A Colecção Comic Heart de A Seita: os primeiros 3 livros

A Colecção Comic Heart de A Seita: os primeiros 3 livros

Resenha às 3 primeiras obras da coleção.

Um dos fatores catalizadores para a criação da cooperativa editorial A Seita foi a reformulação estrutural da G. Floy, com o encerramento da Jensen International Christine Meyer S. L., sita em Maspalomas, Grã Canária, Espanha. A G. Floy passou deste modo a ser uma chancela da polaca Mucha Comics, tendo transitado os negócios para a Varsóvia.

Quanto ao trabalho editorial de autores portugueses, realizado por José de Freitas e Bruno Caetano naquela editora, transitou então para A Seita, mais especificamente para a Colecção Comic Heart.

Na prática, o projeto não sofreu alterações e, se antigamente as edições de autores portugueses não se encontravam alocadas na G. Floy a nenhuma coleção e eram editadas oficialmente enquanto coedições da G. Floy e da Comic Heart, o facto das novas edições passarem a ser editadas enquanto obras da Colecção Comic Heart n’ A Seita é mais um resultado da contextualização do projeto, por motivos alheios ao mesmo, do que uma mudança de estratégia no plano editorial de Freitas e Caetano.

Deste modo, atendendo à continuidade do projeto, os editores até encaram existir alguma artificialidade em separar a nova Colecção Comic Heart dos antigos livros coeditados pela G. Floy e Comic Heart, atualmente no catálogo d’ A Seita.

Independentemente de tal, até ao momento A Seita editou três obras na referida coleção. As primeiras duas tiveram direito a lançamento em outubro do ano passado, durante o Festival Amadora BD 2019, ambas com direito a exposição no evento.

A Assembleia das Mulheres adapta a homónima peça de teatro de Aristófanes à banda desenhada, pela mão de Zé Nuno Fraga. Sobre ela, já escrevemos:

A divertida peça de teatro milenar Ἐκκλησιάζουσαι de Aristófanes é transposta para a BD nesta curiosa obra de Zé Nuno Fraga, na qual não se perde nem a crítica social nem a escatologia.

– Nuno Pereira de Sousa (Bandas Desenhadas, 30 de junho de 2020)

A obra de Aristófanes ilustrada com todo o humor que merecia!

– Susana Figueiredo (Bandas Desenhadas, 30 de junho de 2020)

É com esta obra que Fraga se apresenta ao grande público nacional, num livro totalmente elaborado por si, apesar de, segundo a sua biografia, já ter experimentando anteriormente o meio da banda desenhada e chegado à conclusão que não se deveria ocupar de argumentos da sua autoria que não as adaptações.

Apesar do autor manter os textos da peça, não lhe interessou desenhá-la enquanto uma peça de teatro, imaginando como seria representada a sua primeira apresentação em 391 a.C., em Atenas. Uma diferença fundamental seria a de se ter apenas homens a representar a mesma. Desse modo, Fraga não está limitado a equacionar cenários e poupar-se nos detalhes deste, tentando diluir as limitações de um palco e transcender a ação para uma vera cidade.

Sem nenhuma contextualização da obra nem das preocupações dos atenienses na época em que foi escrita, poder-se-ia pensar que a peça advoga o empoderamento político-social das mulheres. Tal não está mais longe da verdade. Assim como as referências escatológicas, também o envolvimento das mulheres na política e as alterações propostas ao seu papel na sociedade é realizado como matéria para comédia – aliás, Aristófanes utiliza-o também em outras obras suas, um conceito que também não era estranho a Sófocles.

Apesar do humor da peça, desconhecemos se existirão muitos leitores interessados em ler o texto original de Aristófanes (presumimos que de alguma tradução não identificada) em balões. Se sim, esta é uma proposta perfeitamente adequada. Os demais, provavelmente curiosos com um novo registo da Antiguidade, decerto se regalarão com as ilustrações, que largamente superam o que normalmente se espera de um primeiro trabalho conhecido.

O segundo livro lançado no Amadora BD 2019 com direito a exposição foi Andrómeda ou O Longo Caminho para Casa, a edição em língua portuguesa da edição de autor de Zé Burnay. Sobre esta obra já escrevemos:

A versão portuguesa de Andromeda de Zé Burnay é editada de forma a permitir apreciar a arte do autor em todo o seu esplendor. E que arte!

– Nuno Pereira de Sousa (Bandas Desenhadas, 30 de junho de 2020)

Uma imagem vale mais que mil palavras. A célebre expressão de Confúcio ajusta-se perfeitamente a esta brilhante narrativa gráfica da autoria de Zé Burnay.

– Rodrigo Ramos (Bandas Desenhadas, 29 de fevereiro de 2020)

Arte no seu esplendor.

– Susana Figueiredo (Bandas Desenhadas, 29 de fevereiro de 2020)

Se é um facto que a edição de luxo em língua inglesa da primeira edição de autor (que incluía inclusivamente um CD de áudio) foi galardoada com o Prémios Bandas Desenhadas 2019 na categoria de Melhor Edição, a edição em língua portuguesa teve o cuidado de manter a maioria das ilustrações dos convidados, colocar quatro novas ilustrações de autores portugueses e aprimorou-se na capa e papel, constituindo uma edição que se destaca para o grande público a um preço menor. É também de louvar a produção de sobrecapas para esta edição em capa dura quando se aperceberam de um erro ortográfico na lombada, revelando um respeito pelo autor e os seus leitores, nem sempre presente noutras editoras.

Ao longo de 4 anos, Burnay desenhou minuciosamente cada uma das vinhetas com um resultado final que não deixa indiferente nenhum dos leitores desta obra de ficção especulativa. Apesar do autor já ter publicado alguns dos seus trabalhos em antologias e no circuito alternativo, este é o primeiro livro do autor destinado ao grande público, que, após conhecer esta obra, certamente tentará encontrar as suas bandas desenhadas ou trabalho ilustrados nas livrarias em antologias da Chili Com Carne, Kingpin e Saída de Emergência. A edição d’ A Seita permite materializar a necessidade imperiosa de uma obra assinada por Burnay no canal livreiro.

O terceiro livro desta coleção é o perfeito exemplo da continuidade do trabalho de Freitas e Caetano. Trata-se do quarto volume da TLS Series, desta vez intitulado Raízes e com trabalhos de Ana Branco, Bárbara Lopes, Filipe Andrade, Marta Teives, Nuno Saraiva, Pedro Moura, Quico Nogueira e Ricardo Cabral. Anuncia-se como o último volume deste corpo antológico baseado nos atuais e antigos integrantes do The Lisbon Studio. Sobre esta obra, já escrevemos:

Raízes foi o volume que mais me deu prazer ler da TLS Series, dado a maioria das vezes evitar a sensação de montanha-russa no que toca à qualidade das diferentes bandas desenhadas.

– Susana Figueiredo (Bandas Desenhadas, 31 de julho de 2020)

TLS Series despede-se, provavelmente, com o seu melhor número, em termos de equilíbrio das propostas apresentadas.

– Nuno Pereira de Sousa (Bandas Desenhadas, 31 de julho de 2020)

Inclusivamente, a obra encontra-se nomeada para os Prémios Bandas Desenhadas 2020 na categoria de Melhor Antologia, bem como uma das suas BD – “Sem Cuecas nem Soutien”, da autoria de Nuno Saraiva – está nomeada na categoria de Melhor BD Curta em Antologia.

Lançado no final de junho de 2020, oito meses após os primeiros dois livros da Colecção Comic Heart d’ A Seita, é editado num mundo com características muito particulares e distintas do do ano passado, com novas regras ditadas pela pandemia de COVID-19.

Dos diferentes trabalhos apresentados, destacamos vários, incluindo obviamente a BD nomeada. Se o desenho de Saraiva dispensa apresentações, nesta pequena BD tem um olhar tanto nostálgico como crítico à infância de toda uma geração que se banqueteava com um infindável desfilar de propostas da RTP, das animações às séries e filmes de aventuras, sobre as quais se inventavam divertidas canções de gosto duvidoso ou se emulavam as brincadeiras com índios, cowboys e os demais brinquedos disponíveis. Saraiva, como por magia, permite uma viagem no tempo que não deixará ninguém da sua geração indiferente.

Filipe Andrade, por sua vez, regala-nos o olhar com “Solitude” numa BD muda (leia-se sem texto). Em poucas páginas, apresenta-nos uma narrativa na qual certamente as elipses muito contribuirão para que cada leitor construa a história que está ser contada após as 3 primeiras páginas obrigarem o leitor a focar-se para não classificar de non sequitur as transições entre vinhetas.

Pedro Moura e Marta Teives são os autores da BD colorida deste volume, numa narrativa que se inspira não só em “Hensel e Gretel” mas que parece também ter o seu quê de “Os Cinco” de Enid Blyton, à luz da BD contemporânea…

Por fim, destacamos ainda “Entre as Sombras e Luz”. Ricardo Cabral continua a levar-nos de mão dada pelos seus mundos de fantasia carregados de nanquim, à qual nos vai expondo espaçadamente e em pequenas doses.

Por tudo isto, acreditamos que a TLS Series encerrou com chave de ouro.

Mais importante é a continuidade do projeto editorial de Caetano e Freitas, dedicado a autores nacionais. Criaram em poucos anos uma identidade sinónima de propostas de qualidade em conteúdo e edição, alargando o espaço e a forma de como editar banda desenhada nacional em língua portuguesa no canal livreiro. Uma aposta de sucesso!

Que haja produção nacional, vontade editorial e público para multiplicar o número de edições por ano.

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