Murena: Primeiro Ciclo

Murena: Primeiro Ciclo

O Ciclo da Mãe.

Em 1997, surge nos escaparates das livrarias francesas o primeiro volume de uma nova série: Murena. Quem a escreve é o consagrado e talentoso Jean Dufaux (As Fábulas das Lendas Perdidas, Djinn, Jessica Blandy, Giacomo C.). Quem a desenha é o artista fora de série Philippe Delaby (As Fábulas das Lendas Perdidas, L’Étoile Polaire).

Murena, do nome do seu protagonista Lúcio Murena, decorre na Roma imperial, no século I, durante os reinados de Cláudio e Nero, mais precisamente, entre os anos de 54 e 68 (como tudo parece indicar, já que esta é uma série em curso). Um peplum (adoptando um termo mais utilizado na linguagem cinematográfica) sumptuoso, rico em reviravoltas trágicas e surpresas, embora uma das suas principais características seja a de se colar escrupulosamente à realidade histórica – com uma ou outra excepções – e de a trazer junto do leitor com emoção.

O primeiro ciclo, que os autores denominaram como “O Ciclo da Mãe”, conta-nos a história da juventude do futuro imperador Nero. O seu pai adoptivo, o imperador Cláudio, perde-se de amores pela jovem Lolia Paulina, descurando a sua terrível mulher, Agripina e o filho desta, Nero. Ora, Agripina tem uma ambição desmedida e não descansa enquanto não vir o seu filho como único herdeiro do império e Britânico (filho de Cláudio) afastado da corrida ao trono. Para isso, ela está disposta a tudo… até a matar!

Por seu lado, Nero é um jovem esmagado pela influência e manipulação da mãe, submetendo-se a tudo o que ela decide para ele, até a ser cúmplice do mais tenebroso dos actos. Depois de se tornar imperador, Nero toma consciência das maquinações e das verdadeiras motivações da mãe, acabando por ordenar o seu assassinato. Mas antes de morrer, Agripina elabora um derradeiro esquema: colocar o próprio filho nas garras da inquietante Popeia.

Este é o fio condutor da história e os factos que, com uma ou outra polémica, percorreram quase dois mil anos e chegaram até nós. Mas, e Murena? Onde se enquadra ele? Vamos ver isso álbum a álbum.

1 – A PÚRPURA E O OURO

Originalmente, é publicado em álbum em 1997 pela Dargaud. Em Portugal, a honra coube à ASA em 2004 com reimpressão em 2020.

Maio do ano 54. Sob um calor abrasador, o imperador Cláudio assiste à feroz luta pela sobrevivência dos gladiadores que ainda restam na arena.

Mas lá fora, a luta é a mesma! Sobretudo quando falamos de Agripina, quarta mulher de Cláudio e mãe de Nero, filho de outro casamento e agora adoptado pelo imperador. A terrível e impiedosa imperatriz pretende, a todo o custo, eliminar Cláudio. Mas este declara que o seu verdadeiro filho, Britânico (britannicus) será o seu herdeiro e sucessor no trono. Há, por isso, que eliminá-lo também. E Cláudio tem uma amante de longa data, Lolia Paulina e correm os rumores de que por ela até está disposto a repudiar Agripina. E, por isso, também Lolia deve ser eliminada. Logo ela, que é mãe do melhor amigo de Nero, Lúcio Murena.

O tempo urge e Agripina deve meter o seu plano em movimento caso queira ver concretizada a sua ambição – ver o seu filho Nero como Imperator.

Lolia é a mais facilmente assassinada. Cláudio morre envenenado por Agripina com a ajuda de Locusta, a tristemente célebre especialista e preparadora de venenos. E o cerco aperta-se à volta de Britânico, afastado do poder.

Neste primeiro livro, Jean Dufaux introduz a principal intriga do primeiro ciclo – a ascensão de Nero ao poder apoiada pela sua mãe, Agripina, personagem central de toda a acção. Paralelamente, uma segunda intriga é protagonizada por Murena através da sua amizade com Nero, da angústia pela morte violenta da mãe e pela investigação que prossegue de modo a apanhar os assassinos.

A galeria de personagens introduzidos por Dufaux na trama é imensa, mas todos, à excepção de Murena, são personagens históricos, até mesmo a mãe de Murena ou Pallas, o escravo-espião ao serviço de Agripina.

Os diálogos são poderosos e incisivos e mergulham-nos em plena trama urdida por Agripina como se nós próprios fizéssemos parte do grupo de conspiradores.

Esta é uma história da Roma Antiga longe dos factos que correm nas páginas dos manuais escolares, mas não ignorando qualquer um deles. É uma história de violência levada ao extremo, sangrenta, sem escrúpulos, cheia de traições, favores, sexo e complots, sórdida nos seus mais pequenos detalhes.

O argumento de Dufaux mantém a acção em constante movimento, mesmo quando esta não é física. E, embora conhecendo de antemão o desenrolar da história, somos mantidos em suspense em relação ao seu enquadramento e a tudo aquilo a que os historiadores franceses chamam de “la petite histoire”. Pois é da “pequena história” que se fazem os gestos, as reacções, a moral e as tendências comportamentais de cada época. E nisso, com a imprescindível ajuda de Delaby, Dufaux é mestre.

E depois há o traço inconfundível de Philippe Delaby. Clássico, elegante, detalhado, o seu desenho é tão sumptuoso no que se refere à reconstituição da urbe e de todos os seus recantos como é eficaz nos personagens, nos seus movimentos e no vestuário.

O casamento perfeito entre a palavra escrita e a imagem desenhada, sofisticadamente detalhada, seja nos ferimentos dos gladiadores durante os combates, seja na morte selvática de Lolia Paulina ou numa cena sui generis numa casa de banho pública.

As expressões faciais dos personagens são cuidadas e realistas. As linhas dos corpos são de grande beleza, quer se trate de uma jovem patrícia, de um gladiador, de uma matrona ou de uma velha desdentada.

No cômputo geral, tudo concorre para que mergulhemos no seio de Roma Antiga e na violência inerente ao mundo político romano.

Um primeiro álbum a estimar e que dá vontade de passar ao segundo sem respirar, sobretudo para percebermos como se irá desenrolar a relação entre Murena e Nero.

2 – A AREIA E O SANGUE

Publicado originalmente em álbum em 1999 pela Dargaud. Em Portugal, foi publicado pela ASA em 2005.

13 de outubro de 54 d. C.. Cláudio, o quarto imperador romano da dinastia júlio-claudiana está morto, envenenado por sua mulher, Agripina.

Nero torna-se imperador e toma as suas primeiras decisões. Agripina, a sua mãe, após comprar-lhe os favores das legiões e do senado, crê que irá ela governar à sombra do filho. Mas Nero, com dezassete anos, já não é uma criança e ela vai tomar consciência disso às suas próprias custas.

Britânico, filho de Cláudio, foi afastado do poder. Mas Pallas, para se vingar de Nero que lhe havia tirado Acté, a sua escrava favorita, envia a Britânico um pergaminho que pode mudar o destino do mundo: o acto de repudiação lacrado com o selo do seu pai e que afasta Nero da linha de sucessão.

Entretanto, Murena, progredindo lentamente, continua à procura dos assassinos da sua mãe, enquanto Nero se prepara para resolver o “problema Britânico”.

Agripina, ardilosa e atenta a tudo, continua a manipular nas sombras.

O tempo da inocência acabou e os jogos de poder tomam o seu lugar acima da consciência.

Dufaux continua, de forma brilhante, a sua narrativa da história de Roma fiel aos acontecimentos históricos (com uma ou outra excepção pois, por exemplo, nunca foi encontrado o testamento de Cláudio). A violência é uma constante, assim como a cupidez e a sede de poder, as traições, os crimes e a crueldade sem escrúpulos.

Vemos neste segundo acto um Nero que começa a revelar as características que o marcaram para a posteridade: incontrolável, vingativo, mimado, mas amante das artes e capaz, apesar de tudo, de tomar decisões em prol do império e das suas gentes.

O desenho realista de Delaby, muito trabalhado e sempre sublime, aprimora-se. A busca do detalhe é uma constante que salta à vista de todos. Os jogos de luz são uma constante e cada vinheta tem uma iluminação esmerada. A colorização é, quanto a mim, a melhoria mais visível em relação ao primeiro álbum, com a mudança da paleta cromática e da técnica de pintura.

Sem dúvida que o êxito estrondoso de Murena se deve tanto à caneta de Dufaux como à pena de Delaby.

3 – A MELHOR DAS MÃES

Publicado originalmente em álbum em 2001 pela Dargaud. Em Portugal, é editado pelo Público/ASA em 2011 em álbum duplo com o 4.º volume.

Britânico está morto. E, tal como com o seu pai, a arma do crime é o veneno. O testamento de Cláudio é reduzido a cinzas e, assim, a ambição de Nero prossegue sem obstáculos. O trono de Roma é agora exclusivamente seu. Mas nas sombras, Agripina, mãe do imperador, continua com as suas manipulações de modo a assegurar uma fatia importante do poder.

Nero descobre por Locusta como Agripina mandou assassinar Cláudio e toma-a a seu serviço. Mas Agripina responde mandando envenenar a envenenadora.

Nero sente-se cada vez mais isolado e chama para seu lado sua tia, Domitia Lepida. Mas esta é como um espinho cravado no pé de Agripina, um empecilho aos seus planos e bem capaz de virar o filho contra ela. E Agripina responde obrigando o seu filho a assinar, ele próprio, a condenação à morte de Domitia.

A vingança de Nero começa a tomar forma, ainda que de maneira indirecta. Ele disfarça-se e anda pelo meio do povo, a aprender e a cometer inúmeras vilanias, como se disso precisasse para afirmar o seu poder ou para ganhar inspiração. Ele aspira a ser amado ou temido, sob as vestes do príncipe real e não da ideia etérea do imperador.

Já Lúcio Murena continua a investigar a morte da mãe, Lolia Paulina, mas começa agora a perceber o papel de Nero nesse assassinato. Com um objectivo em mente, faz um pacto com o gladiador Balba, fiel à memória de Britânico.

Dufaux, se ainda havia dúvida, elimina da história de Roma as últimas roupagens românticas. Esta é uma história bruta e crua, ainda que traje com elegância. Sob o manto do sumptuoso, desenrolam-se ajustes de contas, vinganças e traições dentro de uma mesma família, cujos membros estão pouco dispostos a partilhar o poder uns com os outros.

E os duelos sucedem-se. Sejam entre Nero e Agripina, entre Murena e Nero, entre Agripina e Domitia Lepida ou entre os gladiadores Balba e Massam.

O título deste álbum define tudo, ainda que de forma sarcástica: “a melhor das mães”!

O desenho realista e muito detalhado de Delaby continua a encantar, tanto ao nível dos personagens como ao nível dos décors, uns e outros envolvendo o leitor por completo.

A sua versatilidade faz-nos mergulhar tão profundamente num ambiente palaciano onde a tensão se torna ainda mais palpável pela monumentalidade arquitectónica. Mas também no sangue que se mistura no pó das arenas onde combatem os gladiadores. Nos jardins frondosos de uma villa romana ou numa piscina onde se abraçam os amantes.

Um verdadeiro deleite!

4 – OS QUE VÃO MORRER

Publicado originalmente em álbum em 2001 pela Dargaud. Em Portugal, é editado pelo Público/ASA em 2011 em álbum duplo com o anterior.

Ano 58. Os crucificados ladeiam as vias que saem de Roma. Nero é inclemente com os cristãos. O Império está cada vez mais poderoso. Mas os rumores correm livres pela Cidade Eterna. O povo sussurra que Nero mandou envenenar o seu meio-irmão, Britânico. Agripina precisa de cair de novo nos favores do seu filho e, para isso, está disposta a deitar-se com quem for preciso, até mesmo com Murena ou com Nero.

Mas Nero só tem olhos para Cláudia Acté, a bela escrava que arrancou das mãos de Pallas. E Murena só consegue pensar em vingar a mãe, por um lado, e saber notícias da corte de onde foi banido por ordem de Nero, por outro. É então que conhece um judeu com uns cinquenta anos de idade, de nome Pedro, cujo carisma o perturba e que se propõe a ajudá-lo.

Entretanto, Agripina tenta seduzir o filho, mas sem sucesso. Séneca encarrega-se de frustrar as manobras da imperatriz com a cumplicidade de Acté. E o imperador não ignora as ambições da mãe, mas sabe que ela não hesitará em eliminar quem quer que faça frente à sua obsessão de reinar.

Entretanto, Nero encarrega Acté de anunciar a Murena que está perdoado e que pode regressar a Roma. Isto é tudo o que Murena queria ouvir, mas impõe uma condição a Nero – que ele lhe entregue Draxus, o assassino de sua mãe, a soldo de Agripina. O imperador, cauteloso, responde a esta reivindicação propondo à sua mãe que Draxus combata na arena contra o gladiador escolhido por Murena. Se Draxus vencer, a guarda pretoriana que guarda Agripina será duplicada. Mas se Balba vencer, Agripina ficará sem guarda.

Nero prepara assim, não só o golpe fatal que quer desferir nas ambições de sua mãe, como o plenamente justificado regresso em graça do seu amigo Murena.

Agripina sente o cerco a fechar-se à sua volta. Mas, antes que os deuses a desfavoreçam, ela tem uma última cartada a jogar na forma de Popeia, a futura mulher de Nero.

Com este volume termina “O Ciclo da Mãe”.

Ao longo de quatro álbuns, Jean Dufaux consegue apresentar-nos uma galeria de personagens complexos, quase todos históricos, com um enorme realismo.

Numa narrativa contundente e realista, Dufaux não se fica pelos meandros da História e oferece-nos um verdadeiro espectáculo de violência e crueza, intercalado com momentos de paixão e de delírios.

E se o confronto entre o imperador Nero e sua mãe Agripina é o centro de toda a história, nem por isso Dufaux, com habilidade, descura o percurso de Murena ou todos os actos da vida pública e privada da Roma Antiga.

As diferentes camadas psicológicas dadas aos personagens reflectem não só o correr da história escrita nos livros de estudo, mas também a capacidade de Dufaux de as tornar reais e de as transportar para um entendimento que acreditamos ser actual, na medida apenas que as conseguimos percepcionar.

Para mim, é uma obra-mestra da escrita e do desenho, pois Delaby, com o seu traço preciso, a sua grandiosidade nos décors, as expressões que consegue conferir aos personagens, as ambiências, os movimentos, reforça, admiravelmente, a narrativa de Dufaux naquilo que tem de belo, de duro, de cruel, de apaixonante e violento.

Um grande sucesso nas livrarias e na crítica, de Murena disse o prestigiado Le Monde: “Uma lição de história à medida da loucura humana.”

EXTRA

Murena Artbook

Este livro de arte de Murena é um óptimo complemento à série.

Um artbook que reúne numerosos desenhos inéditos, esboços preparatórios, pranchas a lápis, aguarelas e guaches.

Uma compilação de trabalhos de Philippe Delaby, em jeito de homenagem, e que termina com a passagem de testemunho ao desenhador Theo.

A mestria do traço clássico de Delaby em um álbum que se integra perfeitamente na colecção Murena, até por ter o mesmo formato.

Fiquemos com uma reduzida amostra.

2 comentários em “Murena: Primeiro Ciclo

    1. Olá, João!
      Obrigado pela atenção que deu ao artigo.
      Infelizmente, não tenho conhecimento de reedições ou reimpressões da série Murena em Portugal.
      Como informei no artigo acerca do 3.º ciclo, o 11.º volume da série vai ser publicado em novembro deste ano. Seria uma óptima oportunidade para a editora portuguesa publicar, pelo menos, o 10.º e 11.º volumes que estão em falta no nosso país.
      Abraço e boas leituras!

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