Era uma vez um festival de BD nos tempos da pandemia

Era uma vez um festival de BD nos tempos da pandemia

Como foi anunciado aqui, nos dias 22 a 25 de abril de 2021, no Poznań virtual, teve lugar a edição do Poznański Festiwal Sztuki Komiksowej (PFSzK), com Portugal como convidado de honra. Serve a presente (foto)reportagem para referir e contextualizar, entre outros, esta pequena invasão portuguesa na Polónia.

/sé/ vs /sê/, ou seja, a única bedeteca polaca tem sede em Poznań, que tem sede de BD

Fot. 1: O espaço da NOVA.

Michał Traczyk, chefe do Festival e director de Czytelnia Komiksów i Gazet NOVA (um tipo de “bedeteca” que funciona como uma parte da Biblioteca Universitária de Poznań), explicou na entrevista para a Radio Meteor que a ideia do evento é ter sempre um país convidado de honra para mostrar algo novo na BD, de que ainda pouco se sabe na Polónia ou se pode saber ainda mais do que já se sabe. Por exemplo, em 2019 o convidado foi a Roménia, em 2020 a República Checa e no ano 2021 calhou a vez de Portugal.

A promoção e edição da banda desenhada portuguesa na Polónia tem uma história que remonta ao ano 2007, quando na revista cracoviense de cultura “Splot” foi iniciado o alfabeto dos autores portugueses (colaboração de Joanna Łątka e Marcos Farrajota). Depois da letra “A” representada por Filipe Abranches com a curta “Solo”, foram ainda realizadas as entradas “B” (Pedro Brito) e “C” (Ana Cortesão). Posteriormente, a “Splot” tornou-se digital e acabou o alfabeto. O primeiro álbum de um autor português na Polónia saiu em 2008. Foi A Pior Banda do Mundo #1 de José Carlos Fernandes (esta edição polaca reúne os dois primeiros volumes da série original num livro; até à data, falta ainda publicar os volumes cinco e seis).

Fot. 2: Os livros de José Carlos Fernandes na exposição de BD portuguesa em Poznań.

Foi também José Carlos Fernandes o primeiro autor português que visitou o festival de BD em Varsóvia (os atualmente inactivos Encontros Varsovianos de BD). No fim do ano de 2021, a lista dos livros portugueses publicados na Polónia deve atingir vinte e seis álbuns e há ainda trinta e sete curtas publicadas em revistas, como a mencionada “Splot”, mas também em “Lampa”, “Ziniol – Kwartalnik Kultury Komiksowej” ou em zines editados a propósito do PFSzK. É justamente a respeito dos zines que podemos, antes de passarmos à próxima secção deste artigo, parafrasear o título de um clássico de filmes de artes marciais: “Enter the BandasDesenhadas.com”.

Olhó zine português!

Uma das características do PFSzK é a distribuição gratuita dos zines de diversos autores aos visitantes do festival. Esta prática inscreve-se na ideia do “Free Comic Book Day” iniciado nos EUA em 2002. Normalmente, é celebrado todos os anos no primeiro Sábado de Maio, mas o PFSzK calha normalmente em Abril e faz-se assim um tipo do evento que segue a mesma lógica, mas um bocadinho mais cedo. Entre os fanzines que se publicam, encontram-se dois títulos anuais: o Darmozin (uma antologia pensada sobretudo, mas não a isso limitada, para estrear autores novos) e Babski Zin (só para autoras).

Fot.3: Babski Zin, edição de 2021 dentro do caixote que serve para ir acumulando os zines que se pode receber no PFSzK; o tema desta edição foi “Wolność” (liberdade) que tem tudo a ver com a situação política na Polónia de hoje.

Os restantes zines gratuitos são as participações voluntárias diversas da Polónia, do país convidado de honra e de outros colaboradores. As publicações podem ser mudas, em polaco ou em inglês. Para a presente edição do PFSzK, contribuiu o site Bandas Desenhadas, o que resultou na edição de 5 histórias originalmente publicadas neste site na secção “webcomics”, quatro delas de autores portugueses (Francisco Sousa Lobo – “The Living”, Ana Ribeiro – “Where is my mind?”, Liliana Maia – “Carlos” e Daniela Barros – “O relógio sem ponteiro / Zegar bez wskazówki”) e uma de autor brasileiro (Marcello Quintanilha – “Arbítrio / Wola”).

Fot. 4: Os zines de autores portugueses (e um brasileiro), publicados com a colaboração do site Bandas Desenhadas.
Fot. 5: Miolo do zine “Arbítrio / Wola” de Marcello Quintanilha.

Normalmente, pode-se pegar nos zines colocados numa mesa, recebê-los durante os encontros ou na hora de distribuição dos livros enviados dos EUA para o “Free Comic Book Day” (durante os dias de festival, há várias horas marcadas para fazer uma fila indiana e esperar para receber um set de publicações).

Fot. 6: Os zines gratuitos deste ano.
Fot. 7: Os zines distribuídos no festival em 2021.

Depois, só resta pegar num numa caixa de arquivo para os zines e… Já está, uma boa recordação de Poznań!

Fot. 8: As caixas de arquivo dos zines.
Fot. 9: Caixa de arquivo de zines alusiva ao festival.

Na edição online deste ano (e do ano passado também), forçada pela situação pandémica para “ter lugar” neste formato, optou-se por distribuir os fanzines para quem deixava os comentários no facebook do evento durante os encontros com autores, apresentações, gravações, etc.

Conferência académica materializada – Surpresa! Surpresa! – online

A edição deste ano do PFSzK começou com uma conferência académica dedicada à questão de “Religião e BD”, onde, no segundo dia (23 de abril), o abaixo-assinado tentou falar sobre os aspectos religiosos no trabalho de Francisco Sousa Lobo. O foco do interesse foi a BD “Deserto / Nuvem”. Partindo da sugestão de Pedro Moura deixada na resenha deste livro – “Comics making as a form of prayer?” – chegou-se à conclusão que Sousa Lobo materializa (na lógica do conceito de “materiality” como descrito por Aaron Kashtan em Between Pen and Pixel. Comics, Materiality, and the Book of the Future) sob a forma de bandas desenhadas as suas deambulações espirituais, que bem podem ser confissões. Sendo assim, o autor revela o que quiçá devia permanecer íntimo e não palpável ou, pelo menos, não à vista de todos.

As conferências são organizadas anualmente. Nas edições anteriores, os temas foram, entre outros, “A BD subversiva” ou “As imagens do dia-a-dia em BD”. Os organizadores possibilitam as participações internacionais.

Encontros com Portugal e estreias-estrelas portuguesas

Os “visitantes” deste PFSzK puderam assistir, entre outras, a duas conversas gravadas com dois autores portugueses, estando as mesmas em português (com legendagem em polaco), nomeadamente com: Rui Pimentel, cujo livro de BD Fado. Estórias na noite foi recentemente publicado na Polónia pela Timof Comics com o título Fado. Nocne historie; e com David Campos, cujo livro Kassumai foi publicado em 2020 (também pela Timof Comics). Na altura do festival, estreou mais uma novidade portuguesa – Andrómeda de Zé Burnay (Timof Comics), que provavelmente visitará a Polónia a propósito do Festival de BD em Varsóvia (o festival terá este ano duas partes – START em Junho e META em Setembro – e várias iniciativas pelo meio).

O livro de Rui Pimentel saiu na versão polaca por iniciativa de uma das tradutoras – Grażyna Jadwiszczak (professora universitária em Poznań e tradutora – entre outros traduziu para polaco Para uma História do Fado de Rui Vieira Nery – infelizmente, a edição polaca não é a mesma ilustrada por Nuno Saraiva…), que é uma grande fã de tudo o que tem a ver com o fado. É o segundo livro com esta temática que foi publicado na Polónia depois de Tudo isto é fado! / A wszystko to fado! de Nuno Saraiva. Agora, a equipa tradutora da Grażyna (com Zuza Szpura e Jakub Jankowski) vai tentar publicar na Polónia O Fado Ilustrado de Jorge Miguel (passem-nos o contacto para vermos os detalhes da possível edição polaca 🙂 ).

O livro de David Campos, por sua vez, saiu no âmbito da cooperação entre a editora Timof Comics e o Instituto de Estudos Ibéricos e Iberamericanos da Universidade de Varsóvia. Faz parte de um pequeníssimo catálogo de livros que serão usados como material didático complementar às aulas – dedicadas aos PALOP e à história de Portugal – com os estudantes do primeiro ano dos estudos no Departamento de Pesquisa Interdisciplinar em Países de Língua Portuguesa (no primeiro ano, eles ainda não falam português mas vamos fazer deles os tradutores-embaixadores da BD portuguesa! Eis uma saída profissional depois dos estudos como deve ser!). Neste mesmo projecto, saíram também Filhos do Rato de Luís Zhang e Fábio Veras e Salazar. Agora, na hora da sua morte de João Paulo Cotrim e Miguel Rocha e ainda vão sair A história de Lisboa (edição de dois volumes originais num livro) de A. H. Oliveira Marques e Filipe Abranches e Madgermanes de Birgit Weyhe (traduzido do alemão).

Fot. 10: O livro Salazar. Teraz, i w godzinie jego śmierci na exposição portuguesa no PFSzK.

Por enquanto não se sabe muito sobre a recepção dos livros dos autores em questão junto ao público polaco, mas sabe-se, pelo menos, que Kassumai ensinou aos polacos onde fica a Guiné-Bissau e Fado. Estórias na noite foi descrito numa crítica como uma piada bem conseguida deste Património Imaterial da Humanidade português.

A verdade exposta, ou seja, a metade da Península aos quadradinhos

Neste festival, foi inaugurada ainda uma exposição dedicada a autores portugueses, com trabalhos de David Soares & Pedro Serpa, Filipe Abranches, Joana Afonso (tem o álbum O Baile publicado em polaco), Luís Louro, Marco Mendes, Ricardo Cabral e Rui Lacas (todos os autores têm curtas publicadas na revista já desactivada “Ziniol”). É quase metade (pois não fazemos a mínima ideia para onde voaram os Albatrozes de Marc Parchow…) da exposição Península aos quadradinhos (cooperação do Instituto Camões, Instituto Cervantes e da Associação Polaca de Banda Desenhada, que originalmente combinava os autores portugueses e espanhóis, mas desta vez foi apenas a jangada de quadradinhos portugueses que decidiu navegar até à Polónia).

Esta exposição esteve patente anteriormente na Varsóvia, Cracóvia, Lublin e Łódź, mas demorou bastante para chegar, na sua metade, até Poznań. Para além de desvalidar “o casamento” original com os autores espanhóis, decidiu-se ainda mostrar outros livros dos autores já expostos, bem como mostrar alguns dos livros portugueses que entretanto foram publicados em polaco. Por exemplo, o livro Tu és a mulher da minha vida, ela a mulher dos meus sonhos de Pedro Brito e João Fazenda, a segunda BD portuguesa em álbum publicada na Polónia, que deve ser ainda reeditada este ano.

Fot. 24: A edição polaca do livro de Pedro Brito e João Fazenda.

A exposição, como se pode ver nas fotografias, ocupa um belíssimo interior da Biblioteca Universitária de Poznań, e pode ser vista no horário de funcionamento desta. No regime sanitário vigente, claro está.

Notícias da última hora: academicamente sobre a BD e sobre as HQ

Por fim, registe-se ainda que, no âmbito do Festival, é publicada a revista polaca de BD Zeszyty Komiksowe, dedicada a BD portuguesa e brasileira. É a única revista académica polaca cabalmente dedicada aos estudos de banda desenhada (até consta da lista oficial do Ministério Polaco de Educação).

É difícil traduzir todo o conteúdo português, mas pode-se ler:
– a entrevista com Paweł Timofiejuk da editora Timof Comics, que prossegue a promoção da BD portuguesa na Polónia;
– um texto comemorativo sobre Geraldes Lino;
– o artigo (análise SWOT-TOWS da promoção da BD portuguesa na Polónia) do abaixo-assinado, cuja conclusão diz que já está na altura de fazer duas coisas importantes: 1) criar uma chancela dentro de uma editora existente, destinada a publicar apenas a BD portuguesa, com pelo menos 2 livros por ano; 2) organizar um concurso para os autores portugueses que queiram ser publicados nos zines gratuitos do PFSzK (cf. Olhó fanzine português!);
– a conversa-resenha sobre os livros Os Vampiros (de Filipe Melo e Juan Cavia) e Filhos do Rato (os dois com edições em polaco), onde se debate as formas metaforizadas de falar sobre a guerra colonial / guerra libertadora na Guiné-Bissau;
– o artigo “A Banda Desenhada enquanto produto das mudanças sociais e políticas em Portugal durante a década de 1970” por Pedro Réquio.

A capa foi preparada no regime de uma “batalha desenhada” entre Portugal e Brasil: Fábio Veras vs Magenta King (Rodrigo Solsona). Ficaram empatados. Vejam a sequência de como seguiu o duelo:


Nota final: todas as gravações do PFSzK podem ainda ser vistas após o Festival no facebook da NOVA.

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