.

É em A Hora da Serpente que percebemos que o povo negro já sofria nas mãos dos seus governantes negros. Isa testemunha isso e comprova que em África as coisas são diferentes e que esse continente muda as pessoas. Ela contudo não cede e a sua personalidade mantém-se inalterável. Apesar de tudo o que vê, não se deixa embrutecer e continua a não aceitar as distinções entre as classes. Gostaria de me alongar mais, mas talvez seja melhor não desvendar demasiado…

Última paragem: Ébano… onde tudo acaba. Ébano é o nome de código dado aos escravos embarcados. Uma vez mais o rigor de Bourgeon é de pasmar. O destino é Cap-Français (no Haiti), onde vemos mais uma vez o homem branco a querer subjugar ainda mais o negro. A bordo do navio, uma protegida negra de Isa é chicoteada violentamente, iniciando um choque que trará consequências gravosas para todos os que estão no navio, um culminar de tempestades que, apesar de tudo, passam e chegam a bom porto. Ébano, o 5.º e último livro do 1.º ciclo, é a paragem final, o desenrolar de tudo, o motim dos negros cativos, o choque de valores e … uma imagem final simples, contudo tão rica.

Terminada esta viagem, verificamos que no título – Passageiros do Vento – já dava para perceber a riqueza da obra. De facto, esta é uma viagem que aconselho ao leitor (e no caso de não ser a primeira vez, convido a uma releitura): procure o primeiro porto, chamado a rapariga no tombadilho, vá até ao pontão e fuja até à Feitoria de Judá, deixe-se enfeitiçar pela Hora da Serpente, e, por fim, embarque com o Ébano

Eis algumas pranchas para aguçar o apetite (clique nas mesmas para as visualizar em toda a sua extensão):

Boa viagem!


Revisão: Paula Nogueira

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