O segundo ciclo de Os Passageiros do Vento

O segundo ciclo de Os Passageiros do Vento

A aventurosa e emocionante história das duas Isas.

Tenho de começar por dizer que o primeiro ciclo de Os Passageiros do Vento foi aqui brindado, há muito pouco tempo, com um artigo de Rui Vasco Cunha. Artigo esse que me trouxe à memória muitas recordações de leitura, de ideias, de sensações, de cor. É que esta saga, escrita e desenhada por François Bourgeon tem, entre muitos, o mérito de não deixar ninguém indiferente e de conseguir que até os cheiros consigamos sentir (ou imaginar) e que as emoções dos personagens nos toquem de maneira indelével.

Escusado será então falar dos primeiros cinco álbuns que compõem o primeiro ciclo de Os Passageiros do Vento (embora haja sempre algo a dizer). Apenas relembro que no último segundo, do último álbum, na última página, na última vinheta… ficamos numa sexta-feira, a 29 de março de 1782 e Isa corre na praia, livre, debaixo de uma chuva torrencial.

Vinte cinco anos depois, no tempo do leitor, e oitenta e um anos mais tarde, no tempo dos personagens, François Bourgeon retoma a viagem de Os Passageiros do Vento num segundo ciclo. Um díptico que intitula de A menina de Bois-Caïman.

Estamos em 1863. Oitenta e um anos após termos deixado Isa numa praia das Caraíbas. O local é agora os Estados Unidos, uma jovem nação com menos de cem anos que se encontra em plena Guerra de Secessão.

Isabeau é uma jovem sulista a quem os escravos chamam carinhosamente de Miss Zabo. A guerra não lhe poupa casa nem propriedades e a jovem de dezoito anos, de cabelos de fogo, independente e corajosa, vê-se obrigada a abandonar Nova Orleães.

Do lado dos Confederados, a irreverente Zabo não tem papas na língua e chega a mostrar as suas opiniões contra os unionistas do Norte a oficiais do exército da União. Também não esconde o seu desagrado pelas ideias da abolição da escravatura, ou não fosse uma menina culta do Sul.

Independentemente das suas ideias, Zabo cativa-nos com a sua personalidade forte e determinada, ainda mais quando decide atravessar parte dos Estados Unidos, por terras da Louisiana, através de campos devastados, estradas destruídas e pejadas de salteadores e de soldados que, a maior parte das vezes, não são a melhor companhia. O objectivo é ir ter com o seu irmão Nano a Lananette, residência da sua antepassada a Sr.ª Marnaye.

A meio da viagem trava conhecimento com Quentin Coustans, fotógrafo e erudito francês que a acompanhará durante o “caminho” que será muito mais que um mero percurso quilométrico. E por ele conhecerá ideias que não lhe agradam, nem por isso deixando de simpatizar com Quentin cada vez mais.

E é neste momento que ficamos verdadeiramente a saber que Zabo está a ir ao encontro da sua bisavó e que este segundo ciclo ganha outro fôlego em termos de continuidade, pois será uma questão de mais ou menos páginas até reencontrarmos a morena Isa que nos finais de 1700 deixa a França, aventura-se em África e acaba numa praia do Novo Mundo, depois de passar por perseguições, tempestades, batalhas navais, motins, revoltas de escravos, amores e desamores. A bela Isa que tem agora 98 anos.

O encontro entre as duas é algo frio e distante, até porque é a primeira vez que Zabo vê a bisavó. Entre divergências e filosofias de vida aparentemente antagónicas, só com a narrativa já avançada Bourgeon oferece ao leitor aquilo porque todos anseiam: conhecer a vida de Isa, cuja narrativa fora interrompida numa praia do Haiti e que é agora retomada pela leitura que Zabo faz dos seus escritos e pelo que a bisavó lhe conta. E é através desta longa viagem das Caraíbas à Louisiana que Zabo conhecerá a fibra de Isa e que a começará a olhar sob uma nova perspectiva.

Um regresso ao século XVIII, para conhecermos os factos que antecedem e sucedem Ébano, e que avançam, de forma tantas vezes trágica, por mais de metade do século XIX. Factos esses que não comentarei aqui de modo a permitir ao leitor mergulhar neles por si só pela primeira vez.

No segundo livro de “A menina de Bois-Caïman”, Bourgeon vai estreitando paulatinamente os laços entre Isa e Zabo à medida que esta se vai embrenhando inelutavelmente no universo da bisavó.

De como Isa construiu a sua casa nos pântanos Marangouins (que, como o nome indica, são densamente povoados por mosquitos), como conheceu Jean, o seu marido, e como constituiu família, o destino trágico da sua filha mestiça que a deixa física e psicologicamente vencida durante cinco anos, tudo é revelado a uma bisneta atónita e emotivamente tocada.

Todas as perguntas que poderiam ser colocadas no volume anterior são aqui esclarecidas, muitas vezes com uma economia extraordinária de texto e imagens. Eventos cruciais na vida de Isa são assim, por vezes, relatados em pouquíssimas vinhetas, mas de forma magnífica.

Não se julgue, no entanto, que Zabo é mera personagem figurativa, pois dela vamos conhecendo uma dupla sensibilidade que advém da educação sulista tradicional de uma mãe, por um lado, algo progressista, e de um pai mais tradicional, médico e proprietário de plantações. E é essa dupla sensibilidade que lhe vai permitindo duvidar regularmente e olhar a vida de vários ângulos.

E no fim, depois de todas as pontas amarradas, ficamos a conhecer o destino das duas Isas.

Escrita, desenhada e colorida por François Bourgeon ao longo de 6 anos, A menina de Bois-Caïman trata, em grande parte, da questão da escravatura e da mestiçagem.

Mas a narrativa brilhante de Bourgeon vai muito mais além, aproveitando-se das personagens para relatar factos históricos que lhe interessam (como é a Guerra de Secessão) ou deixando as personagens apropriarem-se de tais factos ou de momentos específicos da narrativa para a fazerem evoluir.

Um bom exemplo disto é, precisamente, a maneira como a Guerra de Secessão é retratada. Não há grandes batalhas, decisões políticas ou destinos históricos traçados por generais ou presidentes. A Guerra é apenas aquilo que passa sob os olhos atentos de Zabo: um ou outro canhão abandonado na beira da estrada, encontro com soldados desertores ou bandos de salteadores. Nesse sentido, os seus olhos são os do leitor.

Os avanços e recuos no tempo surgem de forma natural e não precisamos de ver caixas com datas para perceber a transição subtil no salto temporal de várias décadas. Zabo pergunta à bisavó hoje e a resposta aparece ontem, em forma de flashback.

Os dois tempos da narrativa, mais complexa que a do primeiro ciclo d’ Os Passageiros do Vento, tornam-na igualmente eficaz. Diálogos muitas vezes curtos, mas que atingem o ponto nevrálgico de cada situação. Ou, simplesmente, a ausência deles, dando lugar à narrativa exclusivamente desenhada.

É nítida a pesquisa histórica feita por Bourgeon. Seja nos textos em crioulo haitiano ou no dialecto cajun; seja nas roupas, nos costumes, nas armas, nos animais que povoavam o Mississípi, tudo é tratado ao mais ínfimo pormenor, aliás como já tinha sido feito de maneira brilhante no primeiro ciclo da série – sendo, para mim, um dos pontos altos o desenho dos navios de guerra ou de navios negreiros.

Em termos narrativos, o facto de uma das heroínas ter 98 anos e conhecermos algum do seu passado, permite a Bourgeon contar “uma história de transmissão, de mostrar dois temperamentos rebeldes que se encontram e se reconhecem, apesar dos anos que os separam”, como disse em entrevista de 2009.

E se as duas Isas estão separadas por 80 anos, nem por isso deixa de persistir na mais jovem o espírito que nos encantou nas aventuras da Isa mais velha relatadas no primeiro ciclo.

E agora o ciclo repete-se – duas jovens de 18 anos, separadas por quase um século, a iniciarem a aventura de uma vida.

Quanto a Isa, o seu rosto carrega agora as agruras do tempo. Mas o traço de Bourgeon faz-nos crer que a sua beleza e sensualidade escaparão a qualquer momento da prisão das rugas, pois a centelha da vida permanece intocada.

O desenho de Bourgeon continua magnífico, detalhado, irrepreensível. Cada vinheta deve ser admirada como arte que é, deixando a história para um segundo momento ou vice-versa. E, num todo, a planificação é extremamente eficaz, incutindo à história desenhada os ritmos da história escrita.

De várias formas tocante, o segundo ciclo de Os Passageiros do Vento, faz-nos sorrir, pisca-nos o olho, cria-nos angústia e desespero por vezes, e guia-nos até um emocionante final que, inevitavelmente, nos deixa enfartados com o sabor amargo da tristeza.

A história das duas Isas, envolvidas ora nas águas revoltas do Atlântico ora nas águas traiçoeiras do Mississípi, é uma história que, tal como a sua antecessora, só pode carregar o epíteto de “clássica”, no sentido de incontornável para todo o sempre.

No final de 2009, quando perguntaram a François Bourgeon qual seria o futuro da série, ele disse que o segundo volume de A menina de Bois-Caïman poria um ponto final nos Passageiros do Vento. “Não quero fazer com que Isa viva 150 anos. E não tenho vontades particulares em relação a Zabo.”

Sabemos agora que o tempo se encarregou de lhe mostrar que estava errado. O Sangue das Cerejas, livro 1 está aí a prová-lo.

Deixa um comentário