
O Burlão nas Índias.
Se Don Quixote de la Mancha e o Barão de Munchausen tivessem um amigo comum, esse amigo seria Don Pablos de Segóvia. Este, a mais que os outros, teria sido apenas bafejado por um realismo… delirante.
E é a história intrincada, mirabolante e aventurosa de Don Pablos que nos é contada neste magnífico álbum pela dupla de sonho formada por Alan Ayroles (De cape et de crocs) e Juanjo Guarnido (Blacksad), publicada em Portugal pela Ala dos Livros.
Vamos à história!

Na verdade, este é daqueles livros em que falar da história é estragar verdadeiramente o prazer da leitura e de descobrir, página a página, mil e uma maneiras de sermos surpreendidos e deliciados.
Por isso, no que à história diz respeito, limitar-me-ei a escrever algumas linhas breves e genéricas.
Estamos no século XVII, que para Espanha significa o Século de Ouro… do Império e da Expansão. Em Madrid, vive Pablos, um rapaz pobre, filho de um rufião e de uma feiticeira.

Escroque de baixo nível, canalha pouco recomendável, mas verdadeiramente simpático, Pablos decide abandonar Espanha e partir à aventura pelas colónias do Império, nomeadamente, pela América (então, ainda nomeada como Índias).
E é neste Novo Mundo, onde tudo parece ser possível de concretizar, que ele conta ter uma nova vida.

A sua grande epopeia é-nos narrada na primeira pessoa e com a riqueza de pormenor característica de quem passou da miséria à glória, de miserável a muito rico, de pobre a “fidalgo”, de adorado a escarnecido, de escravo a explorador. E sempre assumindo todas as identidades necessárias a prosseguir a vida como um sobrevivente.
Dos calabouços castelhanos aos salões dos palácios reais, dos picos andinos à floresta amazónica, as suas aventuras picarescas evoluem num crescendo que culmina no ponto onde convergem todos os sonhos do Novo Mundo, a mítica Eldorado.

Em O Burlão nas Índias, Alain Ayroles prossegue com as aventuras narradas na obra de Francisco de Quevedo publicada em 1626 e que tem como título (numa tradução livre) História da Vida do Burlão, chamado don Pablos; Exemplo de Vagabundos e Espelho de Vigaristas.
Mas, como é óbvio, a escrita de Ayroles distancia-se por completo do estilo barroco de Quevedo, utilizando subterfúgios mais modernos como a narração sequencial de momentos cronologicamente diversos ou os flashbacks.

A escrita é viva; o vocabulário é rico. Os diálogos são dinâmicos, eficazes, quase de um pragmatismo anti-barroquiano, mas com muitos subentendidos. E nem o facto de os personagens serem criados num padrão de truculência e fanfarronice exacerbados, impede que a narrativa seja romanticamente sedutora e poética.
Numa história complexa, cheia de artimanhas e engodos que enganam o leitor e o levam (quase) sempre pelo caminho errado, Ayroles opta por uma narrativa quase em folhetins, como se relatasse episódios bem compartimentados, embora alicerçados no mesmo fio condutor. E, sob os nossos olhos, desenrolam-se as maravilhas destas “Índias” e a magia com a qual só um grande contador de histórias nos consegue iludir.

Ficamos na dúvida se estamos perante uma tragédia ou uma trágico-comédia, com um humor sempre presente e os flashbacks que, ao invés de travarem a fluidez da narração, lhe dão uma dinâmica que consegue acelerar a leitura. E de tal modo isto é verdade que, chegados ao fim, quase ansiamos por uma continuação indesejável… pois quere-se que esta seja uma obra única!
E como pano de fundo, mas sem intuitos propriamente panfletários, a crítica social lá nos apresenta um mundo onde os africanos são meros escravos, os “conquistadores” massacram os nativos, os padres apiedam-se apenas dos que partilham as suas ideias e os europeus, desde que além-mar, se comportam como os eleitos, como os únicos dignos do reino dos céus e das mordomias terrenas.
Por fim, no que à escrita diz respeito, o génio de Ayroles apresenta-se em pleno numa segunda parte na qual o protagonista parece tentar redimir-se dos seus muitos pecados. O leitor pode ficar, por momentos, baralhado, sem perceber qual a verdade da história; ou se a cada descoberta, se a cada nova confissão, surgirá por fim a verdade. E se a estrutura da narrativa é quase por completo desconstruída, tal não afecta nem um pouco a satisfação que o leitor sente por ter esta obra entre mãos.
Facilmente nos rendemos por completo à narrativa. E então, o que dizer do desenho?! Este é Juanjo Guarnido no seu melhor! E o seu melhor é a excelência a roçar a perfeição.

Com o seu traço característico e fluído, já bem conhecido da série Blacksad, Guarnido cria em cada vinheta um festival de arte, uma mestria da composição.
Cada detalhe é da máxima importância, seja ele o cordame num navio ou as distintas personalidades desenhadas em cada personagem, mesmo no mais secundário. Cada “quadradinho” é um frame de uma longa-metragem, é uma ária de ópera na qual os protagonistas cantam melodias distintas e o coro realiza a composição geral em pano de fundo.
Em suma, as imagens acabam sempre por ser sumptuosas, quer nos mostrem uma cena do banal quotidiano, um navio a cortar ondas, o massacre de uma aldeia indígena, a expressão de um rosto ou a azáfama num porto marítimo.

Guarnido consegue dotar cada personagem com os rostos mais incríveis, exibindo cada um uma expressividade tal que, por si só, criam a osmose perfeita com cada palavra da narrativa, mesmo quando parecem contradizê-la, como é o caso na vinheta que se segue.

O seu traço exala força e eloquência, quer nos rostos, nos movimentos dos corpos, no dramatismo das acções, na criação de sensações e sentimentos, com composições fortes, quer em momentos-chave quer nos mais simples.
Os décors são deslumbrantes, nomeadamente os dos navios, tão detalhados, ou os que nos apresentam a fauna e a flora do Novo Mundo, que são testemunho de um trabalho impressionante numa sequência de vinhetas volumosas que ao longo de várias páginas seguidas chegam mesmo a substituir por completo as palavras de Ayroles, que se cala propositadamente para dar lugar à narrativa visual no seu estado mais puro. E é assim, num silêncio deslumbrante, que nos é apresentada a quimérica Eldorado.



É impensável falar deste álbum sem mencionar o excepcional trabalho a aguarela de Juanjo Guarnido, Jean Bastide e Hermeline Janicot-Tixier, que conferem pura magia a uma obra já de si memorável.
Ao longo do livro temos a demonstração perfeita do que é um casamento divino entre a palavra, o desenho e a cor. E até no epílogo, com uma piscadela de olho a uma obra de Velásquez e uma última reviravolta surpreendente, Ayroles e Guarnido, no pico da sua arte, oferecem-nos um momento de leitura inesquecível que marca, quanto a mim, um momento grande da Nona Arte.


Amante da literatura em geral, apaixonado pela BD desde a infância, a sua vida adulta passa-a toda rodeado de livros como editor. Outra das suas grandes paixões é o cinema e a sua DVDteca.