Idade Média Brutal e Poética

Idade Média Brutal e Poética

Os Companheiros do Crepúsculo.

Esta durou, diz-se, cem anos. Nada a distinguia verdadeiramente daquela que a precedeu nem da que se lhe seguiu. Como o granizo ou a peste, a guerra abate-se sobre os campos quando menos se espera, de preferência, quando os trigais estão pesados e as jovens são belas… Mariotte é bela.

O novo grande fresco de François Bourgeon, por muitos considerado uma obra-prima da narrativa e da banda desenhada, começa a ser publicado em França imediatamente após o término do primeiro ciclo da sua magnífica obra, Os Passageiros do Vento, em 1984.

A acção situa-se entre julho de 1350 e a Primavera seguinte, em plena Guerra dos Cem Anos. Uma guerra que opõe primos (Eduardo III de Inglaterra e Filipe VI de França) e que se estende por cinco gerações de reis. Uma guerra na qual muitos nascem, vivem e morrem sem lhe conhecer o fim. Uma guerra devastadora que trás consigo a Grande Peste e uma mortandade nunca vista de vidas ceifadas a fio de espada. Uma guerra que não poupa nem campo, nem cidade nem o mais pequeno lugarejo. Uma guerra que marca o fim da Idade Média.

E é neste contexto brutal que vamos encontrar os três mais improváveis companheiros, reunidos pelo acaso ou pela fortuna. Mariotte, a bela ruiva empertigada. O Cavaleiro, sem nome nem face. E Anicet, um jovem plebeu, cheio de si próprio, mas com um laivo de cobardia.

Mariotte e Anicet partem por estes tempos conturbados, sob a protecção do Cavaleiro, acompanhando-o na sua demanda de redenção.

Partamos com estes companheiros pelo crepúsculo medieval.

1 – O SORTILÉGIO DO BOSQUE DAS BRUMAS

Originalmente, é publicado em álbum em fevereiro de 1984 pela Casterman. Em Portugal, foi editado pela Meribérica em 1989.

Julho de 1350. A bela e jovem ruiva Mariotte vive isolada com a avó, uma velha feiticeira, seguidora das crenças e tradições das religiões antigas, então abaladas pelo fulgor aglutinador do cristianismo.

Para os habitantes da aldeia mais próxima, ela e a avó são pessoas estranhas que vivem bem para lá do termo do casario. E por isso são mal vistas por todos, sobretudo por Anicet, um jovem arrogante que não deixa Mariotte em paz.

Certo dia, ao encontrar um bando de soldados sem lei nem grei, Mariotte indica-lhes o caminho da aldeia. Mal podia ela supor que o seu gesto levaria a um saque brutal e à morte violenta de cada homem, mulher e criança. O único que escapa com vida é Anicet.

A avó, ao saber que a jovem é responsável por tal carnificina, expulsa-a. Ela e Anicet acabam por cruzar-se com um estranho cavaleiro sem nome e de rosto permanentemente velado pelo seu elmo.

Mariotte e Anicet passam a servir o cavaleiro e acompanham-no agora na sua demanda misteriosa pelos campos devastados pela guerra e pelos bosques que a parecem ter esquecido. Cavaleiro que espia a morte da mulher amada e as muitas atrocidades que cometeu no passado, participa agora naquela que é uma guerra mais longa que a dos Cem Anos. Uma guerra que envolve as três forças ancestrais (a branca, a negra e a vermelha).

Ao penetrarem no denso Bosque das Brumas, os três são vencidos pelo cansaço e adormecem. Sendo transportados para um mundo onírico, são capturados pelo povo dos duendes que lançam um repto ao cavaleiro: ou dá caça e mata um monstro que assola a região ou os três servirão de repasto para toda a comunidade de duendes.

O Cavaleiro sem nome aceita o desafio e parte para enfrentar o desconhecido num mundo em que o sonho tem repercussão na realidade.

Neste primeiro volume, a narrativa é caracterizada pela viagem. A viagem no sentido físico, aquela que calcorreia lugarejos, campos e bosques e que se vai cruzando com a violência da guerra, da maldade e do desespero. Mas também a outra viagem, a que percorre uma terra povoada de mitos e lendas, sinal ainda do tempo em que a terra, as ondas e o vento eram um só com o homem. Um só onde os sonhos se confundem com o despertar e onde a loucura é a única regra. Uma viagem por terras feéricas onde reinam as gentes do “povo pequeno”.

Para além disso, O Sortilégio do Bosque das Brumas serve para que François Bourgeon faça a introdução dos personagens através dos quais fará correr a sua narrativa, mas também para que apresente a época conturbada na qual eles evoluirão.

Como se disse anteriormente, a atmosfera que se vive dá lugar de destaque ao fantástico, à magia. Mas uma magia no sentido tradicional do termo, que se confunde com as baladas e a ilusão, que elimina o tempo e o espaço e mergulha nas profundezas dos terrores e dos desejos e que, sobretudo, nos convida a viajar. E quando alcançamos o mundo onírico, quase tudo se situa nos limites do invisível e do silêncio, do não-dito.

E é nesta fronteira entre o real e o sonho que Bourgeon nos surpreende e maravilha e nos faz entrar, quase sem nos apercebermos, neste “Outro Mundo”.

Logo neste primeiro álbum podemos perceber que a história não é linear nem fácil e que merece várias leituras atentas. A reconstituição de época é minuciosa e precisa e, no original, a utilização de francês arcaico torna a experiência da leitura ainda mais completa. Ao correr da narrativa, velhas lendas celtas surgem quando menos esperamos. E a consistência do todo é agregada pelos temas universais da arrogância dos poderosos, da violência para com as mulheres e do poder do amor e das coisas simples da vida.

O traço de Bourgeon é notável em termos de detalhe. A maneira como, através do seu desenho, consegue que a Idade Média se misture com o mundo mágico dos sonhos e dos pesadelos, é fantástica.

A riqueza da composição em muitas das vinhetas é bela e fascinante, deixando-nos perdidos na contemplação. E, por fim, a paleta de cores é aplicada de forma inteligente e distinta, consoante viajamos pelo real, pelo sonho ou pelo real sonhado.

2 – OS OLHOS DE ESTANHO DA CIDADE GLAUCA

Publicado originalmente em álbum em setembro de 1986 pela Casterman. Em Portugal, foi publicado pela Meribérica em 1989.

Neste segundo volume da trilogia, Mariotte, Anicet e o Cavaleiro acabam por se separar. É neste momento que a bela ruiva conhece a menina de cabelos negros de nome Yuna que, de algum modo, a faz lembrar de si própria pois também esta foi criada pela avó feiticeira e milagreira, segundo reza o povo.

Yuna, inadvertidamente, causa a morte da avó. Mariotte, sem a protecção do Cavaleiro, é perseguida e condenada a uma morte horrível pela populaça enfurecida que a quer mutilar, desmembrar, cortar-lhe nariz e orelhas, decepá-la e oferecê-la aos corvos da região como repasto. Mas ela acaba por escapar a destino tão vil. Depois de reencontrar Yuna, as duas juntam-se de novo ao Cavaleiro e a Anicet, agora acompanhados pelo menestrel Melaine Favennec.

O grupo reforçado parte em nova demanda a pedido dos duendes do Bosque das Brumas. O objectivo é livrá-los dos Dhuards, monstros horrendos, servos da força negra e eternos inimigos dos duendes.

Com a ajuda dos dois duendes exilados do Bosque das Brumas, o Cavaleiro decide então encontrar a Cidade Glauca, onde vivem os Dhuards. E para alcançar com sucesso o fim da nova demanda, deverão devolver a jóia Eclipse Azul à Dama Branca, mantida prisioneira na Cidade Glauca.

A viagem, mais uma vez, faz-se maioritariamente no mundo dos sonhos onde, nem por isso, os perigos e horrores são menos reais.

A realidade funde-se desta feita inextricavelmente aos contos, lendas e canções de antanho.

E se no primeiro opus da trilogia a narrativa avançava sob o signo da viagem, agora fá-lo sob o signo da demanda – como não poderia deixar de ser numa narrativa que se reclama de medieval-fantástica. Uma demanda que tem as suas raízes no folclore e mitos celtas da Bretanha.

Agora a floresta dá lugar ao mar – berço da vida, mas também de canções e da imaginação. Símbolo feminino que, de certa maneira, sanciona o surgimento de um novo personagem em forma de mulher, Yuna.

Agora, a promessa dá lugar à confirmação do imenso talento de um autor capaz, como poucos outros, de saltar de um género literário para outro com uma mesma e rara mestria. À História, Bourgeon junta aqui a Poesia de modo a fazer a apologia de uma cultura erradicada por invasões culturais sucessivas e da qual apenas resta aquilo que alimenta as canções: as lendas.

De facto, ele diverte-se a apresentar-nos as diversas peças do seu puzzle através de uma narrativa e de uma composição das pranchas pouco habitual e que reflectem na perfeição o caminho tantas vezes tortuoso das lendas no correr dos tempos.

3 – O ÚLTIMO CANTO DAS MALATERRE

Publicado originalmente em álbum em maio de 1990 pela Casterman. Em Portugal, é editado pela Meribérica em 1990.

Somos chegados ao fim do caminho, tantas vezes penoso, pejado de acasos e encontros furtuitos. E nem as últimas léguas que os separam do seu destino, livram os três companheiros das derradeiras provações da viajem.

Pelos campos ao abandono ou na cidade fortificada, há tempo ainda para se cruzarem com extraordinários personagens. Seja o noviço que cai nas boas graças de Mariotte, a trupe de artistas ambulantes, o peregrino que caça lobos ou o cavaleiro solitário de manto negro que deambula aparentemente sem destino pelas colinas. Todos eles, de maneira mais ou menos directa, entregarão Mariotte a um destino que corre agora paralelo ao do seu mestre Cavaleiro.

Ao longe, a cidade de Montroy parece chamá-los, sem hipótese de recusa, a Mariotte, Anicet e ao Cavaleiro, esperando que cada um abrace o seu destino.

O Inverno aproxima-se e é lá que os três companheiros decidem resguardar-se dos rigores da estação. É lá que os três companheiros viverão os últimos momentos que os unem. É lá que o Cavaleiro descobre, finalmente, o segredo da sua amada Blanche e das suas irmãs Carmine e Neyrelle, descendentes do “pequeno povo”, de fadas e sereias.

E, por fim, as primeiras neves cobrem prados e penhascos, árvores e telhados. Chega o Inverno, como que anunciando o fim. O fim da demanda; o fim destinado a cada personagem; o fim de uma Era.

É na cidade fortificada de Montroy que confluem as três forças: a branca da pureza e do bem; a negra da morte e da destruição e a vermelha da paixão e da vida. É a luta permanente entre estas três forças que marcou toda a demanda dos três companheiros e que lhes dita agora três destinos diferentes.

E assim chega ao fim a narrativa de Os Companheiros do Crepúsculo. Uma narrativa complexa, nem sempre de leitura fácil ou imediata, que pulula entre a realidade e o sonho, entre os símbolos e mistérios pagãos e a imposição das crenças cristãs.

E se no primeiro e segundo volumes o reino do “Outro Mundo” impera, neste terceiro e último volume a realidade do quotidiano medieval, dos costumes, das crenças, da urbanidade e da crueza da época assume o protagonismo total.

Subjacente a todo o álbum está a imposição dos valores judaico-cristãos a uma populaça inculta que procura na fé, com igual força, o apaziguar de um quotidiano duro e a diversão pública que tanto as leis seculares como as canónicas lhes acabam por proporcionar.

As brumas cobrem o século, estendendo-se pelo que há de vir. Este crepúsculo da Idade Média acabará por dar lugar à Idade Moderna, supostamente mais racional e iluminada, mas que padece dos mesmos vícios da erroneamente apelidada de Idade das Trevas.

Encontramos aqui um François Bourgeon no pico da sua arte, tanto no plano narrativo como nos aspectos artísticos.

Neste último volume, com invulgar mestria, ele tece os milímetros finais da grande tapeçaria, resolvendo com inteligência os enigmas impossíveis de deslindar com os quais nos foi brindando ao longo de toda a obra a que conseguimos agora dar um sentido global. E o destino de cada personagem, independentemente de nos chocar ou apanhar de surpresa, acaba por fazer todo o sentido, numa lógica incontestável.

O casamento entre imagens e texto é perfeito, e o seu significado real nunca nos permite ficar por uma primeira leitura – quer se trate de obras de magia ou da política, de sentimentos ou de costumes. De facto, Bourgeon não se contenta em contar-nos apenas uma história. Ele consegue pôr-nos a viver na Idade Média.

A reconstituição histórica quase atinge o grau da perfeição sem, no entanto, se tornar elitista ou hermética. O leitor pode deliciar-se com uma primeira leitura ligeira, com uma segunda leitura atenta e com uma terceira leitura de puro deleite.

E se a narrativa, por si só, já define bem a excelência do autor, o seu traço e a paleta de cores que utiliza nesta trilogia são soberbos.

Desde logo se verifica isso mesmo no cuidado dado à recriação dos elementos arquitectónicos. Sejam meros casebres na aldeia de origem da Mariotte, no primeiro volume, sejam todos os elementos urbanos na cidade de Montroy. Um cuidado que se estende também às cenas de interior e aos pormenores de alvenaria, estatuária e decoração.

O mesmo cuidado pode ser visto no vestuário que identifica o vasto leque de personagens e as suas respectivas classes sociais. Os servos da gleba, os senhores feudais, as damas, os senhores eclesiásticos, os monges, os noviços, os cavaleiros, os burgueses endinheirados, os menestréis e trovadores, todos são cuidadosamente recriados nos seus trajes e paramentos.

Mas talvez o facto mais relevante na inventividade artística de Bourgeon seja a sua capacidade de recriar ambientes interiores e exteriores povoados por uma multitude de personagens, cada um deixando transpirar uma personalidade própria. São cenas em que se vão descobrindo sempre mais pormenores a cada nova leitura. Pela encenação e composição de cada vinheta e pelas cores utilizadas, não raramente dei por mim a pensar em várias obras de Bruegel, onde o comportamento humano e o teatro da vida são cristalizados como que num instantâneo fotográfico.

Em baixo, dois exemplos das obras de Bruegel e vários de Bourgeon.

Pieter Bruegel, o Velho

François Bourgeon, o Único

No último tomo, é gritante como as próprias cores contam, ou ajudam a contar a história. A paleta de cores frias do exterior invernal contrasta com a de cores quentes do espaço interior abastado. Mas quando a acção extravasa das grossas muralhas do castelo, quente e frio misturam-se furiosamente para levarem o leitor ao clímax da narrativa.

E é impossível falar das obras de Bourgeon sem se abordar o tema da sensualidade e do erotismo. A particularidade deste autor é que consegue, muito frequentemente, criar cenas sensuais com o muito pouco que o quotidiano oferece. Pode ser um arregaçar de saias para atravessar um rio, umas nádegas assentes num tronco de árvore, a timidez de um corpo desnudado, dois corpos entrelaçados na penumbra de uma masmorra ou o vislumbre de um torso feminino semicoberto por uma camisa.

Ao folhearem-se as últimas pranchas, quando o livro termina, para além da saudade, uma sensação de paz e de bem-estar apodera-se do leitor. A narrativa termina. Mariotte pede-nos segredo, levando o indicador aos lábios. O testemunho escrito perde-se na neve e só os ouvintes fascinados poderão perpetuar a lenda dos Companheiros do Crepúsculo.

O epílogo fecha a narrativa como o prólogo a começara. Esta durou, diz-se, cem anos. Nada a distinguia verdadeiramente daquela que a precedeu nem da que se lhe seguiu. Mariotte dorme profundamente nos braços do seu noviço. De semblantes serenos e apaziguados, eles ignoram que a paz andará ausente daquelas terras por quase cem anos mais.

Tempo suficiente para Mariotte encontrar ainda novos Companheiros do Crepúsculo que para sempre desconheceremos.

Uma série excepcional, desde o seu primeiro volume, que termina numa sinfonia absolutamente brilhante, a que nenhum leitor ávido de narrativas de excelência deve ficar indiferente.

EXTRAS

DANS LE SILLAGE DES SIRÈNES

Este “Na Esteira” ou “No Rasto das Sereias” é um magnífico e relevante livro para a leitura de Os Companheiros do Crepúsculo.

Escrito pelo historiador Michel Thiébaut, este livro tem uma dupla função. Por um lado, faz um estudo detalhado da época (séculos XIV-XV) e do contexto histórico em que decorre a acção de Os Companheiros do Crepúsculo, com a ajuda de um quadro sinóptico que vai de 1252 a 1350. Os acontecimentos mais importantes do período são, precisamente, os que correspondem ao início da Guerra dos Cem Anos. Por outro lado, ao longo do livro, vai sempre apresentando as pesquisas e os estudos de François Bourgeon no processo criativo de Os Companheiros do Crepúsculo.

Num primeiro capítulo, explora-se o contexto histórico, a língua falada, o vestuário (profundamente estudado por Bourgeon), os costumes, tradições e lugares.

O segundo capítulo aborda o mito, já que este ocupa grande parte da série e tem particular relevância no período abordado. Na época, as crenças repartiam-se entre um cristianismo imposto e um paganismo do quotidiano, criando uma mistura muito interessante de mitologia cristã e celta.

No último capítulo, sintetiza-se e estabelece-se o sentido de toda a obra e a simbologia ao longo da demanda de Bourgeon e dos seus três protagonistas.

Por um lado, um livro de História. Por outro, um documento acerca dos bastidores da criação de Os Companheiros do Crepúsculo.

3 comentários em “Idade Média Brutal e Poética

    1. Obrigado, Pedro!
      De facto, um dos encantos desta trilogia é, precisamente, a narrativa não linear que nos permite lê-la várias vezes sempre com o mesmo fascínio da descoberta.

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