O DVD da série Watchmen da HBO

O DVD da série Watchmen da HBO

Uma série a que ninguém será indiferente.

Mais um lançamento no mercado de home video português. E não é qualquer um! Temos agora acesso à totalidade da mini-série (e não à temporada 1, como se indica na caixa) Watchmen em versão DVD.

Para os mais desatentos, Watchmen é, originalmente, uma banda desenhada criada por Alan Moore e Dave Gibbons em 1986. Em conjunto com Batman – O Regresso do Cavaleiro das Trevas, Watchmen ajudou a redefinir a maneira de contar histórias da indústria americana dos comic books, tornando-a mais adulta, mais “negra” e abordando temáticas mais complexas.

Escrita como resposta ao cenário da Guerra Fria e ao capitalismo desenfreado, que tinha como principal protector o Presidente Ronald Reagan, Watchmen desenrola-se numa realidade alternativa onde os super-heróis reflectem, precisamente, tudo isto. É uma sátira que interroga o gosto dos americanos por heróis violentos e que, de algum modo, glorifica essa tendência, que tem como expoente máximo o desconfortável, desconcertante, mas brilhante, filme Joker de Todd Phillips

A adaptação de Watchmen ao cinema dá-se em 2009 pelas lentes de Zack Snyder que se mantém bastante fiel à obra original, utilizando um estilo neo-noir. O mercado nacional viu publicadas duas versões em DVD: uma normal e outra com uma “caixa” especial com o formato do watchman Rorschach.

Chegamos então à série da HBO.

O criador e guionista Damon Lindelof (mais conhecido por ser o co-criador das séries de culto Lost e The Leftovers) agarra na ideia de Watchmen e, mantendo-se fiel ao trabalho de base da BD, cria uma sequela em nove episódios adaptada à realidade do século XXI.

Agora a questão central já não é a Guerra Fria, mas as questões relacionadas com o racismo.

A acção passa-se mais de três décadas após os eventos dramáticos de Nova Iorque provocados por Adrian Veidt, aliás Ozymandias – que dizima a “cidade que nunca dorme” com um ataque orquestrado para parecer alienígena e conseguir que os EUA e a URSS se unam contra um inimigo comum e assim se evite uma guerra nuclear entre as duas super-potências. A humanidade recupera-se lentamente dessa espécie de 11 de setembro e o plano de Adrian Veidt nunca foi desmascarado. A publicação do diário de Rorschach serviu apenas para alimentar teorias da conspiração e inspirar a criação da Sétima Kavalaria, um grupo supremacista branco que usa máscaras semelhantes à do vigilante e que vive num parque de atrelados chamado “Nixonville”.

O presidente dos Estados (des)Unidos é Robert Redford (mais um actor na presidência americana), um democrata que toma medidas para reparar as injustiças históricas às comunidades negras e que acaba por aumentar o ambiente reaccionário no país.

A tensão culmina na “Noite Branca”, um ataque brutal por parte da Sétima Kavalaria contra a polícia de Tulsa, Oklahoma, na noite de Natal de 2017. Na sequência do atentado, o senador decreta que a polícia passe a ocultar a sua identidade com máscaras e disfarces idênticos às dos antigos vigilantes.

Avançamos dois anos e, na Tulsa de 2019, é-nos apresentada Angela Bar (Regina King), uma aparente esposa e mãe de subúrbio, aposentada da polícia, mas que leva uma vida dupla como a temível Sister Night, que espanca racistas até lhes arrancar informações. No seguimento de uma investigação, ela descobre uma conspiração de décadas que pode alterar o destino da humanidade.

Esta é a maneira mais simplista de apresentar uma obra brilhante que pega no material original de Alan Moore e lhe acrescenta tudo aquilo que lhe parecia subjacente.

Um murro no estômago que trata a questão do racismo de uma forma desconcertante, mas que não se limita a fazê-lo de maneira linear. Damon Lindelof consegue criar, logo de início, um desconforto catártico usando a máxima “black lives matter” numa história onde o polícia é negro e a vítima é branca, ou onde os suspeitos são raptados pela polícia e testados nas suas convicções.

Watchmen é a terceira série de Lindelof a abordar uma sociedade que luta contra traumas não resolvidos. E, nesse sentido, é uma espécie de continuação de Lost (uma história pós 11 de setembro acerca da misteriosa queda de um avião) e de The Leftovers (acerca do desaparecimento de 2% da população mundial).

Pensada, inicialmente, como uma série para várias temporadas, Lindelof escreveu-a como uma mini-série com um “fim definitivo”. Todas as questões principais estão respondidas quando chegamos ao fim do episódio 9.

Embora não seja uma sequela do filme de Snyder, pois refere-se a certos eventos do livro que foram alterados no grande-ecrã, é interessante anteceder o visionamento da série com o do filme (bem como com a leitura da banda desenhada).

O DVD é lançado no 99.º aniversário do massacre de Tulsa de 1921 – sim, o facto é histórico!. O que a HBO não previu foi que seria lançado num período de tensões raciais extremadas e a obrigação de usarmos máscaras.

Com um elenco de luxo, a começar com Regina King e a seguir com Jeremy Irons, Don Johnson, Jean Smart, Tim Blake Nelson, Hong Chau e Louis Gossett Jr., a edição nacional de Watchmen tem três discos e quase 100 minutos de extras. Alguns deles são prometedores, como o “Notas do Artista Gráfico de Watchmen Dave Gibbons”, mas decepcionantes.

Numa série tão meticulosa e com inúmeras remissões, é de lamentar a falta de uma peça que evidencie e desmonte os vários Easter eggs.

Os melhores extras são os “2 Novos Documentários Exclusivos” acerca de Ozymandias e do Justiça Encapuçada, tanto nos comics como na série.

Mas nem por isso deixa de valer a pena comprar esta brilhante série que já recebeu dois Critics Choice Awards em 2020 e está indigitada para 26 (!!!) Emmy Awards, incluindo para Melhor Série Limitada e Melhor Série.

Ousada e arrepiante, Watchmen nem sempre é fácil de ver, mas ao ir adicionando novas camadas de contexto cultural e com um grupo de personagens complexos, extravasa do material original e constrói uma identidade própria.

Ticktock, ticktock.

Boas séries!

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