Entrevista a Marta Breen

Entrevista a Marta Breen

Entrevista à autora de Mulheres Sem Medo.

A propósito do lançamento da banda desenhada Mulheres Sem Medo: 150 Anos de Combate pela Liberdade, Igualdade, Sororidade no nosso país, entrevistámos a argumentista Marta Breen, tendo ainda contado com a presença relâmpago da ilustradora Jenny Jordahl.

Nuno Pereira de Sousa: Fica surpreendida quando alguém diz que a liberdade, igualdade e os direitos das mulheres não é uma preocupação atual no denominado mundo ocidental? O que contrapõe a quem considera estes direitos garantidos?
Marta Breen: Sim, eu prenso que é surpreendentemente inocente considerar que alcançámos a igualdade atualmente. É importante lembrar que as vitórias anteriores não estão gravadas em pedra e que direitos difíceis de conquistar podem ser perdidos novamente. Infelizmente, tal parece estar a acontecer em algumas partes do mundo atualmente, pelo que nós não podemos relaxar e descansar.

NPS: Quais são as suas maiores preocupações atuais quanto a estes tópicos na Noruega e na Europa?
MB: Atualmente, estamos a vivenciar retrocessos quanto à igualdade de género, inclusivamente em países que são conhecidos por serem mais progressistas. A Turquia, a Polónia e a Hungria são alguns exemplos. Em muitos países europeus. Em muitos países, os partidos populistas de direita tiveram muito apoio nos últimos anos e estão a trabalhar ativamente contra os direitos dos homossexuais e do feminismo. Muitos destes líderes patriarcais autoritários também trabalham arduamente para aumentarem a oposição à investigação relacionada com o género e querem manter os papeis de género mais tradicionais. As mulheres na Polónia perderam o direito a um abortamento seguro. E, nalguns países, o governo quer anular a adesão à convenção de Istambul, que tem sido uma arma muito importante para lutar conta a violência contra as mulheres. Tudo isto preocupa-me muito.

NPS: Quando o livro A História de uma Serva (The Handmaid’s Tale) de Margaret Atwood foi publicado pela primeira vez, foi considerado por muitos como uma fantasia pouco credível. Acredita que alguns dos acontecimentos narrados no livro podem facilmente ocorrer no mundo ocidental atual?
MB: Sim, eu acredito que, infelizmente, o livro de Margaret Atwood é muito relevante atualmente. No meu livro mais recente, “How to be a feminist” (Cappelen Damm, 2019), eu escrevo sobre uma manifestação política em 2019, na qual um grupo de feministas norueguesas se reuniu no centro de Oslo, vestindo robes vermelhos e capuzes brancos como as servas do rimance de Atwood. A razão porque muitas ativistas marcharam com esteas roupas foi para protestar contra uma proposta do governo conservador para alterar a lei do abortamento. Desde 1978, a Noruega tem tido uma lei de abortamento liberal que permite às mulheres decidirem se querem interromper a gravidez até à 12.ª semana. No entanto, o governo atual tem repetidamente colocado a lei do abortamento na mesa das negociações com o partido cristão, os quais gostariam de de reescrever a totalidade da lei e alterar este direito. No entanto, como não têm a maioria, têm então tentado introduzir leis que tornam o processo do abortamento difícil de diferentes modos. Felizmente, não tiveram sucesso. O que é mais assustador em The Handmais’s Tale não é a tortura, a violação e a maldade, mas os flashbacks para o tempo em que os patriarcas estão a ganhar o poder necessário para levar a sua a avante, uma vez que mostra uma época muito similar àquela em que vivemos. As mulheres nesta história não perderam os seus direitos da noite para o dia – foi ocorrendo pouco a pouco. Uma lei aqui, outra ali. Uma proibição aqui, outra ali. As pessoas abanaram a cabeça, mal acreditando no que estavam a ouvir; provavelmente, não levando o que estava a acontecer muito a sério – “Eles não estão mesmo a fazer isto, certo? A sério? “-, antes de continuar com as suas vidas diárias, o melhor que conseguiam, sob condições cada vez mais rígidas. Houve quem achasse que as feministas norueguesas foram demasiado longe ao usarem as vestes de The Handmaid’s Tale. Mas, a Noruega não é um dos principais países no que toca à igualdade? Sim, é. E vai continuar a ser. Continuaremos a mostrar que estamos vigilantes, que sabemos o que está a acontecer. Manifestamo-nos para evitar estar no futuro a perguntarmo-nos “Como deixámos isto acontecer, mesmo à frente dos nossos olhos?” Manifestamo-nos porque podemos. E manifestamo-nos em nome daqueles que já não o podem fazer. É preciso reconhecer a misoginia escondida na defesa de “fortalecer a família nuclear e os valores tradicionais”. É mais importante do que nunca que as feministas se unam para além das fronteiras nacionais.

NPS: Ficou surpresa com o sucesso internacional de todos os seus livros? Nas palestras no estrangeiro, como lida com tantas realidades diferentes no que concerne a igualdade e os direitos das mulheres?
MB: Sim, foi uma experiência surpreendente e maravilhosa o livro se ter tornado um bestseller internacional. Eu aprendi muito nos últimos dois anos, não só sobre os direitos das mulheres noutros países mas também como os estrangeiros olham para os escandinavos. Quando dou palestras no estrangeiro, frequentemente foco-me em heroínas específicas do país que estou a visitar. Por exemplo, quando estava a palestrar numa escola inglesa falei sobre as sufragistas britânicas, quando visitei uma escola alemã contei a história de Clara Zetkin e na Rússia foquei-me na Alexandra Kollontai. Após as apresentações, a audiência tinha muita questões sobre a política de género na Noruega e falavam da sua própria situação, pelo que aprendemos muito em conjunto.

NPS: Hoje em dia, o termo “feminismo” é perigoso?
MB: O termo “feminismo” não deve ser considerado perigoso em si mesmo, porque é uma simples designação para lutar contra a discriminação de género. Como uma feminista, não quero que o género de uma pessoa limite a sua liberdade ou as oportunidades neste mundo. É tão simples quanto isso. Mas, é claro que este movimento pode ser uma força poderosa. Eu acredito que, na verdade, o feminismo pode ser a revolução com mais sucesso na história. Houve poucos movimentos que criaram grandes mudanças na sociedade num curto período de tempo. Há apenas um século, as mulheres não tinham direito à educação, ao trabalho, a divorciarem-se ou a votarem em eleições públicas. Tudo isto estava reservado aos homens. Historicamente, o feminismo tem sido sinónimo de modernização. O movimento das mulheres tem constantemente trabalhado para adaptar velhas e criar novas normas, tradições e formas de pensar em tempos modernos e pessoas modernas. Há quem sempre vá lutar quando as tradições se quebram, mas normalmente acabam por perder. O mundo anda para a frente, lenta mas certamente.

NPS: Se acredita que a luta pelos direitos das mulheres deve ser contínua, porque pensa que existem diferentes ondas de feminismo ao longo da história? As pessoas esquecem-se desse assunto entre as ondas?
MB: Há muitas mulheres que lutam por estas questões o tempo todo, haja ou não uma “onda feminista”. Eu penso que estas ondas ocorrem quando a restante sociedade está disponível para ouvir. Por vezes, estamos em consonância com o espírito dos tempos e, então, as coisas começam a andar.

NPS: Acredita que o Dia Internacional da Mulher perdeu o seu significado político para se transformar em algo mais semelhante ao Dia dos Namorados ou Dia da Mãe?
MB: Como uma feminista norueguesa, estou habituada a ver o 8 de março como um dia para comemorar a luta política. Os jornais noruegueses apresentam durante toda essa semana artigos sobre o género e a igualdade. Milhares de mulheres desfilam nas ruas para destacarem questões atuais ou para celebrar as vitórias já ganhas. Isto é um grande contraste com o que me apercebi quando visitei países no qual O Dia da Mulher é tratado como uma combinação do Dia da Mãe com o Dia dos Namorados. Em muitos locais, o 8 de Março é visto como uma oportunidade para dar à mulher da sua vida uma caixa de chocolates, um ramo de flores ou um postal cor de rosa com uma pequena declaração de amor escrita no mesmo. “Obrigado por tudo o que fizeste este ano”, por exemplo. Pessoalmente, eu ia ficar muito zangada se um homem me desse chocolates em forma de coração no Dia da Mulher. Mas, de um modo geral, penso que o Dia Internacional da Mulher, tem-se tornado mais relvante. Há cada vez mais pessoas a abrir os olhos para acontecimentos perigosos e a começar a protestar nas ruas, por todo o mundo. Nos últimos anos, milhões de mulheres manifestaram-se contra as atitudes de Donald Trump em relação às mulheres e números recorde de mulheres fizeram greves em países como Espanha, Chile e Argentina.

NPS: Pensa que os papeis de género ainda são um tópico importante no mundo ocidental? Se sim, como tal pode ser alterado?
MB: Sim, acredito que os papei de género estritos são ainda um problema em todo o mundo. Os papeis de género tradicionais são um grande obstáculo para o desenvolvimento mundial. Mas também é um assunto importante no mundo ocidental. Sabemos que tanto os homens quanto as mulheres são mais felizes quando os padrões dos papeis de género são suavizados. Nas regiões nórdicas, fizemos um longo caminho: os pais modernos fazem a sua parte em todas as tarefas, desde mudar fraldas e cozinhar à parentalidade e limpeza da casa e são nossos aliados na luta contra o sexismo. No entanto, historicamente, tem sido difícil a muitos homens associarem-se a si próprios com a palavra “feminista”. Isto pode dever-se a associarem ser “feminina” com ser fraco – tal como tem sido ao longo de quase toda a nossa história cultural – e, como consequência, distanciam-se do movimento. Os rapazes continuam a crescer com medo de serem visto como “femininos” ou “efeminados” devido às associações de feminilidade com a fraqueza. Nos anos escolares, a palavra mais utilizada pra insultar continua a ser “gay”. E, nalguns países, a ideia do homem macho invencível ainda está muito presente – como o líder político em tronco nu em cima de um cavalo enquanto se gaba de ter lutado contra um tigre… Há muito trabalho a ser feito. É particularmente difícil exterminar os papeis de género. O que é mais importante é que, nós feministas, estejamos conscientes da sua existência nas nossas comunidades. Porque, se queremos um ideal feminino mais flexível, também temos de apoiar um ideal masculino mais flexível. Isto requer que os homens das nossas vidas se sintam confiantes de que não nos vamos rir deles, nem os ignorar ou afastar se nos mostrarem as suas emoções e fraquezas. E, claro, temos de apoiar a luta política pela igualdade de género que também lida com os problemas que os homens têm. Temos de continuar a lutar pela expansão dos papeis de género porque, infelizmente, há forças poderosas a trabalhar no sentido inverso.

NPS: Está familiarizada com a política e quotidiano portugueses no que se refere à igualdade e direitos das mulheres? Se sim, na sua opinião, como a compara com a norueguesa?
MB: Infelizmente, não estou atualizada quantos aos detalhes da situação de igualdade em Portugal. Mas a Noruega é considerada por ter uma política muito progressiva no que toca à igualdade de género, por exemplo na participação no mercado laboral. Em 2019, a taxa de participação das mulheres no mercado laboral era somente 5% mais baixa do que os homens e a participação das mulheres teve um papel fundamental no nosso crescimento económico. Uma das razões para este crescimento, são os jardins-de-infância financiados pelo governo e a licença de parentalidade tanto para os pais como as mães, o que tornou mais fácil combinar o trabalho com a vida familiar.

NPS: Tem vários livros publicados em conjunto com a ilustradora Jenny Jordahl. Como evoluiu a relação escritora/ilustradora ao longo dos anos?
MB: Acreditamos ser uma grande vantagem ter um sentido de humor semelhante. Nós sabemos imediatamente que parte de uma história nos atrai e como a queremos contar. O nosso processo de trabalho é muito fácil e sem conflitos. E damos muito espaço a cada uma de nós – confiamos nas decisões da outra.

NPS: Se quisesse descrever a Jenny numa só palavra, qual usaria?
MB: Descreveria a Jenny como “calorosa”. Ela mostra entusiasmo pelos outros e fá-los sentir confortáveis.

Também solicitámos a Jenny Jordahl que nos dissesse uma palavra para descrever a Marta Breen.

Jenny Jordahl: Penso que “perspicaz”. Ela faz observações extremamente inteligentes e divertidas.

NPS: Quais são as principais diferenças relativamente aos seus outros livros quando escreve para banda desenhada?
MB:A diferença principal é existir uma colaboração. Quando escreveu os meus outros livros, é um processo solitário e mais vagaroso. Quando faço livros com a Jenny, frequentemente trabalhamos mais rápido e é mais divertido. Preciso de fazer ambos.

NPS: Alguns editores ainda pensam que a banda desenhada é uma forma de tratar levemente de um assunto, de modo a poder ser lido por crianças e jovens. Pensa que este livro de BD lida demasiadamente leve com as temáticas abordadas?
MB: Não, eu penso que precisamos de todo o tipo de livros em tópicos como este – académicos, de investigação, divertidos e infantis. Na minha opinião, os nosso livros têm um bom equilíbrio entre as partes cómicas e o seu lado mais sério.

NPS: Porque decidiu fazer este livro de banda desenhada e que vantagens pensa trazer este meio à temática?
MB: Eu escrevi sobre algumas das mesmas temáticas em livros de não-ficção, alguns dos quais sem ilustrações. Mas gosto muito de escrever banda desenhada, especialmente se o tema é sério. Acredito que esta forma facilite ao leitor aprender e mais facilmente se envolver com a história. Sempre li muita banda desenhada, quer de autores noruegueses quer, obviamente, sucessos internacionais como Maus e Persépolis. Eu quis fazer bandas desenhadas como essas, mas não consigo desenhar. Não tem remédio. Portanto, quando estava num processo de fazer um guia feminista para jovens leitores em 2015, fiz um miniconcurso para ilustradoras e foi assim que a Jenny passou a trabalhar comigo.

NPS: A edição portuguesa de Kvinner i kamp: 150 år med frihet, likhet, søsterskap teve o suporte da NORLA – Norwegian Literature Abroad. Na sua opinião, que outras medidas poderia a Noruega implementar para promover a literatura norueguesa noutros países?
MB: A NORMA trabalha em diferentes vertentes, desde suporte financeiro a promoverem autores noruegueses no estrangeiro. Fazem eventos e convidam a imprensa internacional, entre muitas outras atividades. Portanto, temos muita sorte em ter uma organização como esta. Como fomos escolhidos como o convidado de honra em Frankfurt o ano passado, a cena literária norueguesa tem-se focado muito na exportação.

NPS: Como decerto ocorreu em muitos outros países, o vosso livro é a única banda desenhada publicada recentemente em Portugal. Isto constitui uma surpresa para si?
MB: A comunidade de BD norueguesa não é muito grande mas temos alguns autores internacionais como Jason e Steffen Kverneland. Talvez eles tenham sido publicados em Portugal? Têm sido uma inspiração para todos nós. Também gostamos muito da autora sueca Liv Strömquist.

NPS: Nos países que não publicam BD norueguesa, sente alguma responsabilidade em ser uma espécie de embaixadora da BD norueguesa no estrangeiro?
MB: Seria maravilhoso que o nosso livro pudesse abrir as portas para outros autores noruegueses no estrangeiro. Inclusivamente, existem atualmente autoras norueguesas muito boas, como a Nora Dåsnes, a Malin Falch e a Anja Dahle Øverbye.

NPS: Se este livro fosse produzido daqui a 10 anos, que capítulo não gostaria de ter de escrever quanto à década de 2020-2029?
MB: Acreditamos que o #metoo foi um movimento essencial e abriu os olhos em todo o mundo. Esperamos que esta forma de discriminação contra as mulheres se torna muito menos generalizada nos próximos anos.


© Foto de Marta Breen: Åsmund Holien Mo | © Foto de Jenny Jordahl: Guri Pfeiffer

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