Análise da obra de Isaac Asimov.
A Trilogia da Fundação de Isaac Asimov é provavelmente uma das melhores obras de ficção científica de todos os tempos e o recentemente lançado trailer da adaptação televisiva para o serviço de streaming Apple Tv+ é o mote perfeito para que fale dela.
Desde que entrei no universo da Fundação fiquei fascinado pelos conceitos e ideias do mesmo. O universo da Fundação é um dos mais ricos de toda a história da ficção científica, e todos os seus aspetos merecem páginas e páginas de discussão, e eu vou aqui adicionar mais algumas…
Vamos começar por falar da psico-história…
A psico-história é a “ciência” inventada por Hari Seldon que consegue prever (mais ou menos) o futuro, tudo em bases matemáticas e cientificamente comprováveis. Segundo as explicações que nos são dadas, a psico-história funciona um pouco como a física e a química. As pessoas são equiparadas a átomos e basta vermos as ações para podermos calcular as reações. No entanto, enquanto a química lida com reações de frações de segundo ou de minutos, a psico-história lida com reações que demoram milhões de anos a se sequer mostrarem no mais ínfimo detalhe.
Segundo a psico-história, o Império Galáctico iria cair, arrastando toda a galáxia para milhares de anos de barbárie. Tentando impedir tal acontecimento, Hari Seldon fundou duas colónias com os seus colegas pesquisadores em extremos opostos da galáxia, ambas focadas em duas áreas diferentes, com o objetivo de derrotar o Império e encurtar ao máximo os anos de barbárie (é o denominado Plano Seldon).
O Império Galáctico estava em queda. Era um Império Colossal, que se estendia ao longo de milhões de mundos, entre as duas extremidades da poderosa multiespiral que era a Via Láctea. A sua queda era igualmente colossal – e era uma longa queda, pois tinha ainda muito caminho para percorrer. Havia séculos que estava em queda, até alguém ter realmente tomado consciência dessa queda. Esse alguém era Hari Seldon.
– Isaac Asimov, “Fundação e Império”, editado em Portugal pela Saída de Emergência
Uma, a “Primeira” Fundação (ou só Fundação), está totalmente focada na ciência e engenharia, o que a faz extremamente avançada tecnologicamente, mas quase que completamente ignorante da extensão e funcionamento da psico-história e do Plano Seldon.
A outra, a Segunda Fundação está totalmente focada na psico-história e psicologia, mas uma psicologia já tão avançada que se estende a áreas da parapsicologia como a telepatia. Esta fundação é só explorada no 3.º livro da trilogia, Segunda Fundação, e fica claro que ela tem o propósito de ser a “guardiã” do Plano Seldon.
Parece-me que mais importante do que saber como a psico-história funciona exatamente, é refletir sobre as questões que levanta.
Para podermos entender a psico-história, primeiro temos de saber como a história funciona, ou, pelo menos, parcialmente. Considero que a melhor forma é a clássica história do puzzle; na presença de um puzzle, se se colocar os olhos a 1 cm de distância da superfície do mesmo, obviamente que não se vai conseguir ver toda a imagem, não se vai entender nada. Mas quando nos começamos a afastar do puzzle, começamos, aos poucos, a ver que peça se encaixa com qual e a perceber a imagem que o puzzle forma. Ora é exatamente assim que a história funciona. Dando um exemplo atual, nós hoje não conseguimos ver a extensão e impacto que a pandemia do coronavírus causou no mundo, pois estamos demasiado perto do acontecimento para conseguir ver as suas ramificações e consequências.
Aliás, existem exemplos de acontecimentos históricos bastante antigos (escravatura, queda da União Soviética, cultura de consumo) cuja totalidade das implicações que criaram ainda é para nós desconhecida atualmente.
Com a psico-história, nós não precisamos de esperar tanto tempo. Só temos de calcular as reações de certos acontecimentos e… pronto, já está a imagem do puzzle feita.
O mais próximo que estamos disso é a comparação entre acontecimentos passados e presentes (p.e., comparar a ascensão do fascismo nos anos 30 com a ascensão da direita alternativa nos dias de hoje, comparar a crise do cinema dos anos 60 com a crise no cinema de hoje). A verdade é que reagimos de maneiras parecidas (mas nunca iguais) a acontecimentos parecidos, criando padrões por toda a história.
Tendo total conhecimento disto, Asimov criou uma história de ficção científica baseada em acontecimentos passados, nomeadamente na queda do Império Romano.
Asimov admitiu, em várias ocasiões, que a maior inspiração para a Fundação, foi o livro História do Declínio e Queda do Império Romano de Edward Gibbon, que conta detalhadamente como o Império Romano passou do maior império de toda a história, expoente cultural, linguístico e civilizacional do ocidente, que se estendia desde Lisboa até a Arménia, para uma mera cidade arruinada, vulnerável a qualquer ataque de uma tribo bárbara.
E como hoje é sabido, a queda do Império Romano causou séculos de estagnação cultural e tecnológica, que hoje denominamos de Idade Média.
Como muitos já o afirmaram, Fundação é uma obra que usa o passado para falar do futuro, logo, também do presente.
Se já abordámos o passado que influenciou a Fundação, analisemos o presente que inspirou a Fundação – o presente da altura em que Asimov a escreveu, obviamente.
Constitui um facto familiar os futuros ficção-científicos referirem-se, em algum nível, ao tempo presente em que são escritos. O 1984 de Orwell era realmente 1948. A Fundação de Isaac Asimov é uma América dos anos cinquenta com a dimensão de uma galáxia. Também acontece com frequência a principal personagem de um romance de FC ser um duplo do autor.
– Rudy Rucker, introdução de “Metrófago” de Richard Kadrey, publicado em Portugal na «Colecção Argonauta» (n.º 392-393) pela editora Livros do Brasil.
Nota-se também que em Fundação, há também situações que já estão bem datadas, como a predominância da energia nuclear e do tabaco, no que, supostamente, é um futuro distante.
Mas Asimov, sabendo que prever o futuro é uma tarefa impossível e muitas vezes fútil (apesar de ele ter tentado inúmeras vezes ao longo da sua vida), e sabendo que algumas coisas que no tempo em que ele escreveu eram consideradas futuristas ou simplesmente atemporais, mas que no futuro, se calhar, já seriam datadas, mudou o rumo da história, apresentando-nos o Mula, que põe o Plano Seldon por terra.
O Mula é-nos apresentado no 2.º livro, e com os seus poderes mutantes mentais destrói o Império e a Fundação, destruindo o Plano Seldon (pois tal acontecimento era impossível de ser previsto). Somente no 3.º livro, a segunda Fundação derrota o Mula, “reestabelecendo” muito precariamente o Plano Seldon.
O Mula representa a imprevisibilidade da história, de como certas coisas nós simplesmente não podemos prever. O maior exemplo disso que nós temos hoje em dia é a internet. Por exemplo, nos anos 80 muito poucos tinham conhecimento da existência da internet, e se alguém tentasse prever o futuro não levaria em conta a internet, tornando a previsão errónea. E mesmo que soubesse tivesse conhecimento da existência da internet de então, talvez não soubesse das formas de corrompê-la nem o impacto que teria.
A verdade é que, num estalar de olhos, a internet tornou-se essencial, mudando as nossas visões e perspetivas do mundo, revolucionando a maneira com que nós nos comunicamos.
Asimov também previu essa rede mundial, No entanto, atualmente, as suas visões do impacto de tal rede parecem-nos muito inocentes, pois o autor simplesmente não poderia prever como algumas pessoas podiam manipular e corromper alguma coisa que no papel parecia ser algo brilhante e incorruptível.
O Plano Seldon falhou. Estava destinado a falhar desde a sua criação. Prever o futuro é impossível. No entanto, posso ter uma certeza – que mesmo daqui a 100, 200 anos, a Fundação de Isaac Asimov não envelhecerá nem uma ruga.
Quanto ao trailer que foi disponibilizado sobre a sua adaptação, considero-o demasiado escuro. No entanto, agrada-me que dois dos maiores livros de ficção científica estejam a ser adaptados com todo o respeito que merecem. Desejo o maior sucesso para Dune e Foundation. No que me toca, quanto mais filmes e séries de ficção científica melhor. E quem sabe, talvez estas adaptações atraiam mais pessoas para o fantástico género da ficção científica.
Fundação | Fundação e Império | Segunda Fundação
Isaac Asimov
Editora: Saída de Emergência
Páginas: 288 | 288 | 272
Encadernação: capa mole
Dimensões: 160 x 230 mm
ISBN: 9789897731426 | 9789897731839 | 9789897732232
PVP: 17,90€ (cada)
Desde que aprendeu a ler, gasta o seu tempo a ler banda desenhada e a ler legendas de filmes de ficção científica, e desde que ganhou esse hábito com muito poucos anos, não se perdoa a si mesmo por não ter investido mais tempo em equações e contas de multiplicar.
Após uma experiência com um canal de Youtube sobre filmes e BD, João usa o seu tempo livre para escrever críticas de cinema e ensaios sobre as suas longa-metragens e livros favoritos. Se estiver mesmo com azar, vai-o encontrar a andar pelas ruas de Lisboa, muito provavelmente à procura de DVDs a preços acessíveis, o que explica porque anda sozinho.
Mais um artigo maravilhoso
Conheci Isaac Asimov nos anos 60, contemporaneamente a Arthur C. Clarke, cujo romance 2001 – Uma Odisseia no Espaço, se tornou o filme dirigido por Stanley Kubrick, que encantou os apaixonados por ficção científica. À partir daí, li a incrível trilogia Fundação. Parabéns João Ruy, por mais este excelente artigo.
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