
A ténue linha entre o cartune e o realismo na arte de Prado.
Ora, após Presas Fáceis de Miguelanxo Prado na coleção Novela Gráfica (série II) da Levoir em 2016, tinha de seguir em direção à coleção do ano seguinte, mais especificamente, à obra Traço de Giz do mesmo autor. Foi em 2017 que a Levoir editou a sua versão da obra, originalmente publicada em 1993, tendo antecedido largamente a Presas Fáceis.
Traço de Giz tinha já sido, no entanto, editada anteriormente em Portugal, inicialmente pela Meribérica em 2000 e, posteriormente, num livro de coleção que referi no artigo anteriormente publicado dirigido a Presas Fáceis. Refiro-me, claro, à coleção Os Clássicos da Banda Desenhada, editada em 2003 no nosso país pela Panini e distribuída com o Correio da Manhã, tendo sido o número catorze dedicado a Miguelanxo Prado, em colaboração com a Meribérica.
Confesso, desde já, não ter adquirido a versão mais recente da Levoir e, portanto, a edição na qual me basearei para expor a minha opinião será a sua antecessora.
É sempre oportuno relembrar a relevância e o reconhecimento de Prado a nível nacional, em Espanha, mas também a nível internacional. O seu traço e as suas histórias deram-lhe o prestígio merecido, não só na banda desenhada, mas na pintura e até no cinema. Um livro pequeno, uma história relativamente curta e bem passada, Traço de Giz foi e continua a ser, possivelmente, a mais premiada e reconhecida obra do autor.

Foi há já uns quantos anos, quando ainda puto, que conheci este maravilhoso autor. Não me vou alongar com o assunto pois esta experiência foi já relatada no artigo do Presas Fáceis. Agora, ao ler esta obra já com os meus vinte e quatro anos e na idade adulta, o sentimento não tem comparação possível e, na verdade, julgo nunca ter lido esta história quando era miúdo, mas apenas ter folheado as suas páginas.
Recordo-me apenas de ficar fascinado com o realismo dos desenhos, principalmente dos corpos humanos. Claro que, entretanto, já conheci traços bem mais realistas, mas o que torna a arte de Prado tão interessante é a clara denotação entre o realismo e o cartune. É óbvio que não nos quer apresentar uma foto e por isso concebe a sua arte de forma soberba, mas sempre bem consciente do seu “semi-realismo”. Podemos facilmente identificar as várias mudanças de técnica que utiliza nas diferentes obras, e ainda assim reconhecer, sempre com as suas diferenças, que se continua a tratar do traço de Prado.
Há, principalmente, um enorme cuidado na representação do corpo que devo reforçar. É muito interessante ver como Prado trata o nu na sua arte e encontramos bastantes detalhes realistas que não ficam excluídos em grande parte da arte na banda desenhada. Refiro-me à imperfeição corporal, pormenores como gordura nos corpos, mamas pequenas e com formatos dispares, ou até mesmo rugas, saliências, etc… Prado não nos dá sempre o que seria anatomicamente perfeito e, portanto, fantasioso, mas sim o que é belo e semelhante ao real.

A cor expande-se para além das vinhetas, ocupando completamente as páginas, dando uma maior sensação de imersão ao leitor. O uso da cor é exímio e o detalhe raramente fica ao acaso. Esta acaba por ser a maior distinção entre esta obra e a lida anteriormente, Presas Fáceis, que conta apenas com o uso dos tons de cinza. Em Traço de Giz quase podemos usufruir de uma sensação de serenidade que, mais uma vez, mantém o leitor bem ciente de que embora no mundo da obra transpareça uma certa mística fantasiosa, esta não deixa de se tratar disso mesmo, uma obra. São as cores ténues e leves e o traço imperfeitamente minucioso que dão este aspeto à arte da mesma.
Apesar de não ter uma premissa complexa, nem pesada, este aspeto da serenidade é o que parece alimentar não só o ambiente, mas o próprio argumento. Não sabemos muito bem ao que estamos a chegar ou para onde nos dirigimos desde o início até ao final. Sempre na incerteza do assunto tratado, até darmos por nós de livro fechado na mão e com uma sensação insaciável de resolver o mistério, talvez uma espécie de boa melancolia (?).
O autor termina a obra deixando o mistério em aberto e fica o leitor com água na boca. Claramente o objetivo não era deixar o final em aberto para uma continuação, mas deixar o suspense e a intriga a germinar na mente de cada leitor. É quase uma frustração positiva que sentimos pela impotência com que o autor nos deixa, mas a sua forte capacidade de nos manter agarrados até ali. Há quase uma necessidade de continuar a folhear o livro após o final. Quem sabe voltar ao início e reler a obra seja uma boa alternativa para desvendar questões que não tenham ficado entendidas numa primeira leitura.

Não posso terminar, infelizmente, sem uma nota menos boa quanto à legendagem da versão portuguesa da edição que possuo. Não conheço a versão da Levoir, pelo que espero que tenha havido um maior cuidado com a escolha da fonte ou, em alternativa, com o espaçamento entre linhas, pois na versão a que me refiro, o texto torna-se confuso, quando caracteres, como acentuação e vírgulas, se sobrepõem a palavras que aparecem por cima ou por baixo dos mesmos, dificultando assim a leitura.
Como disse já antes, Miguelanxo Prado é a prova de que a Europa tem muito boa banda desenhada de caráter maduro, bem como autores do género. Portanto, garantidamente, esta não será a última análise que faço a obras de Prado em Portugal, mercado no qual há um positivo investimento na edição das suas obras.

Rafael Marques tem 24 anos durante o ano de 2020. É músico em Lisboa e faz disso a sua profissão. A restante parte do seu tempo é dedicada ao sono, ao gaming e à leitura de banda desenhada, que terá descoberto como uma das suas maiores paixões entre 2018 e 2019, quando se envolveu numa relação com uma artista/ilustradora. Rafa é um apaixonado por tudo aquilo em que trabalha. Em segredo, escreve argumentos para banda desenhada, que são executados em belas pranchas pela sua companheira. Ainda sonha um dia vir a ser mordido por uma aranha radioativa…