Mas alguns são mais iguais que os outros.
Há muito, muito tempo, os homens construíram um castelo que transformaram em quinta. Já não se sabe bem porquê, mas foram-se embora…
Começa assim O Castelo dos Animais, uma espécie de adaptação da obra de George Orwell Animal Farm, mais conhecido em Portugal como O Triunfo dos Porcos (título fixado pelas Publicações Europa-América).
Orwell escreveu O Triunfo dos Porcos em 1945, no rescaldo da II Guerra Mundial, tendo como referência as ditaduras de Estaline, Mussolini, Franco, Salazar e a Revolução Russa de 1917.
No seu romance, o também autor de 1984 (onde surge pela primeira vez a referência a um “Big Brother”) apresenta-nos uma quinta na qual os animais, cansados dos maus tratos a que são sujeitos, revoltam-se contra os humanos e instituem uma “república”.
“Todos os animais são iguais” é um dos sete mandamentos que criam, mas rapidamente o mandamento é corrompido pois alguns animais são mais iguais que outros. E assim os porcos tomam conta da quinta.
Em O Castelo dos Animais, o escritor Xavier Dorison e o desenhador Félix Delep não só fazem uma nova interpretação da obra de Orwell como lhe dão o cunho de continuação – só perceptível no segundo volume.
Não se pense, no entanto, que esta se trata de uma mera sequela. Obra com méritos próprios, tanto ao nível do argumento como do desenho, tem todas as condições para se tornar num clássico instantâneo da 9.ª Arte.
Vejamos os volumes da tetralogia já publicados em Portugal.
1 – MISS BENGALORE
Originalmente, o primeiro volume é publicado em álbum em Setembro de 2019 pela Casterman. Em Portugal, foi editado pela Arte de Autor em Junho de 2020.
No meio de um bosque denso e belo, um castelo transformado em quinta alberga uma comunidade de animais há muito esquecidos pelo homem.
Aparentemente, a organização política é a de uma república. Mas, na verdade, o presidente Sílvio, um possante e violento touro, governa os animais com pata de tirano. E a ajudá-lo tem a sua própria milícia – uma matilha de cães que utilizam a força para imporem a vontade do ditador.
Se algum animal transgride as regras, vai parar ao pelourinho onde é devorado pelos cães numa cerimónia pública, a bem da educação da comunidade.
E as regras são simples. Todos os animais têm de trabalhar arduamente de modo a encherem o Celeiro Central. Em troca, recebem um parco pagamento que lhes dá a possibilidade de comprarem alimentos.
Por seu lado, o Presidente Sílvio usa parte dos bens do Celeiro bem como as carcaças dos animais executados no pelourinho para o misterioso acto de Permuta com o único humano que mantém contacto com o Castelo. Em troca, recebe champanhe para si e para Bela, a sua vaca, e croquetes para os cães.
Bengalore, carinhosamente tratada por Miss B., é uma gata vadia, viúva e mãe de duas crias. Após a morte do marido, substitui-o na árdua tarefa de transportar blocos de pedra para a construção do novo torreão do Castelo. Só assim, com grande dificuldade, consegue garantir a subsistência dos seus filhos.
Durante o horário laboral, a gansa Margarida toma conta dos filhos de Miss B. Mas Margarida comete o erro de revoltar-se contra a presidência de Sílvio após mais uma execução no Pelourinho.
A revolta custa-lhe caro. No final do massacre à porta do Castelo, corpos de cabras, patos, galinhas e ovelhas jazem em poças ensanguentadas. Pregada à porta do edifício principal, esventrada, está Margarida, com a flor do mesmo nome enfiada no seu bico aberto.
Este é ponto de viragem na postura passiva de Miss B. que, ajudada pela sabedoria de Azélar-Grisalho (um rato itinerante) e pelo apoio de César (um coelho gigolô com um apetite sexual insaciável), organiza uma resistência secreta e pacífica. O símbolo desta resistência… Uma margarida!
Xavier Dorison é conhecido dos leitores portugueses através de várias obras, sendo que as mais recentes publicadas no nosso país são Undertaker (já com dois volumes) e O Castelo dos Animais.
Aqui, Dorison apropria-se dos princípios do Triunfo dos Porcos para criar a sua própria fábula.
Neste primeiro volume, a sua narrativa apresenta-nos o microcosmos da quinta perdida no bosque e lança os alicerces deste “mundo” onde a opressão do mais fraco pelo mais forte é o motor da história.
A sua escrita elegante e clássica opõe em permanência os grandes valores da humanidade e os mais mesquinhos, miseráveis e desprezíveis valores.
Mas o grande trunfo da sua narrativa está, quanto a mim, na caracterização dos personagens associada a um ritmo bem cadenciado e ao mistério criado pelo desaparecimento da quase totalidade dos humanos. O resultado é uma história envolvente que nos prende a respiração do princípio ao fim e durante a qual ansiamos por conhecer com urgência o destino de cada um dos protagonistas.
Miss Bengalore, feminina, delicada e corajosa; o touro Sílvio, tirano e malévolo; César, um gigolô que vai muito além do que deixa transparecer de início; o rato Azélar, o instigador da revolta pacífica e um admirador de Ghandi; e todos os outros personagens que os rodeiam, tanto são capazes de nos emocionar como de nos revoltar. Mas todos eles são cuidadosamente caracterizados em complexas camadas e individualizados.
Dorison não adoça a sua mensagem. E quando a violência se revela necessária ao desenrolar da narrativa, ele expõe-na de forma crua e dura. Por outro lado, não hesita também em polvilhar amiúde a história com notas de humor e de alguma ligeireza, ainda que apenas momentânea.
O resultado é um argumento de grande qualidade que nos envolve emocionalmente do princípio ao fim.
Quanto ao desenho de Félix Delep, ele é uma verdadeira revelação. Ainda mais se tivermos em conta que esta é o seu primeiro livro de banda desenhada.
De traço firme e fluente, o bestiário que cria é muito expressivo e dinâmico, sendo beneficiado por uma montagem de pranchas e uma encenação de vinhetas que são feitas com muita inteligência. E é por demais evidente o cuidado posto na escolha de cada plano.
Em suma, as palavras de Dorison encontram o eco perfeito no traço de Delep. E tudo é envolvido por uma paleta de cores naturais e doces que contribuem também para uma imersão profunda na história.
2 – AS MARGARIDAS DO INVERNO
Originalmente, o segundo álbum é publicado em Novembro de 2020 pela Casterman. Em Portugal, foi editado pela Arte de Autor em Janeiro de 2021.
As cores outonais abandonaram o bosque, agora povoado de árvores despidas e coberto por um espesso manto de neve. O Inverno faz-se sentir implacável.
O presidente Sílvio parece alheio aos suaves sinais de revolta que, aqui e ali, vão pautando o quotidiano duro dos animais do Castelo. Aliás, o touro paquidérmico institui mesmo uma hora extra de trabalho, no final do dia, destinada ao corte e recolha de madeira que os animais terão depois de comprar com a parca recompensa ganha nas horas de trabalho para o Celeiro Central.
A exploração é de tal forma vergonhosa que há aqueles que, passando o final do dia a recolher madeira, só têm possibilidade de comprar um mísero galho para se aquecerem. A solução é a utilização do forno comunitário para o qual cada um contribui com a lenha que consegue adquirir.
E é junto ao calor do braseiro que Miss B. e o coelho César planeiam novas acções de resistência pacífica, agora utilizando a ironia e a perigosa arma do riso.
Apesar do frio cortante, das más condições de trabalho, da exaustão e da fome, os animais recusam comprar mais lenha e, ao mesmo tempo, dançam e riem. E é este tal riso perigoso que chega aos ouvidos do paranóico presidente Sílvio.
Há que tomar medidas e o touro cruel é exímio nos seus esquemas de destabilização. Primeiro manda incendiar o refúgio acolhedor dos animais, em seguida tenta manipular a liderança de Miss B. e, por fim, não conseguindo que os animais lhe comprem lenha, entrega “generosamente” à loucura da multidão aquele que todos têm como o seu principal opressor, o próprio braço direito de Sílvio, o cão N.º1-Azov. E a turba, quando cheira sangue, torna-se irracional, imparável e até agradecida ao tirano.
Neste segundo volume de O Castelo dos Animais, Xavier Dorison só aparentemente marca compasso de espera. Na verdade, a narrativa implacável faz-nos compreender até que ponto os “fracos” são resilientes, determinados e acreditam poder mudar o seu mundo. Mas também nos mostra que, quando não estão unidos, os mais frágeis tornam-se facilmente em cópias do seu opressor.
Neste sentido, o sábio rato Azélar tem a seguinte frase brilhante: “A demência da multidão é mais temível do que a loucura do déspota.”
Aliás, o texto é rico em frases inspiradas que nos vão dando conta dos diversos mecanismos do exercício do poder, ao mesmo tempo que se vão descortinando diversos modos de contestação do mesmo.
E perdida no meio da narrativa, a revelação! O touro tirano foi em tempos o salvador dos animais da quinta vindo do exterior quando estes estavam sob o jugo dos porcos.
Parecendo não avançar, na verdade a história avança. A personalidade de cada personagem adensasse; a tensão corre imparável para um fim surpreendente e chocante e ao leitor não resta outra coisa a não ser esperar, com desespero, pelo próximo volume.
E enquanto espera, fica-lhe a sensação de se identificar com os protagonistas, de estar no lugar deles e com eles querer participar naquele terrível combate. E o mérito, claro está, é de Xavier Dorison que, através da sua narrativa, nos consegue chocar, aterrorizar, emudecer e, sobretudo, fazer apaixonar pela força e doçura de Miss B., de César, de Azélar e de uma galeria impressionante de carismáticos burros, bodes, patos, galinhas e ovelhas.
Claro que aos muitos sentimentos gerados pela leitura desta obra não é alheio o brilhantismo do traço de Félix Delep. Por um lado, consegue o equilíbrio perfeito na representação do rosto de cada animal: os traços de expressão não deixam dúvidas quanto aos sentimentos que cada um nos quer transmitir, mas esses traços não são tão forçados que acabem por humanizar os animais. O segredo do equilíbrio parece estar nas emoções emanadas de todos os olhares, quer de oprimidos quer de opressores.
Os enquadramentos ricos variam de página para página e, ainda que de forma inconsciente, o leitor consegue ter uma leitura dinâmica e refrescada a cada vinheta. E uma ou outra vez somos brindados com páginas duplas (como acontece no magnífico plano de abertura em plongée), página inteira (como no difícil regresso ao Castelo sob um forte nevão na página 23) ou página com sobreposição de vinhetas e de acções (como é o caso da chocante página 54).
E a capa é daquelas que nos fica na memória e que fará parte do imaginário de muitos leitores daqui a muitos e muitos anos.
A dupla magnífica de Dorison e Delep consegue superar as expectativas criadas com o primeiro volume. Resta-nos esperar por “A Noite dos Justos” e por “O Sangue do Rei”, os dois volumes finais da tetralogia.
Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.