Entrevista a Rafael Marques e Katiurna

Entrevista a Rafael Marques e Katiurna

Entrevista a Rafael Marques e Katiurna a propósito do final da publicação de 2 séries de webcomics e o início de Holy.

O site Bandas Desenhadas publicou durante 8 meses a série de webcomics A Vida aos Quadradinhos de Rafael Marques e Katiurna. O mês passado autoeditaram o 1.º número de Holy e esta semana termina a série de webcomics No Limbo de Marques. Tal foi o mote para uma curta entrevista aos autores, na qual se abordam ainda outros projetos nos quais se encontram envolvidos.

Nuno Pereira de Sousa: A Vida aos Quadradinhos foi a primeira série de banda desenhada conjunta dos dois que foi dada a conhecer ao público. Querem partilhar com os leitores como surgiu esta série e em que consiste?
Rafael Marques: Já colaborava com a equipa do Bandas Desenhadas há uns meses, quando o Nuno, administrador do website, me fez a proposta de desenvolver um webcomic exclusivo para o mesmo. A ideia era juntar crítica a obras estrangeiras e banda desenhada num só. Deu-me exemplos e eu falei com a Katiurna, que aceitou embarcar no projeto. A partir daí, fui desenvolvendo umas ideias, discutimos umas quantas, escrevi um argumento piloto para o primeiro número – que acabou por ser dispensado – e passámos ao entendimento de que precisávamos pensar em conjunto.

NPS: É raro existirem protagonistas negros na banda desenhada portuguesa. Foi uma opção consciente?
Katiurna: Não. Na altura, a única coisa que me estava a passar pela cabeça era que queria fazer uma personagem “estilosa”. Ora, a minha ideia de algo “estiloso” muitas vezes não vai de encontro à ideia de “estiloso” do Rafa, por isso tive de fazer um personagem mais simples, já que se ia tratar de um adolescente. Desde o início que o desenhei negro, mas a vestimenta dele mudou BASTANTE, mais por um alerta do Rafa do que escolha própria. Mesmo assim, decidi manter o penteado dele, que acho que é das coisas que o torna mais único.

NPS: O vosso método de colaboração foi semelhante àquele em que já estavam a trabalhar?
RM: Houve alguma diferença, no sentido de simplificar as coisas, o que nem sempre resultou tão bem. Em A Vida aos Quadradinhos era eu que escolhia as bandas desenhadas que iam ser abordadas, entre as que já tinha lido ou andava a ler e depois fazia o argumento para a Katiurna. Geralmente, fazia um storyboard muito esboçado e depois escrevia, de uma forma muitas vezes informal, por estar a trabalhar com a minha companheira. A partir do argumento, muitas vezes a Katiurna fazia surgir ideias diferentes, melhores até, quer da disposição da prancha ou até de algumas das vinhetas. Pode dizer-se que trabalhámos este projeto sempre de uma forma mais informal e “caseira” em relação a projetos anteriores, como no caso do Holy.
K: (risos) A falar assim, quase faz parecer que era um conto de fadas, quando na verdade sempre houve alguma discordância. Especialmente, quando ainda não sabíamos exatamente como as coisas deviam funcionar. De qualquer das formas, a primeira prancha d’ A Vida Aos Quadradinhos foi feita à mão, tal como o primeiro número de Holy, mas não fiquei muito contente com o resultado, embora o objetivo inicial fosse ter um aspeto mais tradicional. Como não gostei, comecei posteriormente a fazer todas as pranchas seguintes na minha mesa gráfica, usando o Photoshop e, mais tarde, o Clip Studio Paint.  

NPS: Após A Vida aos Quadradinhos ter terminado em setembro com o seu 16.º episódio, é agora a vez de encerrar a série No Limbo com um total de 4 episódios, o primeiro trabalho a solo na BD de Rafael. Como foi esta primeira experiência?
RM: No Limbo é uma experiência a não repetir (risos). Ou, pelo menos, não tão cedo. Quis experimentar a minha “faceta artística” e a Katiurna também queria procurar novos campos da sua arte ou, pelo menos, parar de ilustrar os meus argumentos por uns tempos e por isso decidi fazer o meu próprio webcomic a solo. Ideias não me faltavam e vontade também não. Embora o desenho nunca tivesse sido o meu forte, quis experimentar. No Limbo foi uma ideia que surgiu por influência de séries de BD e videojogos que andava a acompanhar na altura. Além disso, andava há algum tempo com a ideia de escrever algo com uma estética um pouco obscura e com alguma tensão, porque tinha ficado completamente maravilhado com o ambiente do jogo Little Nightmares. Queria também mudar de personagens a cada episódio e explorar os seus sentimentos e emoções, mas tinha de haver algo que os juntasse a todos de alguma forma. O “Curador” foi o elo que encontrei e, a partir daí, decidi que seria interessante se o mesmo fosse o protagonista sem que se apresentasse como tal. Foi uma experiência divertida mas, na maior parte do tempo, foi frustrante. Descobri que o meu traço e a minha técnica não chegam para isto e acabei a perder muito tempo de roda de vinhetas que não conseguia terminar e páginas que não conseguiram passar a sensação que pretendia inicialmente. Ter de escrever o argumento e ainda desenhar foi, para mim, quase uma péssima experiência. Adoro escrever, mas quando sei que vou desenhar o meu próprio argumento não me consigo dedicar totalmente a nenhuma das práticas e acabo por não atingir o que quero em ambas.

NPS: Entretanto, recentemente, autoeditaram, via a recém-fundada por vós RKComics, o primeiro número de Holy, série que está a ser publicada online na Comixology. Trata-se do vosso primeiro trabalho conjunto e está bastante adiantado. Porque só foi agora mostrado ao público?
K: Antes de publicarmos Holy na Comixology andámos a contactar algumas editoras para ver se se interessavam na nossa BD, mas muitas iam-nos dizendo que tínhamos de ter mais números feitos. Por outro lado, também queríamos completar, pelo menos, os cinco primeiros números como prova de que conseguimos levar um projeto até ao fim, mesmo que Holy ainda não esteja completo e os cinco primeiro números constituam o primeiro volume.
RM: A edição física não estava inicialmente nos nossos planos, mas a família da Katiurna fez questão de mandar imprimir uns quantos exemplares e, a partir daí, o interesse dos leitores fomentou também o nosso interesse em continuar.

NPS: Nota-se que tiveram um cuidado extra com a escolha do material para a capa, bem como a qualidade do papel e impressão do #1. Estes detalhes importam?
K: Sim, a qualidade importa sempre, principalmente para um duo de autores que apresenta um dos seus primeiros trabalhos e procura reconhecimento no meio. Tudo importa, desde a arte, à escrita, mas também a própria edição. Satisfaz-nos esta qualidade, embora não esteja satisfeita com as cores da capa – este terá sido um erro técnico meu, pois, quando fiz a capa, não sabia que existiria posteriormente edição física. Acho, portanto, que a versão original na Comixology apresenta cores mais vibrantes que a versão física.
RM: Acrescento apenas que inicialmente queríamos ter este tipo de papel utilizado apenas na capa. No entanto, todas as páginas acabaram por ser impressas no mesmo material. Isto acaba por nos sair mais caro que desejaríamos, mas o nosso principal objetivo neste momento é fazer a obra chegar ao máximo de leitores que consigamos e causar uma boa impressão.

NPS: Porque não avançaram com uma edição em língua portuguesa para a versão impressa de Holy #1, ao invés da inglesa? 
RM: O livro foi projetado para a língua inglesa desde o início. A ideia foi remeter ao máximo de editoras estrangeiras possível e tentar a nossa sorte. Infelizmente, não conseguimos nenhuma boa proposta de edição e as editoras portuguesas não quiseram publicar material que não era autoconclusivo e, por isso, a autoedição acabaria por ser mesmo a única opção. A legendagem e balonagem dos primeiros números foram feitas no Photoshop e, a partir do terceiro, começámos a usar o Clip Studio, pelo que os ficheiros de Photoshop acabaram por se perder e, com eles, a possibilidade de manipular a balonagem e a legendagem. Portanto, traduzir e fazer uma nova legendagem em português requeria que fizemos uma nova balonagem por cima da original ou que apertássemos o texto ou diminuíssemos o tamanho da letra para que coubesse nos balões originais. Portanto… Uma carga de trabalhos que não iria resultar. Esta mudança de software de Photoshop para Clip Studio fez uma enorme diferença quer na balonagem, quer na legendagem e os leitores vão certamente notar isso, principalmente a partir do número 3.

NPS: Numa altura em que, com a pandemia, as autoedições quase desapareceram, dado estarem frequentemente dependentes da realização de festivais e outros eventos, remaram na direção contrária, apesar das vendas de autoedições por correio costumarem ser residuais. O que os levou a esta estratégia?
K: Não houve propriamente uma estratégia. Nós já tínhamos pensado em compilar a BD num volume quando os cinco números estivessem terminados porque achámos que seria mais apelativo ao público português. Mas, entretanto, a minha família quis ajudar e acabámos por fazer o primeiro número em formato físico. Não tínhamos grandes expectativas, pois não houve muitos interessados quando a publicámos na Comixology, mas, felizmente, tem tido uma resposta positiva.

NPS: Acreditam que as muitas séries publicadas pela Image e lidas por vós são uma das grandes influências no vosso trabalho? Que outras influências citariam?
RM: A mim, a influência chega-me através de praticamente tudo o que explore, sejam livros, séries televisivas, filmes ou videojogos, mas a Image teve um papel particularmente forte para mim no campo da banda desenhada e é aí que vou buscar as principais referências que leio. Posso dizer que a grande influência para Holy foi a escrita de Garth Ennis e penso que isso se percebe, pelo menos de relance. Na altura que comecei a projetar a BD, andava a ler The Boys e essa série estava a ter em mim um grande impacto em termos de narrativa, mas Preacher – que admito não ter terminado a leitura – foi um dos maiores influentes. Na altura, inspirei-me um pouco na adaptação ao pequeno ecrã.
K: Já no meu caso, os artistas que mais me influenciaram não fazem necessariamente parte da Image. Desde que me lembro que o Jamie Hewlett foi uma influência gigantesca na minha arte e, especialmente, na forma de eu pensar. Pode estar longe de ser a melhor BD de todas, mas Tank Girl é uma das minhas BD favoritas, juntamente com The Goon de Eric Powell. Acho que vi no trabalho de Eric Powell algo muito similar ao de Jamie Hewlett. Para além do Jamie e do Eric, Robert Valley é também uma influência gigantesca para mim. Em Holy, senti que não estive no meu auge criativo e, sinceramente, não fiquei totalmente satisfeita com o trabalho que fiz. Não me senti à vontade para aplicar o meu estilo a 100%, pois foi algo mais controlado pelo Rafa do que por mim.

NPS: Participaram também numa antologia com um trabalho conjunto. Falem-nos desse trabalho.
RM: Neste caso, queríamos contribuir com a nossa participação e também divulgar um pouco do trabalho que conseguimos desenvolver. O André Oliveira convidou-me para ficar encarregue de um dos argumentos que deveria ter sido seu e eu aceitei. Depois perguntei se queriam acrescentar mais uma prancha, uma vez que a Katiurna estava também interessada e ofereci-me também para escrever o seu argumento. Foi um trabalho fluído e, embora não tenha qualquer amostra de genialidade, fico satisfeito pelo contributo que demos à causa e também por ter sido algo mais instintivo e que saiu quase logo bem, sem grandes alterações.

NPS: Quais são os vossos planos a solo e em conjunto a curto e médio prazo, no que toca à banda desenhada.
K: Por enquanto, vou fazendo uns trabalhos como freelancer para ganhar uns trocos, mas também me tenho dedicado a fazer projetos pessoais de que tanto precisava. Se alguém quiser colaborar, é só entrar em contacto comigo.
RM: Pessoalmente, gostaria muito de terminar a série Holy, projetada para uns 3 ou 4 volumes, pois não gosto de deixar trabalhos por acabar, mas isto será algo que dependerá completamente do interesse dos leitores, uma vez que esta BD dificilmente nos trará lucro e não deixa de despender bastante tempo, principalmente à Katiurna. Para já, vamos manter esta pausa do trabalho em conjunto e posso avançar apenas que não tenho parado de escrever as minhas coisas. Terminei há uns meses um argumento para um romance gráfico que nada tem a ver com Holy e onde procurei um ambiente e uma narrativa direcionados ao “leitor português”. E posso avançar também que já encontrei o artista que desenvolverá a arte do mesmo – se tudo correr como esperado – e que, aliás, já começou. Terminado também o projeto No Limbo, há um par de ideias – além das que estão na gaveta – que quero começar a desenvolver o quanto antes e, por isso, é mais um argumento para escrever. Desta vez algo mais introspetivo, um pouco mais pessoal, mas que estou convencido que tenha potencial diante do público português.

NPS: Por fim, a pergunta mais importante (risos). Qual é a fascinação por protagonistas de cabelo em pé como em Holy e em A Vida aos Quadradinhos?
K: Boa pergunta (risos)! Nunca tinha pensado nisso mas, de facto, há aqui uma tendência. E, agora que penso melhor, a personagem de Holy e a de A Vida aos Quadradinhos estão longe de ser as únicas personagens que criei que têm cabelos assim! Talvez seja um deslize freudiano. Normalmente, acho que esses penteados dão bastante carisma à personagem. Não é que a Marge Simpson seja a personagem mais carismática de sempre, muito pelo contrário, mas acho que dá um certo estilo invulgar à personagem que a faz tornar especial. Se eu continuar a fazer isto, as personagens vão perder a sua peculiaridade, mas, por enquanto, o meu subconsciente vai inserindo esses penteados na minha arte. Que raio de subconsciente…

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