Anarquia e Ordem: Um Golpe Teatral

Anarquia e Ordem: Um Golpe Teatral

Uma análise ao clássico distópico de Moore e Lloyd.

Depois de Watchmen e Do Inferno, sabia que precisava de ler o V de Vingança para conhecer os maiores clássicos da autoria de Alan Moore.

Uma publicação original da Vertigo durante os anos 80, embora os primeiros 24 episódios tenham sido publicados entre 1982 e 1985, a preto e branco, em formato de tira na antologia britânica Warrior. Foi então em 1988 que a DC compilou os episódios em 10 números exclusivos, colorindo-os. E mais tardiamente, a série foi compilada em formatos TPB pela Vertigo e pela Titan Comics. Só em 2005 foi editado em formato capa dura, com nova colorização.

A versão portuguesa chegou-nos em 2016, a cores e com capa dura, compilando a totalidade da série e acrescentando ainda 2 episódios inéditos e um texto sobre a obra, escrito pelo próprio Alan Moore. Foi a Levoir a responsável por esta edição integrada na coleção Novela Gráfica.

Dois dos melhores aspetos do trabalho argumentativo de Alan Moore são a sua versatilidade e a sua enorme capacidade de adaptação aos diferentes artistas com que colabora, bem como ao subgénero que pretende focar.

V de Vingança é um excelente exemplo de uma banda desenhada genuinamente cocriada. Apesar de, aparentemente, ter sempre havido uma maior exaltação em relação ao argumento de Alan Moore e a obra ser muitas vezes referida como um dos seus maiores trabalhos de sempre, é importante relembrar que David Lloyd foi uma peça excecionalmente fundamental. Diria mesmo que esta obra não teria sido possível sem a igual contribuição de qualquer um dos dois autores. Esta parece ser uma opinião também bastante defendida pelo próprio Moore no epílogo desta edição do livro.

Com isto, dito que em V de Vingança existe uma grande diferença na escrita argumentativa de Moore em relação aos anteriormente referidos. Lloyd é o principal motivo dessa mesma diferença.

Quais são as diferenças tão notáveis? O argumento de Moore está mais intuitivo e com um ritmo significativamente melhor. Já não precisamos de narrador para esta história, mas sim de um foco mais aprofundado na ação passada nas vinhetas, reproduzida na arte de Lloyd. O texto encurta-se, o ritmo melhora e a leitura é mais produtivo e satisfatória.

Além desta, é impossível não notarmos que a clássica “estrutura Alan Moore” (nove vinhetas iguais por página 3×3) é praticamente eliminada, dando lugar a um completo novo leque de opções, muito provavelmente deixadas muitas vezes à mercê da criatividade do artista.

O trabalho conjunto torna-se assim bastante percetível, estando sintonizado de uma forma absolutamente deslumbrante. Acabamos por sentir que a genial capacidade argumentativa de Moore está sempre presente, mas é dada a Lloyd uma enorme liberdade criativa em todo o processo estrutural e artístico.

As cores, tendo sido uma adição posterior à publicação original, acabam por deixar o destaque da arte final de Lloyd prevalecer para que continue a ser apreciada da melhor forma. Para isto, a paleta utilizada pelo próprio David Lloyd, Steve Whitaker e Siobhan Dodds manteve-se muito uniforme, apresentando maioritariamente cores frias que transpõem um impacto suave, dentre elas, predominantemente, o azul, o amarelo e o rosa.

Sou capaz de dizer que V de Vingança será, provavelmente, das três acima referidas, a obra que mais facilmente será apreciada por qualquer tipo de leitor. É claro que nunca nenhuma obra será do gosto total, mas vários dos aspetos desta, facilmente lhe conferem uma leitura mais cativante e acessível em comparação às anteriores. Por um lado, temos o jogo de cores, que não existe em Do Inferno e por outro temos o tamanho da obra, que em nada se compara às anteriores, sendo esta bastante mais acessível e menor. O preço poderia ser também um ponto a focar, mas julgo que o ritmo da leitura será bem mais impactante.

Poderão gerar-se várias controvérsias pouco importantes quanto à melhor obra da banda desenhada ou mesmo à melhor obra da carreira de Alan Moore, mas é inegável que o facto do seu enorme trabalho dar já azo a esse tipo de discussão, acarreta já em si um facto inegável…

Nesta obra, Moore volta a tocar em temáticas que se associam já frequentemente ao próprio. Uma forte abordagem política, cultural e social, desta vez num palco londrino, num futuro próximo do da época da publicação.

A teatralidade do protagonista remete-nos para o clássico “fantasma da Ópera” que tão bem conhecemos. “V”, o personagem principal, traz-nos à obra um aspeto modernista através do ambiente em que vive, a forma como se apresenta e até a teatralidade dos seus golpes; ao passo que o sistema governamental inglês pressupõe o aspeto futurista que, embora não pareça demasiado complexo e avançado, dá uso a meios tecnológicos desconhecidos ou apenas conceituados na altura. Este cruzar de ambientes dá à obra um invulgar e delicioso fundo que, embora aparente ser negro e pesado, se revela esperançoso e curioso, quase como se a presença do protagonista pedisse indiretamente ao leitor para que transgrida o ambiente e o sistema.

V de Vingança trouxe uma panóplia de pontos interessantes, e a caracterização do personagem principal foi, de longe, um dos que mais me fascinou. Moore e Lloyd conseguiram criar brilhantemente um protagonista que ficamos sem conhecer do início ao fim da história. Na verdade, sabemos mesmo pouco além das suas motivações e nem chegamos a saber exatamente a causa das mesmas (ou pelo menos não completamente). O protagonista desta obra não tem um rosto ou uma história, mas sim um legado, um objetivo, trata-se de um símbolo e não de um homem. E, assim, a equipa criativa conseguiu provar que o protagonismo não se trata de uma caraterização física ou pessoal, embora não possamos negar que a máscara de Guy Fawkes se trate de um símbolo muito forte e impactante.

Não posso terminar esta análise sem levantar um pequeno ponto negativo. Pode parecer apenas uma picuinhice, mas não creio que a forma como os balões de fala e os cartuchos são apresentados seja a melhor. Sem rebordo e apresentando um fundo branco, muitas vezes camuflam-se com o fundo da vinheta, também claro, e até se dá por vezes a fusão de balões de diferentes intervenientes. Felizmente, o diálogo é intuitivo na maior parte das vezes e, por isso, não deverá ser um impedimento. Ainda assim, para leitores menos familiarizados com a banda desenhada, este poderá parecer, por vezes, um obstáculo.

Esta obra é um dos maiores clássicos de sempre na banda desenhada e apesar do mundo distópico criado pelos autores, V de Vingança tem uma premissa muito humana, funcionando como uma forte crítica aos regimes totalitários e à opressão em geral. Além destes aspetos, poderia supor que, para Alan Moore, esta premissa terá apontado para um lado muito pessoal seu, mas isso será discussão para outra hora…

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