Análise ao trabalho de Šejić em Harleen.
Antes de começar esta análise, devo esclarecer o meu fraco conhecimento acerca do universo de super-heróis da DC Comics. Antes de Harleen, o único livro deste universo que li terá sido o Batman: A Piada Mortal.
Porque fui então ler Harleen? A capa já me tinha deixado curioso quando a obra foi lançada em fevereiro e as temáticas mais sombrias associadas à cidade fictícia de Gotham, são também algo que me tem deixado curioso a explorar um pouco deste universo. Talvez esta obra não tenha sido a melhor opção para embarcar inicialmente no universo em questão, mas a verdade é que não quis perder mais tempo a pesquisar “a obra certa” para começar.
Creio que a maior parte do público geralista já tenha ouvido falar no Batman e no Joker, seja através do cinema, da banda desenhada, dos desenhos animados, videojogos ou simplesmente do merchandise. Quanto a Harley Quinn, não penso que a sua popularidade seja significativamente mais reduzida que a dos demais.
Numa breve recapitulação, Harley Quinn é, no fundo, a vilã do universo DC que foi arrastada para o mundo do crime por influência da sua disturbada e psicótica paixão/obsessão com Joker, o mais memorável arqui-inimigo de Batman e, possivelmente, o mais popular vilão de todo o universo DC.
A personagem acaba por ter umas quantas características semelhantes às da sua cara metade, dentre elas o carisma e a própria temática da indumentária, tornando Harley Quinn numa espécie de versão feminina de Joker, embora, claro, cada personagem tenha as suas próprias motivações.
Harleen foi editado em Portugal no início do ano 2020, em fevereiro, pela Levoir. A editora dividiu a minissérie em dois volumes, compilando um comic book e meio em cada volume, num total de três que a completam. A questão da divisão – e, especialmente, como foi feita, ao cortar um comic book a meio – terá sempre a sua parte polémica, ainda para mais quando não se trata de uma minissérie muito grande, que poderia perfeitamente ter sido editada na sua íntegra num único volume.
A série foi originalmente publicada pela DC Comics sob a chancela DC Black Label no final do ano 2019 e, quer o argumento, quer a arte, são da autoria de Stjepan Šejić.
A premissa explora a origem da personagem Harley Quinn (e, de certa forma, também a do vilão Duas Caras) alternativa à versão Joker & Harley Quinn: Amor Louco também editada em Portugal pela Levoir. Não vou tecer comparações quanto às duas obras, uma vez que não conheço ainda esta segunda.
Quanto a Harleen, o argumento apresenta-se voltado para um público maduro, com cenas de violência e sangue, sugestão sexual, entre outras. A obra começa por explorar o lado mais terno e o lado mais profissional de Harleen Quinzel (a protagonista alter-ego de Harley Quinn) antes desta se tornar na famosa vilã. Apresenta-nos parte da sua vida anterior e mostra-nos ainda o momento em que se cruza pela primeira vez com Joker, durante um distúrbio causado pelo mesmo em local público. A partir daí, vemos uma Harleen focada em promover um programa por si desenvolvido com objetivo de “curar” os criminosos psicopatas de Gotham. A personagem é então introduzida ao Asilo de Arkham e nesse local passa a acompanhar psicologicamente esses mesmos criminosos como seus pacientes. Não querendo resumir a totalidade da história, é em Arkham que Harleen se virá a apaixonar por Joker, um dos seus pacientes.
A obra é interessante e entretém bastante. É fácil de acompanhar até para os menos conhecedores do universo em questão (como eu). Na pior das hipóteses, poderá haver sempre uma ou outra referência que passe despercebida, mas que não causará qualquer entrave. Quero dizer que a obra não precisa propriamente de conhecimento prévio sobre as personagens para ser agradável e divertida.
A reinterpretação parece adaptar-se bastante bem à contemporaneidade dos nossos tempos, embora o meu desconhecimento da original origem da personagem não me permita tecer afirmações confiantes quanto às semelhanças e diferenças.
A parte mais sombria que associava a Gotham não me desapontou em Harleen. Na verdade, essa sensação é bem passada nesta obra, com principal destaque para a última parte da história.
O argumento não é clinicamente rigoroso, por questões óbvias, mas Šejić fez um trabalho notável, conseguindo transmitir uma premissa palpável e coerente. A história desenvolve-se a um ritmo interessante e bastante atrativo. As alterações psicológicas na personalidade de Harleen Quinzel não acontecem repentinamente e esse era o maior receio que tinha quanto ao argumento. Todavia, em Harleen, Šejić conseguiu manter um ritmo bastante bom e a mudança na protagonista dá-se progressivamente, explorando assim um argumento quase credível.
Quanto à arte da obra, esta é a parte onde a obra mais desilude. Embora à primeira vista pareça uma arte e cor muito boas, bastante detalhadas e com um sentimento relativamente realista, é só quando pegamos na obra e lemos com atenção que notamos as imensas falhas e descuidos. Šejić tem uma clara consciência artística e proporcional, mas nesta obra falha bastante na falta de cuidado. É quase regra, que as partes do traço onde há menos foco para o leitor, sejam também as mais desleixadas e permaneçam muitas vezes rabiscadas e mal definidas. Além disso, podemos facilmente reparar também nas constantes falhas na cor, ora a cor ultrapassa o traço delimitante, ora a cor fica em falta em alguns espaços que se apresentam mais desleixados. O desleixo na arte é bastante óbvio mal se comece a ler a obra com atenção.
A versão de Joker que Šejić nos apresenta é, na minha opinião, um pouco fraca. O personagem aparenta ser mais jovem do que o habitual (o que poderia ser justificado pela linha temporal em que a obra se encontra) e falta-lhe muito do seu carisma visual. Este Joker, no fundo, não parece ter um ar tão assustador ou psicótico, na verdade parece um jovem homem bonito, embora mais pálido que o normal e de cabelo verde. Na minha opinião, perdeu-se muita da estética única do personagem nesta obra.
Embora me pareça um valor um pouco elevado no que toca a soma dos dois volumes e, portanto, reveja a possibilidade de um valor mais modesto caso a editora tivesse apostado na edição em volume único tivesse, creio que a leitura de Harleen vale a pena e não perde o seu valor. Não sei qual possa ser a opinião dos fãs e leitores mais dedicados a este universo DC, mas para os menos experientes e mais curiosos, sugiro esta leitura, não exatamente como introdução ao universo em questão, mas, pelo menos, como leitura lúdica.
Rafael Marques tem 24 anos durante o ano de 2020. É músico em Lisboa e faz disso a sua profissão. A restante parte do seu tempo é dedicada ao sono, ao gaming e à leitura de banda desenhada, que terá descoberto como uma das suas maiores paixões entre 2018 e 2019, quando se envolveu numa relação com uma artista/ilustradora. Rafa é um apaixonado por tudo aquilo em que trabalha. Em segredo, escreve argumentos para banda desenhada, que são executados em belas pranchas pela sua companheira. Ainda sonha um dia vir a ser mordido por uma aranha radioativa…