As Torres de Bois-Maury: 1.º Ciclo

As Torres de Bois-Maury: 1.º Ciclo

A nostalgia das séries de excelência.

Quando a memória cronológica se torna mais difusa, as recordações parecem ganhar uma maior riqueza.

Recordar-me de quando tomei contacto pela primeira vez com a magnífica série As Torres de Bois-Maury, escrita e desenhada pelo consagrado Hermann (o “javali das Ardenas”), é fazer uma viagem doce à adolescência. É recordar ambiências, sabores, cheiros, luminosidades e a excitação que envolviam a leitura de cada novo álbum.

Mas é também relembrar uma Idade Média longe dos cânones hollywoodescos; uma Idade Média crua e dura, sangrenta e suja, com tanto de opulência como de miserabilidade.

Pois, o primeiro ciclo d’ As Torres de Bois-Maury decorre em plena Baixa Idade Média, o tempo também de D. Afonso Henriques e da Fundação da Nacionalidade.

Tendo isto em conta, temos então o nosso protagonista, o cavaleiro Aymar de Bois-Maury, acompanhado pelo seu fiel escudeiro Olivier, numa demanda de desfecho imprevisível. O seu maior desejo é voltar ao senhorio de Bois-Maury, do qual foi espoliado, e poder rever no castelo as “Torres mais belas do mundo cristão”.

Mas a demanda não terá nada de fácil e conduzi-lo-á num périplo tortuoso pelo mundo conhecido. De uma Europa em convulsão às não mais pacíficas terras da Palestina, Aymar enfrentará inúmeras provações e desafios sem nunca perder o seu objectivo – regressar um dia ao seu domínio de Bois-Maury.

Sob um fundo de violência e de gesta cavaleiresca, Hermann oferece-nos uma das suas obras-primas, onde a Idade Média é retratada de forma sanguinária e lamacenta. Mas também como sendo o tempo das grandes catedrais, das colheitas comunitárias, dos abusos e excessos dos senhores feudais sobre os servos, dos ideais de cavalaria e da aventura catártica das cruzadas à Terra Santa, da importante presença da Igreja no quotidiano e da sua influência nas artes e cultura.

É um fresco impressionante num primeiro ciclo de 10 álbuns completamente a cargo de Hermann.

O segundo ciclo tem como argumentista Yves H., o filho de Hermann e, originalmente, tem por título apenas Bois-Maury. Em Portugal, a Vitamina BD deu-lhe, apropriadamente, o título A Herança de Bois-Maury, já que é composto por 5 álbuns, todos eles focando-se num descendente de Aymar.

Vamos aos álbuns!

1 – BABETTE

Originalmente, é publicado em álbum em outubro de 1984 pela Glénat. Em Portugal, aparece pela primeira vez em álbum em 1988 na Meribérica.

Neste primeiro álbum, seguimos em paralelo a vida do cavaleiro Aymar de Bois-Maury e de Germain, um jovem pedreiro. Vidas que acabam por se enredar quando Germain é acusado de ter morto o cavaleiro Geoffroy que tentava violar a jovem camponesa Babette (que dá o nome ao álbum).

Entretanto, o filho do senhor feudal Eudes chora a morte do amigo e submete Germain ao Julgamento de Deus mergulhando-lhe a mão em água a ferver, mão que se deverá curar por justiça divina caso ele seja inocente.

O cavaleiro Aymar acaba por vir em ajuda de Germain que lhe pede para proteger Babette. Mas esta já tinha sido espancada até à morte pela sua família.

Então, Aymar toma as rédeas da vida de Germain e desafia para um duelo o filho do Senhor Eudes. Se ganhar o duelo, Germain será libertado. Se perder, ambos serão mortos. Aymar acaba por matar o jovem cavaleiro mas cai em desgraça perante o Senhor Eudes que, por sua vez, liberta Germain, mas bane-o das suas terras.

Aymar retoma o caminho de Bois-Maury enquanto Germain, depois de provocar um grave acidente numa obra, acaba por se juntar a um grupo de três ladrões.

Com este primeiro álbum, Hermann pretende estabelecer de imediato o tom da série. E fá-lo usando, por um lado, a imagem sublimada de uma época e, por outro, uma imagem que se foca na brutalidade e sofrimento do quotidiano de então.

Temos assim, condensado magistralmente na mesma história, servos, nobreza, clero, pedreiros livres, criminosos, mendigos. A aplicação da justiça, a defesa da honra, os ideias de cavalaria, a vida miserável dos servos, os focos de difusão de cultura e a construção de catedrais (uma cena de grande beleza e a minha favorita). Tudo concorre para criar este álbum memorável.

Tecnicamente, Hermann consegue criar em cada vinheta imagens que se gravam na retina e nos acompanham por anos a fio. E, invariavelmente, a sequência de vinhetas toma a forma de uma composição capaz de nos contar a história sem recorrermos ao diálogo.

Os planos mais complexos (como o plongée da catedral) são sabiamente dominados e a colorização, ainda que datada, é não só inteligente como eficiente.

E o traço de Hermann aproxima-nos da crueza da realidade.

Sem dúvida, esta álbum justifica o porquê de Hermann ser, ainda hoje, um dos meus preferidos na BD franco-belga.

2 – ELOISA DE MONTGRI

Publicado originalmente em álbum pela Glénat em novembro de 1985. Em Portugal tem uma primeira edição em 1988 na Meribérica.

Ao mesmo tempo que o inverno fustiga a região de Caulx, um bando de salteadores, conduzido por um pastor disfarçado com a cabeça de um bode, assalta, pilha e incendeia o castelo e as casas à sua volta.

Castelo e casario envolvente começam a ser rapidamente reconstruídos pelo jovem Basílio de Caulx, único sobrevivente do castelo, e pelos sobreviventes da aldeia.

É neste ambiente que chegam Aymar e o seu escudeiro Olivier numa terra sedenta de vingança.

Ao mesmo tempo, vinda da Catalunha, chega também uma mulher enigmática, Eloisa de Montgri, que irá orientar os aldeões.

Aymar e Eloisa têm o destino entrelaçado, ainda que por breves momentos…

Embora mais contido que o álbum anterior em termos do fresco medieval traçado, este segundo volume de As Torres de Bois-Maury vai-nos mostrando, para além da trama central, uma aldeia em reconstrução, um jovem nobre que tenta ir impondo a sua autoridade, os camponeses que vão sobrevivendo dia após dia e os bandos de salteadores que aterrorizavam as terras para lá do termo das localidades.

Devido ao carácter da história, as pranchas são agora mais sombrias, o argumento mais circunscrito e as cores menos saturadas.

Mais um bom álbum da colecção com algumas imagens memoráveis.

3 – GERMAIN

Publicado originalmente em álbum em novembro de 1986 pela Glénat. Em Portugal tem a primeira edição em 1990 na Meribérica.

Aqui reencontramos Germain e o grupo de ladrões a que se juntou no final do primeiro álbum. Juntos. preparam o assalto a um mosteiro com o intuito de roubarem todos os bens valiosos lá existentes.

Depois de serem bem-sucedidos com a preciosa ajuda de Alda, Germain e os seus companheiros são perseguidos de modo implacável por Favard, homem de armas violento e brutal.

Em paralelo, Aymar e Olivier prestam-se a escoltar um mercador e sua mulher a Santiago de Compostela. Pelo caminho encontram um bebé que é “adoptado” pelo casal.

A força deste álbum está, quanto a mim, na perseguição por uma Espanha árida, num ambiente sufocante e seco, com sublimes paisagens montanhosas e personagens que transpiram a cada minuto.

O álbum é rude, com tanto de trágico como de belo. E o combate pela vida quase soa a uma balada de gesta cavaleiresca.

Para muitos, este é o melhor álbum do primeiro ciclo.

4 – REINHARDT

Publicado originalmente em álbum em 1987 pela Glénat. Sem edição em Portugal.

Aymar de Bois-Maury e o seu escudeiro Olivier, escoltando o mercador e a sua mulher, preparam-se para atravessar os Pirenéus quando se cruzam com Reinhardt, o cavaleiro alemão que salvam de uma emboscada.

Reinhardt, arquétipo do cavaleiro corajoso e cheio de si mesmo, junta em si tanto de bravura como de tolice.

Depois de escoltar os dois peregrinos até ao porto de onde partirão para Bordéus, Aymar decide ajudar Reinhardt na sua demanda pelo feudo que acaba de herdar de seu pai e que foi usurpado pelo seu irmão.

Por fim, Aymar e Olivier acabam por se reencontrar com o mercador e a sua mulher em Bordéus.

Esta é uma história de traições, de lutas fratricidas, mas também de companheirismo e coragem.

Um álbum sombrio e violento, com várias reviravoltas e onde Aymar tem, por fim, um lugar preponderante na história.

5 – ALDA

Publicado originalmente em álbum em 1989 pela Glénat. Sem edição em Portugal.

Aymar, sempre acompanhado do seu escudeiro Olivier, desloca-se ao castelo do seu velho amigo, Yvon de Portel. As terras deste foram devastadas pela peste e resta-lhe um punhado de fiéis cuja amizade parece basear-se no interesse.

Mas o encontro de amigos termina com Aymar e Olivier a serem atirados para uma cela.

Acabando por conseguirem fugir, são perseguidos pelos homens de Yvon de Portel, dos quais faz parte Germain, mas conseguem escapar. Já Germain é perseguido e capturado por Alda que não quer mais que o proteger dos seus novos “amigos”.

A atmosfera deste álbum é pesada e opressiva e, nesse sentido, cria algum desconforto ao leitor.

Os vários protagonistas que foram evoluindo individualmente nos álbuns anteriores acabam agora por se voltar a cruzar.

A nível artístico, o traço está mais apurado e as cores saturadas dos primeiros quatro volumes são abandonadas e dão lugar a uma paleta mais realista.

6 – SIGURD

Publicado originalmente em álbum em janeiro de 1990 pela Glénat. Sem edição em Portugal.

O cavaleiro Aymar, na companhia do seu escudeiro Olivier e do seu amigo William Landry, dirige-se para o castelo do Senhor Harold Landry, na costa da Normandia. Aí, por entre as brumas constantes, experimentam a visão de um barco a naufragar nas rochas ao mesmo tempo que surge um estranho cavalo branco.

Este álbum funciona um pouco à parte do resto da série já que se reparte entre a vida no castelo e a vivência dos mitos pagãos. O nevoeiro, por si só, é um personagem que traz para o quotidiano a presença de Odin, de Thor ou de Loki.

Apesar da narrativa poder decepcionar os fãs da série, habituados a situações mais prosaicas e menos fantásticas, Hermann não abandona a autenticidade dada à vida de cavaleiro nem a excelência no desenho de paisagens feitas de nevoeiro, de vento e de sal.

7 – WILLIAM

Publicado originalmente em álbum em dezembro de 1990 pela Glénat. Sem edição em Portugal.

Na companhia do seu escudeiro Olivier e do seu amigo William, Aymar de Bois-Maury parte de Inglaterra com destino a Bruges, na Flandres, para aí se reunir com o corpo expedicionário que seguirá para a Terra Santa em cruzada.

Ficando doente, Aymar fica para trás e William segue caminho. Pouco depois, o cavaleiro de Bois-Maury recupera e retoma a viagem, juntando-se a si e a Olivier o abrutalhado, mas simpático, cavaleiro Hendrick e um punhado de peregrinos.

Grande parte da história passa-se na Europa central onde o grupo enfrentará várias provações. O cansaço e a fome, o sofrimento e a dor, os logros, as atrocidades cometidas pelos cruzados ao longo do caminho e a defesa dos peregrinos são tratados com o talento habitual de Hermann

8 – LE SELDJOUKI

Publicado originalmente em álbum em abril de 1992 pela Glénat. Sem edição em Portugal.

O cavaleiro Aymar e o seu grupo estão agora na Anatólia onde, com os peregrinos que os acompanham, capturam um seljúcida. Este acaba por escapar e avisar os seus.

Trava-se um terrível combate com os seljúcidas e Miltiades; um bizantino companheiro de estrada de Aymar acaba por salvar-lhes a vida ao sacrificar-se. E com o seu sacrifício, consegue pôr um fim ao conflito que opõe cruzados e seljúcidas.

Neste álbum, Hermann aborda não só o drama das Cruzadas, como o problema do fanatismo (igualmente repartido pelos dois campos) e o importante papel de Bizâncio como fiel da balança. As traições, as mudanças de aliados, os inúmeros actos de barbárie condimentam a narração suportada pelo traço e pelas cores incríveis que Hermann dá a este álbum.

9 – KHALED

Publicado originalmente em álbum em abril de 1993 pela Glénat. Sem edição em Portugal.

Há vários meses que o senhor muçulmano Yazid-al-Salah cerca a fortaleza onde se refugiou o senhor cristão Bernard de Mance com os seus homens.

Apesar de todos os seus apelos, nenhum cruzado vem em seu auxílio excepto Aymar e os seus companheiros, que tentarão organizar o levantamento do cerco.

Entretanto, nas sombras actua o traidor da causa cristã, Fayrnal, aliado ao traidor muçulmano Faouzi.

Aymar encontra-se assim metido numa perigosa aventura na qual todos parecem fazer jogo duplo.

Este nono álbum, que fecha o périplo pela Terra Santa, é rico em traições, combates encarniçados, cercos e armadilhas. No final, Aymar, Olivier e Hendrik partem rumo à Europa para cumprirem o seu destino.

O estilo de Hermann mantém-se tão poderoso quanto elegante e o domínio da cor é por vezes tão monocromático como por outras é sumptuoso.

10 – OLIVIER

Publicado originalmente em álbum em abril de 1994 pela Glénat. Sem edição em Portugal.

Com este décimo álbum fecha-se o primeiro ciclo de Bois-Maury.

Regressado da Terra Santa, Aymar, tendo agora encontrado fortuna e tomado mulher (entretanto grávida), sonha mais que nunca em reconquistar as suas terras.

Hospedado no domínio de Gontrand, seu amigo e vizinho das suas terras, Aymar acaba por se cruzar com o usurpador das suas Torres e desafia-o para um combate. Mata-o. A sua mulher é raptada pelo irmão de Gontrand. Mas acaba por ser salva pelo fiel escudeiro Olivier, não antes de este se bater contra o ciúme e ser tentado pela traição.

Um álbum sólido, ao mesmo tempo poético e cruel.

O cenário é de outono como que anunciando o fim do ciclo.

Os dois personagens centrais são representados com todas as suas forças e fraquezas.

E a demanda é terminada sem Hermann nunca ter desenhado as famosas Torres de Bois-Maury.

A penúltima vinheta abre caminho ao segundo ciclo. Nela vemos o filho de Aymar acabado de nascer.

EXTRA

Não posso fechar este artigo sem vos apresentar brevemente a edição integral do primeiro ciclo de As Torres de Bois-Maury que a Glénat publicou em 2013.

São 442 pranchas a preto e branco e uma secção de bónus com 36 ilustrações a cores. A encadernação é sólida, as páginas são cozidas e aplicou-se um fitilho. A capa é impressa em relevo e ouro.

Um must para colecionadores!

Tendo nos anos mais recentes algumas editoras nacionais renovado a aposta na banda desenhada franco-belga, entre a publicação de séries inéditas, a retoma de séries canceladas no passado e/ou a edição de integrais – incluindo a publicação a preto e branco dos três integrais de Comanche com traço do próprio Hermann – talvez esse tipo de edição integral esteja mais próxima de ser publicada em Portugal atualmente do que no passado.

Continua com o segundo ciclo…

2 comentários em “As Torres de Bois-Maury: 1.º Ciclo

Deixa um comentário