Resenha sobre a antologia de trabalhos de Don Rosa.
É curioso, antes de mais, que oito histórias que, a serem publicadas em revistas periódicas da Disney, continuariam a ser boas histórias mas passariam bastante discretamente, se tornem, quando reunidas num volume como este, As Melhores Histórias de Donald & Patinhas por Don Rosa, numa edição merecedora de leitura atenta e garante de umas boas horas de prazer.
Trata-se de uma edição de luxo, com papel de boa qualidade e encadernação em capa dura como não me lembro de alguma vez ter visto em Portugal para a banda desenhada Disney. Distingue-se também pelo formato, maior do que o formato reduzido habitual nas revistas Disney, e que considero até grande demais. Talvez eu esteja demasiado habituado ao formato dos comics americanos, mas para mim teria sido este o ideal. No entanto, o formato grande não foi uma desvantagem: este não é o tipo de livro que se leva na mochila para ler no comboio ou na praia e, entre grande e pequeno, decididamente a leitura em formato superior é mais agradável e condigna das histórias nele contidas.
O revés disto é que o livro foi mais caro do que os comuns leitores de “histórias do Patinhas” estarão dispostos a pagar. O livro não se tornou uma coleção – o que teria sido um sonho -, mas, caso a intenção fosse essa, o preço decerto teria complicado os planos de muitos leitores. No entanto, como mais importante aqui não são as divagações de índole comercial/editorial, termino-a por aqui.
O autor destas histórias, Don Rosa, é por muitos visto como o mais fiel sucessor de Carl Barks, o argumentista e desenhador de centenas de histórias que construiu e deu densidade ao lado dos Patos do universo Disney. O próprio Don Rosa se considera como que o grande depositário do legado de Barks, trabalhando com o maior respeito pelo cânone estabelecido por este.
Esta reputação deve-se a várias características das suas histórias que estão aqui bem presentes. A primeira tem a ver com a admiração declarada pela obra de Barks, que faz Don Rosa introduzir referências a histórias daquele autor. Ao estabelecer entre umas e outras uma continuidade temporal efetiva, Rosa vincula a sua obra à de Barks.
Outra característica muito evidente, para quem conhece as histórias de Barks, é a dimensão épica. Encontramo-la nas aventuras que levam os patos para os cenários mais exóticos, como os confins inexplorados da Índia de “O tesouro dos dez avatares” ou os mares caribenhos de “O tesouro sob o vidro”. Mas isto não significa que as histórias passadas na quotidiana Patópolis sejam desprovidas da mesma grandiosidade, pois esta cidade, graças a estas personagens, de prosaica nunca tem nada. É o caso, por exemplo, de “O solvente universal” e “O incrível forreta miniaturizado”, em que senti como nunca nas inúmeras histórias Disney que li ao longo dos anos uma verdadeira sensação de perigo para as personagens. Don Rosa coloca os patos em situações tais, que o drama se torna mesmo real, ainda que as soluções para escaparem a elas sejam tantas vezes fantasiosas como só num mundo em que os animais são humanizados podia acontecer. Por isso, tenho de reconhecer que, ao nível da construção narrativa, Don Rosa supera, nestas histórias, o grande mestre. Convenhamos, contudo, que os tempos são outros: Barks escrevia (nos anos 40 a 60) para um público que se divertia com aventura e piadas; já Rosa escreve num tempo em que, além disso, o público está apto a acolher uma certa dose de drama (faz-me pensar na cena do Toy Story 3 em que parece que vai mesmo ser o fim para as personagens).
Mas Rosa também é capaz de humor. É constante, seja em pequenos apontamentos discretos nas vinhetas, que acrescentam camadas à fruição destas histórias, seja declaradamente no centro da ação, como em “Acontece no arranha-céus Patinhas”, uma história protagonizada pelo Donald.
Além das influências na escrita dos argumentos, a sombra de Barks paira no próprio estilo de desenho de Rosa. A Barks, Rosa vai também buscar o ambiente: apesar de serem histórias escritas muito recentemente, as personagens continuam a viver num espaço mais identificável com os anos 50 ou 60 das histórias do mestre Barks. Não se espere ver telemóveis e muito menos internet aqui.
Na sua enorme admiração pela obra de Carl Barks, Don Rosa consegue igualar o mestre a vários níveis, mas ficar-se por aí não seria mais do que imitar a obra-prima. O grande mérito deste autor é justamente, em virtude daquela admiração, ampliar a construção do universo dos Patos para a quarta dimensão – a do tempo (a que as histórias Disney sempre pareceram imunes) -, revelando-nos as linhas com que se fez o passado deste universo, como por exemplo em “Os guardiões da biblioteca perdida”, e das personagens, de que temos até uma árvore genealógica para nosso deleite.
Se o título “As Melhores Histórias…” é adequado ou exagerado, é algo aberto a debate. Da minha parte, mesmo dentre as histórias da lavra de Don Rosa, creio haver melhores (penso na mítica “A Saga do Tio Patinhas”, em particular), mas não tenho dúvidas de que estas são algumas das melhores e, para mim, isso chega para esta edição merecer 5 estrelas.
Formou-se em História da Arte e não sabe qual é a sua arte favorita. Já qual aprecia há mais tempo é fácil: a banda desenhada, que descobriu antes de aprender a ler. Faz da palavra a sua ferramenta, sendo freelancer na área editorial e da cultura. Em paralelo, continua a alimentar paixões, pela BD e pela literatura, pelo cinema, pelo canto, entre muitas outras.