O Ciclo da Esposa.
Depois de “O Ciclo da Esposa”, Jean Dufaux e Philippe Delaby retomam a série de culto Murena, ambientada na Roma do século I d. C., durante o governo de Nero.
A este segundo ciclo resolveram chamar de “O Ciclo da Esposa”, o que se compreende facilmente. Se no primeiro, a figura feminina predominante era Agripina, a maléfica e manipuladora mãe de Nero, neste segundo ciclo o protagonismo vai para Popeia, a não menos pérfida mulher do imperador.
Estes são os anos em que Nero se vê por fim livre dos ardis da sua mãe e onde reina único sobre o Império. Mas agora, sucumbindo ao charme venenoso de uma mulher ainda pior que sua mãe.
Murena, o melhor amigo de Nero, aprenderá às suas próprias custas que não lhe é favorável permanecer próximo do centro do poder. E o imperador, pouco a pouco, vai afundar-se na loucura, a maior parte das vezes estimulado por Popeia.
E Dufaux não nos apresenta um Nero apenas sombrio. Por vezes, podemos vê-lo mais humano, menos megalómano, como se pode observar aquando da morte da sua filha única.
E a narrativa surpreende-nos ainda quando verificamos que não é ele que inicia o grande incêndio de Roma, o que até vai ao encontro da mais recente historiografia.
O argumento de Dufaux continua eficaz e emocionante sem que para isso tenha que abdicar grandemente da factualidade histórica. Como já se disse no artigo acerca do “Ciclo da Mãe”, os personagens são maioritariamente reais, assim como o encadeamento dos acontecimentos. O mérito de Dufaux está em tornar ainda mais emocionante uma história que já o era, ainda para mais sendo conhecida por muitos dos leitores.
E a esta emoção criada pela leitura de Murena não é, de modo algum, alheio o traço clássico, detalhado e realista de Delaby. E o que ele evoluiu desde “A Púrpura e o Ouro”, o primeiro álbum da série. O mesmo podendo dizer-se dos coloristas que o acompanham.
Mas, para além do desenho em si, existe um enorme sentido de composição que casa na perfeição com a narrativa de Dufaux. E neste ciclo, talvez o melhor exemplo disso seja no oitavo volume no qual ao longo de várias páginas o grande incêndio de Roma toma o centro do palco, interrompido apenas por breve flashes de conversas tidas em ambientes acinzentados que contrastam de forma gritante com os laranjas e encarnados das chamas que vão consumindo Roma.
Mas a história aqui narrada é muito mais do que já se disse. Vejamos então o que se passa, álbum a álbum.
5 – A DEUSA NEGRA
Originalmente, é publicado em álbum em 2006 pela Dargaud. Em Portugal, foi editado pela ASA em 2011.
Roma, Primavera do ano de 62. Popeia é a nova favorita de Nero e, sendo igualmente ambiciosa, toma o lugar de Agripina, a mãe do imperador enviada para junto de Júpiter e de Juno a mando do filho. Aquela que fora até então a favorita de Nero, a bela Acté, é agora afastada.
Nero, rodeado de cortesãos serviçais, imagina-se como um deus vivo a quem ninguém pode sonhar ultrapassar. Ora, preparando-se para vencer uma corrida de bigas no Circo Máximo, acaba por ser humilhado por uma misteriosa auriga mascarada que o derrota contra todas as expectativas. E a sua cólera aumenta mais quando recebe uma mensagem avisando-o que os rumores acerca da morte brutal de Britânico continuam a circular por Roma e pelas suas províncias.
Entretanto, Lúcio Murena e Acté parecem viver um amor perfeito.
Nesta abertura do segundo ciclo de Murena, encontramos a atmosfera da Roma júlio-claudiana com os seus complots, o seu esplendor e o seu gosto desregrado pelo sexo e pelo jogo.
Dufaux, sempre bem documentado, descreve-nos o reinado de Nero, a sua amizade crescente com a loucura, as lisonjas vãs da sua corte e as muitas intrigas e manipulações, tudo isto dominado pela figura de Popeia que substitui Agripina na sede desmedida pelo poder. E se no primeiro ciclo assistimos à luta intestina pela púrpura imperial, agora é a vez de descermos aos abismos negros da alma humana.
A maior parte dos personagens são já conhecidos dos álbuns antecedentes, mas outras há que surgem agora e que parecem ter um papel importante na história. É o caso de Tigelino, chefe da guarda pretoriana e conselheiro de Nero, ou de Arsilia, escrava de Popeia e conhecedora de todos os seus sórdidos segredos.
O regresso do ex-gladiador Balba faz surgir o fantasma de Britânico e relança a intriga à volta da morte deste. Os amores de Murena e Acté são pequenos episódios de bem-estar no clima de tensão crescente da narrativa, mas rapidamente se percebe que vão surgir obstáculos incontornáveis à sua relação que, por sua vez, colocarão em perigo a fragilizada amizade entre o nosso protagonista e o imperador. E, por fim, temos Popeia que não desilude em relação ao retrato que a História se encarregou de lhe pintar. Altiva, distante, cruel, a sua perversão enche cada cena, estendendo os seus tentáculos a tudo e a todos que pensem poder atravessar-se no seu caminho.
Os desenhos de Delaby continuam sumptuosos e detalhados, e a evolução do traço uma constante. O cuidado dedicado às vestes, jóias e monumentos faz-nos submergir profundamente no ambiente da Roma Antiga. Os personagens estão muito bem conseguidos, quer a nível de expressões, quer de proporções ou de movimento. Os combates estão quase ausentes deste álbum, mas podemos uma corrida de bigas muito realista e dramática em pleno Circo Máximo. Do mesmo modo, a ausência de cenas de cama pode, de algum modo, decepcionar o leitor habituado à sensualidade do traço de Delaby quando desenha corpos femininos. Por outro lado, ele ilustra uma orgia grandiosa, retratando na perfeição o ambiente reinante na corte de Nero.
As cores do novo colorista da série, Jérémy Petiqueux, emprestam uma nova luminosidade a cada vinheta, nas quais imperam os tons ocre que, de algum modo, acentuam o sentimento de intriga omnipresente na Cidade Eterna.
Em suma, traço e cor reforçam a precisão histórica da narrativa de Dufaux.
A dupla confrontação – entre Nero e Murena por Acté e entre os gladiadores Balba e Massam – abre assim o segundo ciclo de Murena, sob o patrocínio vigilante e mortal de Popeia.
6 – O SANGUE DAS FERAS
Publicado originalmente em álbum em 2007 pela Dargaud. Em Portugal, foi publicado em álbum duplo pela parceria Público/ASA em 2012.
Ano 62 d. C.. Massam, o gladiador impiedoso e cruel a soldo da imperatriz Popeia, bate os bairros plebeus da capital do Império. Entre outros trabalhos, deve eliminar Balba – o gladiador númida decidido a vingar a morte de Britânico – e a sua companheira Evix, que usou afrontar César numa corrida de bigas.
Longe do cheiro nauseabundo da Cloaca Maxima e da pequenez desconfortante do homem comum, Nero sonha com uma Roma à medida da sua grandeza divina e planeia lançar os seus alicerces. Lúcio Murena, ainda a seu lado, está pronto a tudo fazer para encontrar a sua amada que o imperador, megalomaníaco galopante, afastou para as terras distantes da Gália. Com ele leva Balba, prometendo-lhe livrar Roma do seu tirano quando regressarem.
Mas, como sempre, Popeia conspira nas sombras. E caberá a ela a última palavra!
Dufaux continua a narrativa do “Ciclo da Esposa” sob o signo de Popeia, digna sucessora de Agripina pela sua beleza, ambição e crueldade. A luta pelo poder (ou para o manter), as traições, os crimes e as manipulações continuam a multiplicar-se em volta do personagem fictício de Murena nesta Roma Antiga que atravessa o seu período de glória, ultrapassando o limite da depravação, mesmo tendo em conta os hábitos e costumes da época. E à cabeça de tudo, um Nero que vive na ilusão da divindade e cuja mente se orienta lentamente na direcção da loucura.
Através do quotidiano tantas vezes trágico desta sociedade às portas da decadência com as suas noites de “vedetas”, os seus combates de gladiadores, as suas orgias, os seus complots e os seus dramas familiares suculentos, Dufaux, pela narrativa, e Delaby, pelo desenho, envolvem-nos por completo nos costumes da capital imperial, com um rigor histórico invejável.
O Sangue das Feras é um álbum de reviravolta a vários níveis. Mergulhando todos os protagonistas num verdadeiro banho de sangue, desde logo centra, verdadeiramente pela primeira vez, a acção em Murena, que salta para o primeiro plano não mais como o homem gentil, mas como um ser angustiado, impregnado da cultura bestial do seu povo.
Por outro lado, abandonamos, por momentos, a monumentalidade de Roma e partimos para uma Gália de bosques cobertos de neve e de ferozes revoltosos, numa mudança radical de cenário.
Neste álbum, Delaby mostra-se tão à-vontade com a representação de Roma como com os cenários naturais dos bosques gauleses nevados. Os desenhos da batalha na floresta coberta por um manto branco, violado pelo encarniçado do sangue, são de grande beleza estética e com um sentido de composição apurado (como é o caso de uma vinheta em plongée na qual vemos os corpos estendidos na neve, prestes a serem engolidos pelo imenso branco conspurcado).
Mais uma vez, Delaby e Petiqueux criam um ambiente de época irrepreensível, seja na sofisticação e fausto dos palácios romanos, no detalhe das latrinas públicas, na representação da Cloaca Máxima ou nos bosques profundos da Gália. O desenho realista e detalhado e a expressividade dos personagens, tudo é sublimado agora pela paleta de Petiqueux.
Esta série, que não cessa de se aprimorar, teve com este álbum uma edição de colecionador com tiragem limitada, capa exclusiva e que incluía um DVD que nos leva pelos corredores da criação da BD e nos dá um retrato dos autores ao longo de 52 minutos de reportagem.
7 – VIDA DOS FOGOS
Publicado originalmente em álbum em 2009 pela Dargaud. Em Portugal, é editado pelo Público/ASA em 2012 em álbum duplo com o 6.º volume.
Vai a meio o ano de 63 d. C. e Nero sente penosamente a morte de Cláudia Augusta, a sua filha de apenas quatro meses. Mas a fragilidade do imperador é meramente momentânea pois nele subsiste a megalomania e o egocentrismo acima de tudo. E quando é informado por Massam que Lúcio Murena está de volta a Roma e foi recolhido por uma vestal, apressa-se a punir violentamente a traidora que usou receber um renegado. De seguida, parte para Antium (Anzio) sem mais se preocupar com o seu velho amigo.
Mas ao contrário de Nero, o seu velho amigo Murena não esquece. Louco de dor pela perda da sua amada Acté em terras gaulesas, Murena jura vingar-se e prepara-se para enfrentar o esbirro do imperador.
Mas, por vezes, os pequenos actos têm consequências imprevisíveis e dimensões que lhes conferem o direito de figurar marmoreamente nos anais da História.
Verão de 64 d. C.. O fogo começa a devorar a cidade das sete colinas, como se a cólera dos deuses se tivesse abatido sobre Roma.
Depois do fim de Britânico, da morte de Agripina, da ascensão de Popeia, era muito esperado um outro episódio-chave da “lenda” obscura de Nero: o incêndio de Roma. Neste sétimo volume, ele anuncia-se e insinua-se pouco a pouco pelos dotes narrativos de Dufaux que espera pelas últimas páginas para iniciar a ignição. Em contraste, as primeiras páginas abrem com as neves gaulesas. Ou seja, primeiro a frieza calculista de um Murena que prepara a vingança sobre Nero e a sua família. E por fim, o fogo da raiva que promete consumir Roma.
A estes dois momentos que definem bem o estado de espírito de Lúcio Murena, temos que juntar a habilidade de Dufaux quando nos consegue fazer mergulhar no ambiente da fornalha romana que, neste álbum, vai queimando num aparente lume brando. As danças das cortesãs, os conluios mais infames e a perfídia dos jovens patrícios decadentes, tudo se junta para criar no leitor uma sensação de que algo de grave está prestes a acontecer.
E, curiosamente, os antagonistas nunca entram em confronto directo, sentindo, no entanto, a mão pesada um do outro. De realçar também que o seu papel se encontra invertido ou com uma maior densidade psicológica. De facto, se Nero, sempre cruel e implacável, ganha um pouco em humanidade, já Murena deixa-se consumir pela raiva que acaba por assombrar um pouco a sua imagem. Por outro lado, Popeia, que até aqui dominava o centro da intriga, passa a segundo plano em favor de Tigelino, pronto a tudo em prol da sua ambição. Para mais, Dufaux introduz novos protagonistas que servem bem a intriga e que deixam adivinhar a sua importância futura.
E no meio disto tudo, Dufaux começa a preparar outro momento-chave da história de Nero. Quem são aqueles judeus que, em Roma, desafiam o Império e pertencem à seita dos cristãos? E quem é o mestre a que serve aquele chamado de Pedro?
Tão esperado quanto o fogo de Roma é o desenho de Delaby, que maravilha sempre. Preciso, detalhado, dinâmico, ele exprime com exímia arte tanto a sumptuosidade dos bairros chiques como a imundice do submundo.
Os cenários e a arquitectura conferem um realismo incontestável ao conjunto da obra, enquanto as expressões dos personagens traduzem bem os estados de alma que nos ajudam a imergir por completo na trama.
O desenho sedutor de Delaby é enriquecido mais uma vez pelas cores de Jérémy Petiqueux que insufla vida às pedras dos templos e das mansões, às chamas que tudo consomem e se lançam no escuro de uma noite de verão.
E para melhor apreciar o talento do desenhador, este álbum (pelo menos na sua versão original) abre com um caderno de oito páginas de esboços de personagens ou de pranchas a carvão.
8 – A VINGANÇA DAS CINZAS
Publicado originalmente em álbum em 2010 pela Dargaud. Em Portugal, é editado pela ASA em 2011.
Verão de 64 d. C.. Roma está a arder. As chamas invadem tudo, desde lojas e bordéis a bairros populares e villas aristocráticas. A população, desesperada, foge em direcção ao rio, empurrando-se, espezinhando-se, aumentando o pânico generalizado.
Os edifícios desabam. O Tibre reclama as vidas dos muitos que não sabem nadar. Queimados, sufocados, soterrados, esmagados ou afogados, milhares de romanos pagam caro o erro de um só homem. Nero, acabado de regressar de Anzio, observa a sua cidade a ser devorada pelas chamas, como se de um acto divino e providencial se tratasse.
O inferno dura seis dias e sete noites. A cidade, marcada pela fúria destruidora do gigantesco braseiro, reúne forças para se reerguer. E enquanto Lúcio Murena procura salvar o maior número dos seus concidadãos, Nero, influenciado pelo prefeito Tigelino, procura um bode expiatório sobre o qual possa dirigir o descontentamento e raiva da população.
Do outro lado do Tibre, o bairro Transtiberino é totalmente poupado pelas chamas. Nele vivem Pedro e os cristãos.
Este oitavo volume de Murena fecha o Ciclo da Esposa de forma brilhante. Narrando um dos episódios mais conhecidos da vida de Nero – o grande incêndio de Roma e a perseguição da comunidade cristã – Dufaux fá-lo de uma maneira inovadora. Afastando-se do habitual retrato do imperador louco que manda incendiar a própria cidade, mas apoiando-se em textos históricos, ele narra o drama com simplicidade e força.
Ao longo de 24 páginas, Dufaux, com uma economia inteligente de palavras, consegue manter o interesse do leitor sempre no seu auge intensificando constantemente o acontecimento. O fogo não é observado do balcão de Nero. Antes pelo contrário, pois somos atirados para o meio da multidão em pânico e vivemos cada tragédia individualmente, como se conhecêssemos os seus protagonistas. A escrita de Dufaux está lá, quase escondida, carregada pelo poder do desenho de Delaby.
Na segunda parte do álbum, a narrativa torna-se mais palavrosa até porque mais política. A complexidade dos actores, as manipulações e os jogos de poder a vários níveis, dão à série uma dimensão mais humana e tridimensional.
E Dufaux não facilita, mesmo quando já conhecemos o desfecho que a história terá para os cristãos. Tigelino procura manipular Nero; este pensa primeiro em Popeia; os seus conselheiros recordam-lhe que primeiro está a imagem do Imperador; Popeia palestra com os seus amigos judeus; Nero é levado a tomar a decisão histórica; Popeia mantém-se a seu lado pois, como diz o adágio, à mulher de César não basta sê-lo, há que parecê-lo.
O traço de Delaby, como já se disse, carrega a história, sobretudo na primeira parte. Em pranchas sumptuosas, ele consegue ilustrar com uma enorme credibilidade o terror e pânico que invadiram a capital do Império romano bem como o rescaldo do incêndio e as ruínas que ditam agora o quotidiano da cidade.
Os movimentos anárquicos da multidão, os constantes perigos mortíferos – casas a desabar, chamas que parecem ter vida própria, animais selvagens enlouquecidos pelo fogo – tudo é desenhado com minúcia e credibilidade. As ilustrações de página inteira são impressionantes. Os ângulos de visão utilizados são surpreendentes e muito bem conseguidos.
A intensidade do desenho sucede-se página após página, aumentada pela colorização de Jérémy Petiqueux que nos oferece uma paleta rica que joga, por um lado, com os laranjas e encarnados e, por outro, com as cores luminosas e variadas do “dia seguinte”.
Com “A Vingança das Cinzas”, o segundo ciclo de Murena termina de uma maneira grandiosa e abre caminho para o drama que se avizinha.
EXTRA
As Mulheres de Philippe Delaby
É impensável falar de Delaby e da sua arte sem se referir a beleza do seu traço quando desenha personagens femininos.
Visivelmente conhecedor de anatomia humana, o seu desenho clássico representa a mulher sem os estereótipos tantas vezes vistos nos comics norte-americanos.
Assim, cada mulher é única, tanto a nível facial como noutros praedicatorum. E a galeria de personagens sucede-se imparável em Murena. Da jovem patrícia à matrona, da vestal à prostituta, da velha enrugada à adolescente, todas carregam um traço cativante, tantas vezes sedutor e sensual, que acabou por ser uma das imagens de marca de Philippe Delaby.
Fiquemos com mais alguns exemplos.
Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.